Breves
Usos e abusos da tradição
Estes tempos são prolíficos em argumentos que usam a tradição e a cultura como recursos para tentar travar ou impedir mudanças, sobretudo quando estas dizem respeito à cidadania das mulheres ou aos seus direitos. Este artigo discute algumas questões levantadas por esta tendência preocupante.
Estes tempos são prolíficos em argumentos que usam a tradição e a cultura como recursos para tentar travar ou impedir mudanças, sobretudo quando estas dizem respeito à cidadania das mulheres ou aos seus direitos. Mesmo até, e aí essa defesa ganha já foros de incentivo à violência, quando estão em causa casos manifestamente criminais. Podemos lembrar o crime recente da violação colectiva de uma mulher, em Pemba, por alegadamente ter trespassado os limites do espaço onde se realizavam cerimónias de ritos de iniciação masculina. A inacção das autoridades da justiça e a consequente impunidade dos agressores foi saudada por alguns sectores como sendo a maneira certa de agir nestes casos.
Antes de mais convém dizer que não se trata de nenhum revivalismo radical, na medida em que ninguém defende um regresso ao passado, nem a neutralização completa da intrusão da chamada cultura ocidental, nem das suas instituições, algumas das quais configuram o sistema no qual assenta o nosso governo e o desenvolvimento económico do país. Não se trata de nada disso. Os benefícios da globalização e do sistema mundial são bem-vindos e ansiados, no seu geral, mas quando estes se imiscuem com áreas do privado, que é normalmente onde se constrói e assenta o sistema patriarcal e outras hierarquias que estruturam desigualdades sociais, aí já são diferentes as posturas.
Há, portanto, uma condenação crítica e selectiva à cultura “ocidental” e àquilo que é suposto ela representar. Significa isto que existe uma percepção de que é preciso defender a sociedade, propondo-se como solução a neutralização de uma cultura que se vê como dominante ou em vias de se tornar dominante. Normalmente os valores implícitos são conservadores e prega-se também uma visão mítica e idealizada do passado, pois o próprio passado é continuamente refeito pelo novo e pelos interesses e agenda dos emissores ou de quem eles representam.
Todos estes processos se podem explicar sociologicamente e existem muitos exemplos a apontar, pois não se trata de situações específicas a Moçambique.
Um dos aspectos de que se reveste esta demanda corporiza-se no conflito entre tradição e lei. Que precedência tem a tradição em relação à lei, ou a lei em relação à tradição? O que se busca na tradição é o passado como experiência? É a superação crítica do seu legado?
Esta questão ganha forma no confronto entre o que são as leis do Estado (o chamado direito positivo) e as leis costumeiras, próprias das sociedades rurais e com matizes próprios em cada região. Ora este direito costumeiro ou direito tradicional é na sua essência dinâmico e vai sofrendo alterações ao longo do tempo. Mesmo se alguns antropólogos, com monografias descritivas dos usos e costumes de certos povos, evidentemente localizadas no tempo e específicas da(s) sociedade(s) estudada(s), tenham contribuído para criar uma referência fixa que ainda hoje é usada como modelo.
Mas para além disso, assiste-se também a uma tendência de recriar tradições, o que nada mais é do que a reinterpretação de algumas dessas tradições, para dar respostas actuais a novos problemas e a interesses contemporâneos. E uma vez que os emissores deste discurso são as chamadas autoridades locais (designação que engloba uma miríade de líderes locais que vão desde as autoridades tradicionais, ao chefe do bairro ou ao comerciante) ou os seus representantes, são os seus interesses e as suas agendas que se encontram em destaque, mesmo que essa demanda se apresente como resgate da “alma” e da identidade do povo.
Neste contexto, algumas questões são incontornáveis:
- Sobre a selectividade na condenação da cultura “ocidental” e na defesa das tradições – Quem define que tradições devem ser preservadas e que tradições devem ser ignoradas ou combatidas? Que critérios devem ser usados?
- Sobre os direitos humanos – Pode ser defendida uma tradição que lesa direitos das e dos cidadãs/ãos? Uma determinada cultura tem o direito de manter-se à margem de qualquer critério de verdade, de dignidade humana e de ética que venha de outra cultura?
- Sobre a relação entre direito positivo e direito costumeiro – As leis do Estado só podem ser aplicadas quando não estejam em contradição com o direito costumeiro ou só se justificam algumas excepções? Quem decide que excepções devem ser feitas?
Estes são questionamentos com que nos defrontamos no nosso trabalho como activistas dos direitos humanos. É urgente aprofundar este debate (que com toda a evidência já corre solto tanto nos media como na academia) e clarificar posições. O aproveitamento de um discurso tradicionalista para tentar impedir acesso a direitos é inadmissível e deve ser exposto.
Por: Maria José Arthur
(Artigo de opinião)
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