O Código Penal foi aprovado no Parlamento, mas mantém ainda normas discriminatórias
Associações da sociedade civil, organizadas em torno da Plataforma de Luta Pelos Direitos Humanos no Código Penal, reagem ao que consideram ser violações dos direitos humanos.
No dia 11 de Julho de 2014, a Assembleia da República aprovou de forma definitiva e em consenso o novo Código Penal em substituição do que vigorava no país há um século. Isto aconteceu depois de vários debates e alguma polémica em torno de alguns artigos do novo Código, que no entendimento da sociedade no geral e no das organizações nacionais da sociedade civil violavam flagrantemente os direitos humanos das mulheres e das crianças.
Na última versão recentemente aprovada foram retirados alguns dos artigos ofensivos contra os direitos das mulheres e das raparigas, como a possibilidade do violador se casar com a vítima e ter a pena suspensa (art. 223) e a não criminalização da violação conjugal.
As associações da sociedade civil, organizadas numa coligação informal, denominada “Plataforma de Luta Pelos Direitos Humanos no Código Penal”, apesar de reconhecerem os esforços que foram feitos, lamentam que persistam lacunas e violações dos direitos humanos, apontados e discutidos de maneira abrangente durante o processo de revisão.
É apontado, como violando directamente a Constituição da República, o seguinte:
1. Violação do princípio da igualdade – artigo 35 da Constituição
O artigo 35 da Constituição estabelece o princípio da igualdade e institui que todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política.
No entanto, existem no Código Penal aprovado algumas disposições que violam este princípio da igualdade constitucionalmente consagrado, sendo de apontar as seguintes:
Artigo 243 (crime de discriminação)
Esta disposição teve em vista materializar o princípio da igualdade, transformando num comportamento criminoso certas situações em que este princípio é violado. Com efeito, este artigo estabelece que será punido com a pena de prisão até um ano quem injuriar outrem com recurso a expressões ou considerações que traduzam preconceito quanto à raça ou cor, sexo, religião, idade, deficiência, doença, condição social, etnia ou nacionalidade e que visem ofender a vítima na sua honra e consideração.
No entanto, nesta enumeração das situações que podem constituir discriminação ficou de fora uma discriminação que é muito comum na nossa sociedade, a discriminação em função da orientação sexual. Esta discriminação contra pessoas de orientação sexual diferente é agravada pelo facto de ser muitas vezes consentida e até promovida por certos sectores da sociedade e também por, frequentemente, se traduzir em situações de violência.
A não criminalização da discriminação em função da orientação sexual constitui uma situação de discriminação contra as minorias sexuais, pois transmite a mensagem de que este grupo não carece de protecção legal tal como outras situações de vulnerabilidade que traduzam preconceito e que mereceram a protecção da lei (nomeadamente, quanto à raça ou cor, sexo, religião, idade, deficiência, doença, condição social, etnia ou nacionalidade).
Artigo 223 (Denúncia prévia)
Este artigo prevê que nos crimes de atentado ao pudor e violação (com excepção da violação de menor de 16 anos), os procedimentos criminais tenham lugar após denúncia prévia do ofendido, salvo nalgumas circunstâncias.
A gravidade dos crimes contemplados nesta secção justifica que o Estado intervenha para garantir a punição do agressor, tendo em conta o bem jurídico a proteger (a dignidade e integridade física e moral do ofendido), daí que se justifique que este crime seja passível de denúncia por qualquer pessoa (crime público) e não apenas por algumas pessoas (crime semi-público).
Pensamos que esta disposição é discriminatória não só em função do género (homem e mulher), mas também discriminatória em termos de direitos das crianças, ou seja, protege apenas uma parte deste grupo vulnerável deixando de fora outras crianças.
Consideramos esta disposição discriminatória em função do género, pois, apesar de em termos formais ela não fazer qualquer distinção entre mulheres e homens, verificamos que, em termos substantivos e de igualdade de resultados, as mulheres é que serão as maiores afectadas por esta disposição. Com efeito, uma disposição não se considera apenas discriminatória se, em termos formais, estabelece uma distinção entre homens e mulheres, mas também se em termos de resultado da sua aplicação provocar um impacto diferente e mais prejudicial para um sexo, relativamente a outro.
2. Violação do direito à privacidade – artigo 41º
O artigo 41 da Constituição da República estabelece o direito dos cidadãos à reserva da sua vida privada. No entanto, o nº 2 do artigo 258 do Código Penal parece estar em violação a este artigo.
Artigo 258 – Abertura Fraudulenta de Cartas
O nº 1 deste artigo estabelece que aquele que maliciosamente abrir alguma carta, papel fechado ou meios electrónicos de outra pessoa deve ser penalizado.
