Breves
Publicado livro sobre aplicação da Lei da Violência Doméstica
A WLSA Moçambique lançou, em finais de 2016, um livro com os resultados de uma pesquisa que avaliou a aplicação da Lei Sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher, aprovada em 2009, da autoria de Conceição Osório e Teresa Cruz e Silva. Veja a seguir o prefácio que apresenta a obra.
Prefácio
Como activista, trabalhando em questões de violência doméstica há cerca de 20 anos, vi muitas coisas a mudarem ao longo deste tempo, mas muitas mais que permaneceram na mesma. Por isso, este livro apresenta um trabalho de pesquisa mais do que necessário: a análise da aplicação da Lei Sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher, aprovada em 2009. Antes desta data, apesar dos esforços conjuntos de várias organizações de direitos humanos, era muito difícil enquadrar legalmente o crime de violência doméstica. Mais grave ainda, a percepção que a sociedade tinha deste crime (e que ainda tem em grande medida, como mostra esta pesquisa), era de que a violência doméstica se tratava de um costume e de uma prática legítima no âmbito da família, fundada em valores identitários e culturais.
Nessa altura, o que havia e as pessoas com quem trabalhávamos eram mulheres invisíveis, mas batidas, sofridas e vítimas do que a sociedade chamava de crimes passionais, apresentando as “pequenas” violências quotidianas como prova de um amor que não se contém, excessivo mas dedicado. A quem se têm que sentir agradecidas e reconfortadas.
Apesar disso, as mulheres que buscavam ajuda fora da família, na polícia, nas unidades sanitárias ou em outros espaços, estavam longe de serem pessoas sem esperança e que não acreditavam num futuro. Eram sobreviventes, reconheciam que como seres humanos mereciam mais do que uma vida sombria e amargurada. Mas quantas não conseguiram e ainda não conseguem pedir ajuda?
Neste processo, que levou à elaboração e posterior aprovação da lei contra a violência doméstica, o grande desafio foi tornar visível o que era invisível. Ou seja, denunciar o que não era enxergado como problema, resgatar o discurso da igualdade para a esfera familiar e contestar a subalternidade feminina mascarada como virtude, como característica das “boas” mulheres. Sempre defendendo que esta violência não era inevitável, mas aprendida. Como tal, podia ser erradicada, mesmo que perante a persistência do fenómeno, se duvidasse muitas vezes de que a luta pudesse ser bem-sucedida.
O reconhecimento da violência doméstica contra as mulheres como problema social ao nível dos órgãos de comunicação social e nos discursos públicos foi gradual, mas é hoje incontornável. Não só o país tem leis que criminalizam este tipo de violência, como também os crimes de violência doméstica têm cobertura noticiosa, ainda que parcelar e às vezes preconceituosa.
Todavia, e isto tem muitas implicações, a luta contra a violência doméstica continua a ser vista como uma questão de mulheres, ainda que certos homens “ajudem”. Esta posição perpetua o problema, na medida em que dá desculpas aos homens para não se interessarem pelo assunto.
Com efeito, e no que à violência doméstica (e de género) diz respeito, a estrutura cognitiva das pessoas está preparada para questionar as mulheres e o seu comportamento. Continua-se a culpar a vítima pela agressão que sofreu: Porque sai/namora/casa com pessoas assim? Porque não se vai embora? Se sabe que o namorado/parceiro/marido é violento, porque não toma cuidado? Porque é que desobedece?
E assim, o homem desaparece da equação, não sendo questionado. Ninguém se pergunta porque é que continua a violência? Porque é que os homens batem nas mulheres? Qual é o papel das instituições que estão ajudando a produzir homens abusadores? Perde-se assim de vista que o problema da violência doméstica não é individual mas sistémico, porque ancorado na estrutura de valores que sustentam o modelo social.
Neste sentido, esta pesquisa é muito importante. Reflecte tanto sobre os contextos e os mecanismos de aplicação da lei, que procuram preservar um modelo cultural que exclui direitos, como também sobre as “estratégias de confronto e de rejeição”, que permite que as mulheres que sofram de violência se vejam a si mesmas como sujeitos de direitos. Neste percurso, as autoras questionaram a família como “um lugar de acolhimento e de afectividade mas também como lugar de produção do conflito e de configuração das identidades”.
Apesar de se terem passado vários anos sobre a aplicação da Lei da Violência Doméstica, revela-se que as mulheres que denunciam continuam em grande parte a serem vistas pela comunidade e pela própria família como transgressoras, por trazerem para espaços externos problemas que deveriam ficar confinados ao doméstico. Deste modo se ignoram e se desvalorizam os longos anos de sofrimento que as levam a procurar ajuda em outras instâncias.
Ao analisar as representações sobre a violência doméstica entre os aplicadores da lei, a pesquisa buscou avaliar a influência na sua aplicação. As conclusões mostram que embora havendo um repúdio da violência doméstica, muitas vezes se rejeita que o crime tenha carácter público, ou seja, entre outros, que se impeça a retirada da queixa por parte da vítima.
A interpretação da lei não colhe unanimidade, o que impacta na sua aplicação, destacando-se os artigos 36 (sobre o alargamento da Lei aos homens) e 37 (sobre a salvaguarda da família). Sobretudo entre os magistrados, propõe-se uma nova redacção da Lei, para que “o âmbito da lei vise a protecção de mulheres, homens e crianças, vítimas de Violência Doméstica, numa perspectiva que observa a Violência Doméstica como dimensão da violência de género”.
Pelo seu conteúdo, os resultados desta pesquisa permitirão tanto um debate profícuo, propiciador de uma aplicação que tenha em conta o espírito da lei, como a eventual revisão da sua redacção, visando responder às dinâmicas de transformação da sociedade e aos novos mecanismos de dominação.
O mais difícil será, talvez, passar do discurso e incentivar as mulheres a verem-se a si próprias como sujeitos de direitos, merecendo viver em paz, controlando os seus próprios corpos e tomando as melhores decisões para si mesmas.
Em 1901, em Portugal, uma pintora de 50 anos matou o seu marido a tiros. Quando inquirida pela polícia, afirmou: “Ele gastava todo o dinheiro que eu ganhava. Era um desequilibrado. Não podíamos viver bem. A mulher tem os seus direitos”. Lamentou também “o sofrimento injusto perante as suas qualidades como pessoa”. Viria a morrer 7 meses depois, internada num hospício1,
A esta mulher faltou-lhe o Estado e a sociedade para a defender como ser humano. Eram outros tempos, dirão. Mas o que pensar então das mulheres que hoje denunciam e não só não encontram solução para os seus problemas como são ainda ostracizadas? Até quando o silêncio cúmplice dos agentes e das instituições continuará fazendo vítimas? Para quando todos, homens e mulheres, se sentirão directamente responsáveis por erradicar de vez este crime que afecta tão profundamente as famílias?
Maria José Arthur
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- Fonte: http://expresso.sapo.pt/
sociedade/2015-10-19-Esperou- que-o-marido-adormecesse-e- deu-lhe-quatro-tiros
O grande desafio é a mulher despertar. Enquanto continuamos a aplaudir uma sociedade exageradamente patriarcal, jamais a mulher usufruirá de seus direitos. E as leis jamais passarão da teoria.
Bem hajam teorias como estás, mais elucidativas.