Breves
O tempo da revolta
A autora comenta o vídeo que circulou nas redes sociais e que mostra elementos da FDS (Força de Defesa e Segurança) a torturar e a assassinar uma mulher.
Há um antes e um depois. Um antes da morte gratuita e humilhante e um depois, quando nós assistimos em directo aos últimos momentos de sofrimento de uma mulher sozinha, desesperada e desesperançada, rodeada por predadores, de quem se calhar já só esperava a bala que pusesse fim à sua agonia. E com ela sentimos a dor no corpo, nos seios caídos, o peso do medo no peito e os olhos que já nada viam. E com ela sentimos a dor dos tiros que a jogaram no chão e a aniquilaram fisicamente, depois de ter sido já completamente destruída.
E por mais vividas e experientes que nos sintamos, com essa morte foi assassinada também a inocência que apesar de tudo ainda tínhamos, porque não poderíamos acreditar que a vida de uma mulher – afinal uma vida humana, embora alguns continuem a crer no contrário – pudesse ser destruída dessa maneira. Cada paulada que ela recebeu cavou mais fundo a nossa desilusão e cada riso triunfante aumentou o nosso ódio e o nosso nojo.
Não podemos impedir o sentimento de que depois de nos irem tirando direitos paulatinamente, agora roubaram-nos de vez a pátria, que já não nos atrevemos a sentir como nossa, das mulheres. São violações que ficam impunes ou nem sequer chegam à luz do dia, são leis que se ignoram a favor dos privilégios e preconceitos masculinos, são crianças de vida desfeita, é uma justiça comprada, ao serviço de quem paga e ainda tem Matalane. Matalane que está lá assim mesmo, há muitos anos, e que agora que se denunciou se minimiza: “Não são quinze grávidas, são só quatro”. E esse só doeu: só quatro vidas destruídas. Também no vídeo, foi só assassinada uma mulher!
E perante o horror mais absoluto e o inenarrável, não adiantam comunicados a condenar. Condena-se a perda da nossa humanidade? Condenam-se os predadores? E depois?
Escrevo este texto sentindo-me só e acuada. Sentindo-me órfã dos meus direitos. Sem saber se amanhã eu, a minha irmã, a minha amiga, a minha colega ou a minha filha estaremos em maior risco nesta sociedade onde os predadores andam impunes à luz dia, filmam as suas façanhas, riem-se sobre as vidas destruídas e ainda fazem bravatas. Nesta sociedade onde os predadores estão nas escolas, nos serviços e até no Parlamento, e onde a vida das mulheres, raparigas e meninas vale muito pouco.
Hoje não trago propostas, não trago esperança. Não consigo. Mas esta minha raiva, com a tua revolta e a nossa determinação, tem que trazer algo de bom.
Para todas as mulheres corajosas deste país, um grande abraço.
Maria José Arthur
Deixe um comentário