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Breves

Pesquisa sobre os ritos de iniciação: um debate

Desenho de Malangatane
15
Fev
2012

A WLSA Moçambique está a desenvolver uma pesquisa sobre os ritos de iniciação (2011-2013), buscando compreender as funções e papel dos ritos na formatação das identidades sociais e nestas as identidades de género. O texto que se segue levanta algumas das questões que orientam a análise e foi elaborado para discussão entre investigadores que têm desenvolvido trabalhos nesta área.

 

Investigando os ritos de iniciação: contribuições para um debate

por: Conceição Osório

Comunicação apresentada num fórum de pesquisa realizado a 9 de Novembro de 2011, no âmbito de uma investigação sobre os ritos de iniciação que está a ser conduzida pela WLSA Moçambique (2011-2013)

O convite que vos formulámos visa discutir convosco algumas das inquietações, principalmente de ordem metodológica que se estão a colocar no estudo sobre ritos de iniciação. Neste momento finalizámos o trabalho de campo na cidade e província de Maputo, e encontra-se em vias de elaboração o relatório do estudo piloto.

Queremos agradecer a vossa presença e disponibilidade.

O surgimento desta pesquisa assenta em dois pressupostos: um primeiro tem a ver com o trabalho sobre identidades de género publicado em 2008 que nos remeteu sistematicamente para os ritos como tentativa de fixação de normas e valores configuradores do masculino e feminino. Um segundo pressuposto tem a ver com os discursos políticos recentes (quando falo em recentes quero referir-me aos últimos seis anos), que de forma insistente recorrem à cultura como elemento identificador e fixo da moçambicanidade, existente para além e sobre as novas realidades, que vão desde as políticas e legislação sobre direitos humanos, até a novos contextos que transformam os elementos e os mecanismos de adesão que “constituem” a cultura, seja pela adaptação, seja pela resistência.

Com esta pesquisa pretendemos, pois, em primeiro lugar, compreender como as mudanças, a nível do sistema político económico e social, produzidas nos últimos 30 anos, actuam sobre os sentidos de pertença existentes anteriormente, nomeadamente sobre as funções e papel dos ritos na formatação das identidades sociais e nestas as identidades de género. Referimo-nos nomeadamente não apenas a cooptação dos ritos pela religião e outros agentes, como e, principalmente pelas instituições do Estado como a educação e saúde, que procurando interferir no conteúdo dos ritos, podem ou não, contribuir para reforçar os atributos que “compõem” as relações sociais de género, como relações de poder. Referimo-nos a algumas das suas manifestações mais visíveis, como o abandono da escola e a legitimação social dos casamentos prematuros.

Em segundo lugar trabalhamos com agentes, conteúdos e meios de agenciamento dos ritos, que nos podem apoiar na análise de como face a todas as mudanças existentes, os e as jovens se apropriam dos ritos como instância de instrução, mas também de educação, desenvolvendo estratégias de aceitação/resistência/rejeição que podem interferir na construção de novas identidades e influenciar a estrutura de poder que percorre as relações de género.

Do ponto de vista teórico trabalhamos com os conceitos de sexualidade, de poder e de violência que vão ser desenvolvidos nas apresentações que os colegas irão fazer.

As dimensões de análise seleccionadas são como se apresenta na expressão gráfica do modelo de análise:

 

Dimensões Indicadores
Função/objectivos dos ritos Informação (o quê)
Formação (sobre o quê)
Mudanças na função e na representação sobre o papel dos ritos
Elementos de coesão para construir a unidade ritual
Agenciamento dos ritos Agentes legítimos para orientar os ritos:

  • O que confere a legitimidade: parentesco, idade, etc.
  • Os recursos materiais e simbólicos de utilizados para a legitimação
Mecanismos/cerimónias dos ritos O tempo dispendido: rituais de curta, média e longa duração
Actividades e cerimónias
A distribuição do tempo por cada uma das actividades
Os dispositivos materiais e simbólicos (e seus significados) utilizados para conformar comportamentos: sobre o corpo e sexualidade, sobre o trabalho
Dispositivos materiais e simbólicos para conformar o reconhecimento de si e do outro: a questão da violência
Valores e comportamentos transmitidos aos jovens e adultos sujeitos aos ritos e diferenças com a aprendizagem realizada na família, escola e grupos de amigos Aprendizagem sobre a sexualização do corpo:

  • O início da vida sexual
  • A questão da iniciativa sexual e o lugar do desejo e do prazer
  • As doenças sexualmente transmissíveis e o uso do preservativo
  • Práticas culturais relativas ao controlo do corpo (pitakufa, “fechar com faca”, etc.)
  • A relação entre sexos e inter sexos

Aprendizagem sobre o trabalho:

  • Diferenciação entre os sexos
  • O papel da mulher e do homem no provimento da família
  • Aprendizagem de atributos masculinos e femininos (o que é ser um bom homem e o que é ser uma boa mulher):
  • “O mando”
  • A paciência
  • A gestão de conflitos
  • A educação de crianças segundo o sexo
  • A relação com parceiros
  • A casa como lugar da mulher e a “rua” como lugar do homem
  • A construção da hierarquia familiar segundo o sexo e a idade
Tradição e modernidade na inclusão identitária dos e das jovens A “inculcação” dos conteúdos dos ritos nos comportamentos dos jovens e estratégias de poder/contra poder:

  • Sobre a sexualidade
  • Sobre o trabalho
  • Sobre os atributos
  • Sobre o abandono da escola
  • Sobre a gravidez precoce
  • Sobre os “casamentos” prematuros
Expectativas dos jovens ritualizados e estrutura de género. O antes e o agora Continuação dos estudos/profissão, maternidade e casamento:

  • O número de filhos/as e seu significado
  • O que é ser um bom/boa parceira/o
  • O acesso aos recursos (salário, poupança etc.) e o controlo dos recursos
  • O poder de decisão sobre planeamento familiar, sexualidade, educação dos filhos, e trabalho

 

Estas dimensões de análise reproduzem-se nos instrumentos de observação. Aplicámos entrevistas semi estruturadas individuais. A nossa ideia inicial era fazer o estudo piloto na cidade e província de Maputo com a comunidade ronga e changana, mas tanto a literatura como o trabalho de campo tornou evidente a ausência de ritos (embora tenha sido interessante evidenciar que alguns e algumas jovens participavam nos ritos feitos pela comunidade macua). Optámos então por estudar as comunidades macua no Bairro da Mafalala e maconde no Bairro Militar. E no que respeita à província escolhemos Matutuíne por haver alguma informação de que existiam ainda ritos.

O nosso grupo alvo são as matronas/mestres, mulheres e homens que tenham realizado os ritos há cerca de 30 anos e jovens raparigas e rapazes que recentemente passaram por eles. Agentes da saúde e pessoas reconhecidas como líderes na comunidade macua e maconde constituíram os informadores privilegiados. Foi feita uma revisão da literatura a nível nacional, regional e internacional, da qual gostaríamos de salientar apenas três elementos que constituem a fundamentação da nossa problematização:

1. A relação entre ritos e identidades

Os ritos são constituídos por uma sequência com momentos que visam organizar a passagem de um mundo ao outro, do mundo da infância ao dos adultos (na esfera produtiva e na esfera matrimonial), através da padronização dos comportamentos.

Sendo as identidades um processo em que se acentuam os fluxos, os trânsitos e o efémero, elas vão-se construindo através de apropriações e desapropriações dos elementos aprendidos nos diferentes espaços. Ora o que se pretende analisar é como se compõe este diálogo entre a função de harmonização (e também a função terapêutica) que confere aos ritos um sentido de coesão e pertença com os processos de identificação e desidentificação.

2. A sexualidade como campo central de actuação dos ritos

O estudo sobre ritos de iniciação não pode alienar a questão da sexualidade. Como afirma Foucault, a sexualidade é um campo privilegiado onde se elaboram os saberes e as normas orientadas pelos sistemas de poder. E que estas normas e saberes fixam prescrições fundadoras de uma estrutura de dominação assente na desigualdade de género. O que se pretende assim com a pesquisa sobre os ritos é a produção de evidências, ou não, sobre como as formas diferenciadas (mas não autónomas) da construção da masculinidade e feminilidade, são influenciadas por dispositivos assentes numa relação de dominação. Uma questão central a ter em conta é, pois, a natureza das relações que se estabelece entre género (que veicula o modelo de dominação), a componente subjectiva que fornece a apropriação individual do sexual e os contextos culturais e sociais. É preciso identificar se os ritos transmitem saberes às raparigas que lhes permite romper, pelo menos aparentemente, com a submissão, possibilitando utilizar, fora do controlo familiar e social, a aprendizagem sobre o sexo. A resposta a esta questão pode ajudar a explicar algumas das razões para as constantes referências, mesmo nas zonas rurais, ao “mau comportamento” das e dos jovens, mesmo as e os que passaram pelos ritos.

