Movimento pela aprovação da lei contra a violência doméstica
Um olhar sobre a possibilidade de uma lei que proteja a mulher
Saiba mais sobre o Anteprojecto de Lei Contra a Violência Doméstica Contra a Mulher
Em Dezembro de 2007 centenas de cidadãos marcharam pelas ruas de Maputo apelando ao reconhecimento do direito da mulher viver livre de violência. Esta marcha culminou na Assembleia da República, onde organizações da sociedade civil entregaram aos deputados o Anteprojecto de Lei Contra a Violência Doméstica Contra a Mulher.
Contudo, ainda não se sabe quando o Parlamento poderá debater esta proposta.
Diversos sectores da sociedade moçambicana defendem a aprovação da mesma num futuro breve, uma vez que os números de casos de violência doméstica estão a aumentar no país, como ilustram dados recolhidos pelos Gabinetes de Atendimento à Mulher e Criança, da Polícia da República de Moçambique (PRM), e organizações da sociedade civil.
Segundo o documento submetido ao Parlamento, o Anteprojecto de Lei em questão tem como objecto toda a violência doméstica praticada contra a mulher no âmbito das relações domésticas e familiares e de que não resulte morte desta.
Tem ainda como objectivos a prevenção da violência e do abuso de poder nos relacionamentos no âmbito doméstico, mas também a punição dos infractores.
O agressor
O Anteprojecto considera como agente de infracção qualquer homem com quem a mulher esteja ou tenha estado unida por casamento ou união de facto. Mas inclui também homens com quem ela tenha ou tenha tido relações amorosas, ou ainda qualquer outra pessoa com quem ela partilhe laços familiares ou com quem viva.
Tipos de violência doméstica
Este Anteprojecto reconhece diversos tipos de violência (incluindo alguns que até ao momento não têm enquadramento legal), por exemplo: violência física, violência psicológica, violência patrimonial (violência que cause deterioração ou perda de objectos, animais ou bens materiais da mulher ou do seu núcleo familiar).
Pretende-se também criminalizar a violência sexual no contexto doméstico, ou seja, a prática de sexo forçado em relações amorosas, e mesmo no casamento.
A mutilação sexual é também definida como violência sexual.
Medidas de Segurança
As medidas de segurança previstas no Anteprojecto incluem, entre outras, retirar temporariamente o agressor da casa em que vive com a mulher agredida e proibi-lo até de de passar perto da casa e local de trabalho da agredida, ou outros locais que esta frequente com regularidade.
Medidas Cautelares
Como medidas para prevenir a repetição da violência através da reeducação do agressor, o Anteprojecto prevê, por exemplo, a definição de uma pensão provisória correspondente à capacidade económica do agressor e às necessidades dos que dele dependem. Prevê ainda a suspensão do poder parental do agressor sobre filhos/as menores e a proibição do agressor de retirar os bens móveis da residência comum para outro local.
Penas
Consoante as características específicas de cada situação, o Anteprojecto prevê como penas: a prisão entre dois e oito anos; a prisão entre três dias e dois anos; o pagamento de uma multa; ou a prestação de trabalho a favor da comunidade durante um período que pode variar entre 54 e 400 horas.
Penas agravadas
Mas estas penas podem sofrer um agravamento de um terço nos seus limites mínimos e máximos se, por exemplo a violência for praticada na presença dos filhos ou outros menores, contra uma mulher grávida ou em espaço público, ou ainda se em resultado desta violência a mulher apanhar Infecções de Transmissão Sexual (ITS) e HIV. (x)
Um homem que almeja o “equilíbrio” de género
“Estamos a falar de equilíbrio, e não da perda de poder ou relevância por parte do homem” – Diogo Milagre, em entrevista ao Movimento pela Aprovação da Lei Contra a Violência Doméstica Contra a Mulher
Movimento: É um forte apoiante da causa contra a violência doméstica, nomeadamente através do Fórum Mulher, de que é Vice-Presidente. O que o leva a intervir nesta área?
Diogo Milagre: Bem, primeiro, toda a minha formação foi feita na área de desenvolvimento e em ciências sociais, e a minha experiência permitiu-me perceber que é necessário ajudar os homens violentos a sentir e a compreender que têm de mudar, e fazê-los ir de encontro aos seus erros, para que possam corrigi-los.
E depois, sempre que ministrava cursos sobre género e desenvolvimento sentia que a violência era vista como um assunto de mulheres. Mas também percebia que as pessoas ignoravam o conceito de género, associando-a à mulher como se de sinónimos se tratasse. No entanto, saía estimulado das formações quando os participantes se entusiasmavam com a moldura de conteúdos sobre a matéria de género e começavam a perceber que o que está em causa é a justiça social, o equilíbrio e a complementaridade nas relações socialmente construídas entre o homem e a mulher na sociedade.
Tenho pesquisado muito sobre estes assuntos e busco a aplicação deste equilíbrio na minha vida.
M: O que é importante que as pessoas entendam sobre o equilíbrio de que fala?
