Breves
Os povos também se abatem?
Resposta aos artigos “Os povos também se abatem” (I, II e Concl.), por L.S. Kudjeka, publicado no semanário Zambeze, nos dias 2, 9 e 16 de Novembro de 2006.
O texto acima referido aparece sob a rubrica “Grande Reportagem”, o que não deixa de ser curioso. Uma “reportagem” refere-se a “informação” e é o produto do acto de reportar, quando o que temos entre mãos é um artigo de opinião, baseado nas crenças e valores mais profundos do seu autor, sem que apresente dados e provas do que diz.
Esta chamada “reportagem” pretende ser uma crítica às políticas de desenvolvimento, e tem a intenção de desmontar as estratégias actuais de dominação e de exploração dos países africanos e, em particular, de Moçambique, que consistem basicamente em três passos: “1) Esfacelar o tecido social, 2) Ofertar presentes envenenados, 3) O cavalo de Dakar”. Com este comentário queremos centrar-nos na primeira proposição, que foi publicada na primeira parte do artigo.
O autor defende que ao “esfacelar o tecido social” se está a criar intencionalmente uma dependência da ajuda externa: ameaça-se a estabilidade das comunidades, a “unidade primária da nação”, e aniquilam-se os “mecanismos de auto-ajuda das comunidades”. E como é que isto se faz? O Sr. Kudjeka explica:
“Com o advento da independência política do nosso país, assistimos a um combate cerrado, de inspiração ocidental, contra determinadas práticas culturais seculares, dadas como atentatórias aos direitos de uns e outros, mormente das mulheres e das crianças, com destaque para a poligamia e o lobolo”.
Na realidade, diz o autor, por detrás destas posturas existe “um plano a longo prazo, cuidadosamente orquestrado pelos nossos benevolentes novos amigos” (destaque do próprio autor).
Assistimos então a:
- Uma defesa do levirato, a prática que estabelece o casamento da viúva com o seu cunhado, de forma a continuar a pertencer à família do marido; o autor argumenta que o levirato garante os direitos e a dignidade da mulher e dos seus filhos, pelo que eles não precisam de herdar do falecido, pois não perdem nada com a viuvez.
- Uma explicação do lobolo como mecanismo de assistência mútua, sendo comparado ao “dote no ocidente”. Para além disso, é salientado que o lobolo “permite dar vazão às necessidades sexuais” das mulheres, sem que elas tenham necessidade de “se sujeitar a uma multitude de homens diferentes”, ao mesmo tempo que estabiliza a sociedade, sem que as viúvas precisem de “se envolverem em relações de amantismo com homens casados”.
- Com a “abolição” do lobolo, diz o autor, a mulher tem que se prostituir para angariar sustento para os seus filhos menores, “escravizando-se em cada dia da sua vida” não já a um cunhado, mas a desconhecidos; aponta ainda outras consequências da “abolição”, como a má nutrição infantil e o surgimento do fenómeno dos “meninos de rua”.
- Uma defesa da poligamia, apresentada como uma “organização sócio-económica que tem por objectivo aumentar a produção familiar” e que é motivo de inveja dos “frígidos ocidentais”, que a vêm como uma “mera fonte de devassidão sexual”. Pelo contrário, o Sr. Kudjeka considera que a poligamia permite melhorar a alimentação familiar, a situação de saúde e de nutrição das crianças, libertando tempo para que estas possam ir à escola.
- Uma defesa dos casamentos prematuros, que apesar de terem aspectos “perniciosos”, são encarados como um bem, como uma forma de libertação da menina do assédio sexual de todos os homens, passando a ficar “sujeita” só a um homem, em vez de trabalhar para os pais e irmãos passa a trabalhar só para o marido, passa a ter alguém que se responsabiliza pelo seu sustento e segurança, e, finalmente, reduz-se a propagação do HIV/SIDA. O autor defende que se em sociedades de abundância esta prática é um crime, quando existe a pobreza as coisas são diferentes.
Paremos então para analisar sumariamente estas teses.
Antes de mais, como se disse a princípio, é de salientar que não se apresentam dados que nos permitam comprovar (ou não) a veracidade dos argumentos do autor.
Em segundo lugar, as explicações que nos são dadas são na sua maioria ingénuas e repousam em muita ignorância em relação à própria situação do país e à temática em geral. É assim que vemos, por exemplo, o autor a defender o “darwinismo social”, teoria mais do que denunciada nas ciências sociais, como suportando sistemas de exclusão e de dominação. Sobre o que não se diz ou se deturpa sobre a realidade social de Moçambique passo em frente, pois isso é por demais evidente.
Em terceiro lugar, ao longo de toda argumentação há uma posição implícita, apresentada como um axioma, em relação ao qual é impensável haver desacordo: as mulheres não são sujeito de direitos. Para o Sr. Kudjeka, as meninas e mulheres deveriam sentir-se agradecidas por terem um homem a quem se “sujeitar” (expressão dele, não nossa), não interessando em caso nenhum os seus interesses e as suas necessidades. Na realidade, na visão do mundo aqui defendida, as mulheres são centrais ao funcionamento destas instituições sociais, não como sujeitos, mas como objectos, dependendo a sua felicidade do respeito pela tradição. Tudo em nome de um bem superior, o da sociedade, a qual é dirigida pelos homens.