O nº 2 deste artigo dispõe, no entanto, que a disposição do nº 1 não é aplicável aos cônjuges, pais e tutores, quanto às cartas ou papéis de seus cônjuges, filhos ou menores que se acharem debaixo da sua autoridade.
Embora possamos compreender a aplicabilidade de tal disposição relativamente aos pais, no que diz respeito aos seus filhos, parece-nos, no entanto, inaceitável e violador dos direitos individuais dos cônjuges que esta disposição seja a eles aplicável. O que torna mais grave esta situação é o facto de o artigo reconhecer que a abertura da correspondência é feita “maliciosamente” e mesmo assim isentar da condenação quando tal acto é praticado cônjuges.
Esta disposição viola entretanto não só a Constituição da República, mas também a Lei de Família que estabelece como um dos principais suportes do casamento o respeito mútuo entre os cônjuges.
3. Violação do direito internacional – Artigo 18º e dos Direitos das Crianças – Artigo 47º
O artigo 18º estabelece que os tratados e convenções internacionais, uma vez aprovados, vigoram na ordem jurídica nacional. Tal é o caso da Convenção dos Direitos das Crianças e do CEDAW. Por outro lado, o artigo 47º protege especificamente as crianças.
Assim sendo, é inaceitável que o Código Penal não respeite a idade dos 18 anos, na protecção que deveria dar aos menores, não respeitando o princípio do “interesse superior da criança”. São os casos dos artigos:
Artigo 46 (Inimputabilidade absoluta) – estabelece 16 anos como idade da responsabilidade criminal
Artigo 219 (Violação de menor de doze anos) – só protege menores até aos 12 anos
Artigo 220 (Actos sexuais com menores) – só protege os menores até aos 16 anos
Artigo 223 (Denúncia prévia) – os crimes de natureza sexual só são crime público quando se trata de menores de 16 anos.
Para além disso, o novo Código Penal falha em proteger os menores que sofrem violência sexual no entorno familiar, através do artigo:
Artigo 24 (Encobridores)
Isenta dos crimes de encobrimentos os cônjuges e familiares, o que terá impacto na investigação de crimes de violência sexual contra menores, que vêm sendo cada vez mais frequentes. Com esta isenção que a lei provê, será quase impossível provar as denúncias.
4. Direito à vida – Artigo 24º
A Constituição garante o direito à vida e à integridade física e moral. Alguns artigos no novo Código Penal falham em responder a este requisito, desprotegendo as e os cidadãs e cidadãos. Vejamos:
Artigo 218 (Violação)
Há insuficiência de elementos tipificadores do crime de violação, pois o legislador apenas considerou a relação sexual por via de coacção moral ou física, deixando de lado a violação por penetração oral e por introdução de objectos, cada vez mais comuns nas denúncias deste tipo de crimes. Por outro lado, o regime de sanção previsto para certas condutas sexuais afigura-se brando, tendo em conta a repercussão negativa na vítima.
Os crimes de natureza sexual possuem uma carga significativa de hediondez, tal é a sua incidência na desvalorização da dignidade da pessoa humana. Daí justificar-se-ia um regime sancionatório mais severo, de modo a alcançar as finalidades retributivas e de prevenção das penas. Aliás, o facto de proibir-se até a aplicação do regime de penas alternativas aos crimes de violação sexual e cometidos contra crianças (art. 103), sinaliza em certa medida a gravidade destes comportamentos que merece repugnância ao nível da penalização.
Há uma tolerância sancionatória injustificada quando se sabe que os crimes sexuais estão umbilicalmente ligados a práticas sociais nocivas, como os casamentos prematuros ou mutilações vaginais (alongamentos dos lábios vaginais), ou mesmo com ligados a outros crimes, como rapto e tráfico de pessoas, cujos autores têm à disposição recursos económicos que lhes permite com certa facilidade pagar as multas. Estas características mereciam melhor ponderação por parte do legislador, e justificariam um regime de penas mais oneroso.
Artigo 222 (Agravação especial)
Apesar do novo Código Penal trazer alterações significativas no regime de circunstâncias qualificativas dos crimes e consequente agravação das penas, há uma injustificável lacuna em relação aos crimes contra a liberdade sexual cometidos por duas ou mais pessoas. A comparticipação de duas ou mais pessoas na acção com vista a violar a dignidade sexual, facilita sem dúvida a subjugação da vítima, ou seja, facilita o emprego dos meios de execução do crime. É uma lacuna grave que este aspecto não conste como uma agravante especial destes crimes.