DM: É importante que se perceba que, nós homens e mulheres, biologicamente temos diferenças naturais, extremamente importantes para a manutenção da espécie humana. Aí temos papeis sociais que a partir do determinismo biológico se complementam. Depois, é útil perceber que as diferenças sociais, essas são construídas pelo Homem e podem mudar, podem ser transformadas, podem evoluir para etapas que favoreçam um reconhecimento social e legal igual. Veja que nesta perspectiva seria ética e humanamente reprovável que eu pratique discriminação entre os meus filhos, dando protecção e primazia aos rapazes somente na projecção das suas vidas futuras. Estaria a guiar-me por uma visão patriarcal retrógrada toda ela contrária às transformações tanto legais quanto vivenciais que a sociedade foi registando até aos dias de hoje. Veja que falar de equilíbrio de relações de género hoje faz parte de uma plataforma universal de direitos de cidadania. Creio que é importante que se perceba que quando falamos de mudar os comportamentos violentos contra as mulheres e da igualdade social, estamos a falar de justiça social, de equilíbrio, e não da perda de poder ou relevância por parte do homem.
M: Mas algumas pessoas argumentam ainda que a violência doméstica é um problema “inventado” por mulheres. Qual é a sua opinião?
DM: A violência é um problema real e com consequências muito sérias, embora acredite que tem soluções. E não está ligada apenas às mulheres – é uma questão da sociedade, e que resulta do não reconhecimento do equilíbrio de que falava, até porque revela uma desconcertação dentro dos relacionamentos em relação ao companheirismo entre o homem e a mulher e ao sentido de partilha.
Mas eu iria ressaltar que o meio de onde provimos preenche o nosso cérebro e é fundamental na determinação do nosso comportamento. É preciso reconhecer também que há modelos de vivência, padrões do ser e estar na sociedade, que nos ensinam a ser violentos e associam este comportamento à virilidade. Às vezes, esta violência que apenas é reportada no aspecto material, através de traumatismos, hematomas e brutalização do corpo, começa pelo desgaste psicológico, que deixa necessariamente sequelas. É assim que muitas mulheres e alguns homens, claro, morrem aos bocadinhos a partir deste desgaste, uma morte social que precede a morte física, devido à violência doméstica que sofrem diariamente. Se pudessemos perfurar a alma destas mulheres e de alguns homens também vítimas desta realidade no seu quotidiano, iríamos encontrar muita mágua guardada no seu coração.
M: Disse acreditar em soluções para este problema. Pode explicar-nos o que quer dizer?
DM: Acredito que nós, por sermos seres sociais, aprendemos, moldamo-nos e transformamo-nos constantemente no processo evolutivo natural da espécie humana. Há que se investir no tratamento didáctico destas matérias de forma permanente e contínua na sociedade, não quando o problema surge, mas procurando-se sempre esvaziar ou reduzir as hipóteses do seu surgimento.
Mas isto também não chega: há que haver instrumentos legais. Contudo, devemos olhar para estes como instrumentos que previnem a ocorrência de comportamentos desviantes, promovendo e mantendo o equilíbrio de comportamentos saudáveis. Destaco este aspecto pois acho que não existem mecanismos punitivos capazes de transformar por si sós a sociedade – esta tem que se transformar a si mesma. Temos que deixar de ver os mecanismos legais apenas como meios de punição, e passar a vê-los como servindo a educação.
M: Refere-se a instrumentos legais: o que pensa da proposta de lei contra a violência doméstica contra a mulher?
DM: Penso que acompanha a evolução social, coisa que alguns instrumentos legais existentes até ao momento ainda não conseguem preencher em plenitude. Quero acreditar que esta lei resgata um pouco isto, e por isso a sua aprovação é pertinente e oportuna.
Mas esta lei tem que ter também um poder transformativo, provocar mudanças na sociedade. Se o movimento contra a violência doméstica contra a mulher for devidamente impregnado na sociedade, se os comportamentos defendidos por esta lei se tornarem num costume repetitivo no seio da sociedade, no futuro teremos menos pessoas cometendo atrocidades. (x)
“No nosso casamento não havia respeito”
“Os problemas começaram ele ía aos bailes com o grupo dele e metia-se com meninas à minha frente. Acho que fazia isso para me humilhar. Sim, porque ele pensa que pode fazer e desfazer de todas as mulheres.
Ele também me passou várias infecções sexuais, e eu tinha medo de apanhar o HIV. É que ele andava com muitas moças e elas também andavam com outros.
Eu pensava que não era obrigada a ter relações sexuais com ele. Só que mesmo que eu estivesse doente e lhe dissesse que não me sentia bem e que não queria, ele fazia na mesma, obrigava-me. E eu tinha que entender. Por causa da educação tradicional que recebi.
Em casa diziam-me que “quando ele quer, tens que dar, e quando estiveres doente, mas não assim muito mal, tens que satisfazer o teu marido, porque senão vais criar problemas no lar”. E eu fazia, embora me custasse muito porque me fazia sentir como se não valesse nada.
Bom, no fim de sete anos de sofrimento e depois de muita humilhação, porque ele pediu o divórcio e pôs a família dele a mentir que eu não era boa esposa nem boa mãe, finalmente consegui recomeçar a minha vida e até me matriculei na faculdade.
A única coisa que me custa muito é que fiquei sem os meus filhos. Mas falamos sempre e sei que dentro de pouco tempo estarei com eles de novo.
Lembro-me que houve tempos em que o meu ex-marido ficou sem trabalho e eu sustentei a família. Posso recomeçar, não tem problemas, sou forte!”
Esta história real foi adaptada do livro “Reconstruíndo vidas: Estratégias de mulheres sobreviventes de violência doméstica“, publicado pela WLSA Moçambique, com autorização da mesma. (x)
Estes artigos foram publicados no semanário Savana de 16 de Maio 2008 |