Breves
Revisão do Código Penal: a auscultação pública
No dia 3 de Agosto de 2012, realizou-se um debate na Assembleia da República, no âmbito das Primeiras Jornadas Parlamentares Temáticas, para debater o Projecto de Revisão do Código Penal (CP). O debate foi convocado e dirigido pela Comissão Parlamentar dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e Legalidade, da Assembleia da República, na pessoa do seu Presidente, o Doutor Teodoro Waty.
Na introdução, o Doutor Waty referiu que a versão ainda vigente do CP vai completar 126 anos, apesar de terem sido feitas inúmeras alterações traduzidas em leis avulsas. Deu também especial destaque ao Artigo 4º da Constituição da República, sobre o Pluralismo Jurídico, que disse constituir a base da acção de legislar e perspectiva estruturante que guiou o trabalho da Comissão. Entre outros, deu o exemplo da bigamia que, a continuar a ser penalizada, trata “os nossos tios e pais” como “criminosos por serem polígamos”.
A concluir enfatizou que se pretende um Estado mínimo quanto à acção penal, no sentido de que a liberdade deve ser a regra e a punição a excepção.
Estes aspectos merecem algumas reflexões que, aliás, foram levantadas no próprio debate.
Em primeiro lugar, o Artigo 4º da Constituição é bastante claro:
“O Estado reconhece os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição” (sublinhado de nossa autoria).
Portanto, o pluralismo jurídico pode constituir uma base para o trabalho de legislar, com os limites que a própria Constituição lhe reconhece: “na medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição”.
Por outro lado, faltou referir outros fundamentos das leis: a Constituição da República e os instrumentos legais internacionais ratificados por Moçambique, que garantem os direitos fundamentais que regem a cidadania no país.
Ora, ao fazer a afirmação acima referida sobre o pluralismo jurídico como a base para a revisão do CP, o que se quer dizer? Que devemos tomar os costumes e as tradições locais como única referência? Que devemos ir contra a Constituição e reconhecer na lei tradições que violem os princípios fundamentais? A ser assim, é legítimo perguntar quais serão os limites dessa tolerância do costume perante a lei:
- As mortes por feitiçaria passam a ser legítimas porque fazem parte da tradição em algumas regiões?
- As uniões forçadas de crianças de 7, 9 ou 13 anos (normalmente chamadas de “casamentos prematuros”) passam a ser legítimas porque esse é o costume?
Até onde vai essa tolerância? E quem decidirá dos seus limites? E quem seleccionará que aspectos devem ser tolerados e que aspectos devem ser combatidos?
Este debate já há muito que decorre nas universidades, nas instituições do governo, por exemplo, na área da justiça ou da educação, e em vários círculos formais e informais. E agora que ele chegou ao Parlamento ganha outro fôlego, mas cria questionamentos mais sérios. É o próprio Parlamento a pregar que a tradição pode sim violar direitos humanos?
Aparentemente essa é a postura, pois quando se fala em despenalizar a bigamia, está claro que o fim último é legalizar a poligamia. E aí já estamos a falar de uma prática que lesa gravemente o princípio da igualdade entre mulheres e homens no casamento. Que torna ultrapassada e desadequada a Lei da Família aprovada em 2004, e, mais grave ainda, que transforma a Constituição da República em mais um pedaço de papel sem importância. Ou será que a seu tempo também se pretende mudar a Constituição e eliminar dos direitos fundamentais da cidadania em Moçambique a igualdade de género?
Seja como for, na presente situação em que ainda não está oficialmente “arrumada” a lei mãe de Moçambique, o Parlamento, através da sua Comissão Parlamentar dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e Legalidade, está a cometer um abuso de poder e a subverter as suas funções, para as quais foram eleitos os seus membros. A defesa da Constituição é o seu dever central, da qual decorre a própria acção de legislar.
No debate que decorreu na Assembleia da República não foram dadas respostas às várias perguntas colocadas pelos presentes. Foi pedido que não se levantassem questões, mas dúvidas metódicas, que os participantes se pusessem na pele dos deputados e procurassem logo as respostas.
Esta foi uma maneira sumária de dizer que ninguém daria respostas. Foi insatisfatório na altura, continua a ser insatisfatório agora. Os senhores e as senhoras deputadas têm contas a prestar ao seu eleitorado, mais ainda quando a questão que se coloca é se se pretende continuar ou não a respeitar a Constituição nacional na sua acção de legislar.
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