Em quarto lugar, na perspectiva do artigo a cultura é vista como um todo com fronteiras e internamente coerente. Esta visão já foi descartada pelas ciências sociais há várias décadas: a cultura não tem fronteiras, a não ser que elas sejam estabelecidas através da coerção política ou no contexto de nacionalismos culturais; pelo contrário, a cultura é heterogénea, fluida, emergente, contraditória, processual. Todos estes adjectivos tentam captar a indeterminação da ideia: tanto os valores morais como as normas da sociedade emergem como um conglomerado de ideias que advêm de múltiplos e complexos processos que incluem várias formas de contactos históricos ou actuais. Portanto, a cultura é dinâmica e tem-se transformado ao longo do tempo.
Finalmente, e seguindo este raciocínio, é referido que o discurso dos direitos humanos é estranho à cultura moçambicana (o autor não usa o plural, num país com tanta diversidade) e quem traz este discurso são as ONGs estrangeiras. Estas posturas não levam em consideração os numerosos conflitos locais e as reivindicações das mulheres ao longo destes anos de independência. É assim que, de repente, vimos a descobrir que o combate pela emancipação das mulheres não foi resultado de forças internas, mas de ONGs sinistras e estrangeiras com desígnios malignos a longo prazo!
Estes aspectos cobrem o amplo espectro das questões que nos surgem da leitura do artigo do Sr. Kudjeka. Muito mais se poderia dizer, mas a própria superficialidade dos propósitos defendidos não justificam maior detalhe.
Gostaríamos de concluir dizendo que a ignorância de quem escreve, conjuntamente com os seus preconceitos e valores patriarcais, se combinaram para produzir um texto verdadeiramente atentatório dos direitos e da dignidade das mulheres deste país. Um texto que cai directamente na categoria de “discriminação” com base no sexo, uma vez que abertamente se defendem práticas que lesam os direitos e até a integridade física das mulheres e meninas, como, por exemplo, os casamentos prematuros (aliás, Moçambique está na lista dos 10 países que ao nível mundial apresentam o pior cenário com relação a esta questão).
Perante isto, qual é a responsabilidade do semanário que não só publica o texto, como até lhe dá uma cobertura fraudulenta, ao enquadrá-lo numa rubrica que chama de “grande reportagem”? Como é que teses que abertamente advogam a inferioridade das mulheres e a necessidade da sua contínua subalternização podem ser publicitadas numa democracia e num Estado de direito? Esta situação só mostra quão ilusória é a democracia em que vivemos, pelo menos no que diz respeito às mulheres. Continuamos a ser excluídas dos direitos mais básicos à dignidade e ao respeito.
Maria José Arthur
WLSA Moçambique
A mensagem do meu artigo está profundamente distorcida pela análise amputada que dele foi aqui feita.Tentei explicar isso num comentário com 981 caraceteres (com espaços). Mas não foi aceite. Partilho com a Sra. Maria Arthur o repúdio, e aqui o reafirmo, por tais (e todas as outras) práticas atentatórias contra os direitos seja de quem for, em particular das mulheres e das crianças. É precisamente por isso que não partilho de modo nenhum com ela as estratégias que estão há anos a ser seguidas, sem sucesso. Porque condenar tais práticas não as vai alterar. O combate não se faz com o voluntarismo da emoção. Faz-se com a serenidade e a contundência da razão. Esta discordância entre nós está, aliás, definitivamente expressa quando ela proclama que “a própria superficialidade dos propósitos defendidos não justificam maior detalhe”. Para ela a mudança de estratégias que se revelam estéreis para alcançar os objectivos que se propõem é um propósito superficial!? Não está tudo dito?
A minha tese é que, e cito um parágrafo do meu artigo, que ela não mencionou: “Estas práticas não foram planeadas por ninguém, com intentos maquiavélicos, nem por depravação ou oportunismo, mas, antes, foram-se insinuando e firmando com o passar do tempo, em função das provas dadas como formas mais efectivas de responder à vulnerabilidade imposta pelas precárias condições concrectas de vida das comunidades rurais”. “Estou a fazer apologia destas práticas? Não. Estas práticas não têm que ser defendidas, promovidas ou não. Elas não são uma matéria de gosto ou de opinião. São um mecanismo objectivo, que resulta de determinadas condições.”
E, nesse contexto, de modo nenhum defendo tais práticas: “Não é preciso combater estas práticas culturais? É! Mas o combate não se faz com reuniões de consciencializaçã- ;o, com marchas, com camisetas e com cartazes. Não é o resultado que tem que ser combatido. O combate faz-se acelerando a eliminação dos factores que impõem essas práticas, que condicionam essas escolhas. Pegue-se nos fundos gastos em “workshops” de especialistas em estratégias de combate sobre esses problemas e em marchas condenatórias, pegue-se nos recursos dispendidos em dísticos, cartazes, camisetas e bonés e empreguem-se esses meios na implantação de uma rede de estabelecimentos comerciais e na colocação de tractores nas aldeias e abertura de fontes de água potável nas comunidades.
No que diz respeito às afirmações dela, em que me declara “ingénuo”, “ignorante” (mais do que uma vez), “preconceituoso”, “superficial”, elas falam por si: são argumenta ad hominem, e é sabido, desde há muito, quando é que alguém se vê forçado a recorrer a isso. Não preciso de explicar. Mas gostaria muito que ela tivesse atirado argumentos em vez de pedras. Mas, cada um só pode atirar aquilo que tem, não é? A minha tese não advoga “abertamente a inferioridade das mulheres e a necessidade da sua contínua subalternização”- , como me acusa. A minha tese declara abertamente a ineficiência das estratégias que vêm sendo adoptadas ao longo dos (últimos cerca de 35) anos para combater esses males! Em nome da mulher e das crianças! Não é com discursos inflamados condenatórios dos males sociais, que se combatem os males sociais. É com a alteração dos factores que os sustentam como prática social. Sem paternalismos (ou deverei dizer, sem maternalismos?)!
e isso mesmo