3. As mudanças/alterações dos contextos políticos, sociais, económicos e culturais e a cooptação dos ritos pelo discurso político

Vários autores, como o caso de Medeiros (1995) e Fungulane (1997) periodizam as diferenças entre os processos ritualizantes, tendo como elementos o contacto árabe-swaili, a colonização portuguesa e a influência missionária (que nem sempre coincidem na sua acção perante os ritos) e o pós independência que é marcado por dois momentos importantes: um primeiro até aos anos 90 em que se assiste à clandestinização dos ritos e à sua marginalização política, e depois (a partir dos meados da década de 90) à sua recuperação e cooptação pelo poder político.

Na pesquisa queremos, para além de revisitar o passado, aprofundar como as tentativas de domesticação dos ritos pelo poder podem produzir (ou não) mudanças sobre as suas funções e mediações.

Questões e inquietações

Apresentamos em seguida algumas das questões e interrogações que nos orientarão na continuidade da pesquisa.

  1. O discurso dos direitos humanos, as políticas e a legislação actuam sobre práticas e modelos culturais, podendo gerar confrontos ou/e negociação.
  2. A negociação entre diferentes fontes de legitimação em que o poder instrumentaliza a cultura e como as instâncias culturais (como os ritos que pertencem ao privado) surgem no espaço público e no campo político para se reforçarem como elementos de coesão nacional.
  3. Devido à visibilidade pública do HIV/SIDA, há uma projecção e a interferência de um discurso construído no contexto das ciências da saúde, para um domínio secularmente pensado e vivido como privado. O que será importante observar é se esta contaminação do moderno, com toda a sua parafernália de aconselhamentos como o uso do preservativo, coloca em risco, o modelo cultural, que se pode traduzir, por exemplo, no aumento do poder de negociação do uso do preservativo ou em maior liberdade sexual das mulheres
  4. A conciliação entre o calendário escolar e o tempo de realização dos ritos. Será que com o acesso cada vez mais massivo à escola, os ritos perderão (ou serão readaptadas) parte das suas funções na formação identitária? Queremos perceber estas tensões entre um espaço de igualdade que é a escola (explicar) e uma instância de naturalização das desigualdades de género.

Referências:

Fungulane, A. et al. (1997). A Educação Tradicional em Moçambique: Estudo de caso dos ritos de iniciação em Cabo Delgado. Pemba: ARPAC.
Medeiros E. (1995). Senhores da Floresta, Ritos de Iniciação dos rapazes Macua-Lómué do Norte de Moçambique, Tese de Doutoramento. Coimbra.

Conceição Osório

2 comentários a “Pesquisa sobre os ritos de iniciação: um debate”

  1. Rosa Valéria A. Said diz:

    Este estudo me parece da maior importância pelo facto de tentar dar visibilidade ao papel dos ritos de iniciação na formação das identidades de género em Moçambique. As organizações de cooperação internacional em Moçambique que estão a trabalhar com questões de género parecem ter uma visão muito superficial sobre tais ritos, como se isto fosse coisa do passado e já não tivesse muita importância na actualidade e nas áreas urbanas, por essa razão tendem a repetir discursos que não fazem eco nas formações/treinos que proporcionam. Enfim, o entendimento da cultura passa longe. Gostaria de ter acesso aos resultados deste estudo e ficaria muito grata à WLSA se isto fora possível. Trabalho como consultora em Moçambique desde 2003 nas áreas de pesquisa e comunicação. Meu e-mail: r2009_said@yahoo.com.br

  2. Maria José Arthur diz:

    Os resultados do estudo serão publicados neste site. Todavia, neste momento, ainda está em curso.
    Cumprimentos.

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