5. Inconstitucionalidade da inclusão da Lei da Violência Doméstica no Código Penal
Relativamente ao Crime de Violência Doméstica que desde 2009, é tratado numa lei (Lei n.º 29/2009, de 29 de Setembro), especialmente aprovada para coibir esse tipo, a Comissão decidiu na última hora criar no novo Código, um Capítulo IX sob a epígrafe Violência Doméstica, de onde constam os art. 245 a 257 e nele incorporou os tipos legais de crime de violência doméstica que desde 2009 até esta parte estavam insertos na Lei da Violência Doméstica, dando-lhes ali uma definição superficialmente nova. É o caso da violência física simples, física grave, psicológica, moral, cópula com transmissão de doenças, patrimonial e social.
A incorporação da Lei da Violência Doméstica no Código Penal é precipitada e prematura a incorporação e por isso, de desaconselhar. A Lei da Violência Doméstica foi criada e aprovada pelo Estado moçambicano com o objectivo especial de promover os direitos humanos, mais especificamente os das mulheres como sujeitos de direito (não obstante a mesma ser aplicada indistintamente também aos indivíduos do sexo masculino), como forma de acabar com a situação de desigualdade existente entre esta e o homem em todos os campos. Ou seja, com a aprovação da Lei da Violência Doméstica o Estado reafirmou por meio de medidas legais o objectivo de minimizar as desigualdades de facto historicamente construídas em torno do homem e da mulher e com isso promover a igualdade de direitos entre o homem e a mulher.
O tempo de vigência desta lei é relativamente curto para se aquilatar com profundidade da sua aplicação prática e dos problemas que nesse âmbito se levantam, pois são quase nulos os estudos e registos sobre a problemática.
Ao incorporar-se a Lei da Violência Doméstica tal e qual se encontra actualmente no Código Penal aprovado, concluímos que a violência da qual vem sendo vítima a mulher moçambicana será com este instrumento agravada e não combatida eficazmente. Isto, a nosso ver, torna o referido Código materialmente inconstitucional, na medida em que com a promulgação se viola em termos materiais o princípio constitucional e universal da igualdade, já que está provado que a maior parte dos casos de violência doméstica levados a tribunal têm como vítimas o sujeito do sexo feminino.
O Estado Moçambicano obrigou-se perante instrumentos internacionais e regionais de protecção dos direitos humanos das mulheres, como a CEDAW e o Protocolo à Carta Africana relativa aos Direitos das Mulheres em África, através de acções positivas, a alcançar a igualdade material entre o homem e a mulher.
Portanto, o conteúdo do novo Código Penal no que se refere ao Capítulo IX – Violência Doméstica, contraria o princípio da igualdade material subsumido nos art. 35 e 36 da CRM. Ou seja, em última análise, sempre se poderá dizer que as incongruências criadas com a aprovação da Lei da Violência Doméstica, ao terem sido transpostas tal como se encontram, sem nenhuma reformulação para dentro do Código Penal, as mesmas irão permitir e perpetuar a situação de ineficácia das normas existentes no ordenamento jurídico-penal moçambicano tendentes a coibir e a mitigar as desigualdades entre homem e mulher, criadas pelo fenómeno da violência doméstica que entretanto não será por via judicial, como se pretendia, eficazmente combatido ou eliminado.
Essa é a conclusão evidente se entendermos que a incorporação da Lei da Violência Doméstica no Código Penal, pelo menos na parte referente as normas incriminadoras do tipo em questão, implica necessariamente uma revogação implícita no que diz respeito às normas constantes nos artigos em causa na Lei da Violência Doméstica, pois como veremos à seguir, as mesmas não podem vigorar em simultâneo.
Conclusões
Face às lacunas e soluções legais contidas no novo Código Penal acima apontadas, emergem questões de conformidade com a Constituição da República. De facto, tal é a sua importância que tem foro constitucional o direito à integridade física e moral e a proibição de tortura ou tratamentos cruéis ou desumanos (art. 40, n.º 1 da Constituição) que se traduz na inviolabilidade da pessoa no sentido de estarem proibidas todas as condutas que visem afectar o bem-estar moral, emocional ou físico da pessoa. Por outro lado, e face à cláusula prevista no art. 43 da Constituição, importa igualmente considerar o direito à dignidade da pessoa humana (vide art. 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art. 5 da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos), que se traduz no respeito pelo núcleo essência do ser humano.
A tutela da dignidade sexual pressupõe a existência de um sistema jurídico-penal sólido com vista a proteger as vítimas e sancionar os autores das condutas sexuais. A superação da ideologia embasada nos paradigmas da dominação masculina ou em concepções morais é um caminho necessário, e pode-se admitir que o legislador do novo Código Penal o tentou seguir.
Todavia, persistem diversos aspectos, entre os quais os acima apontados, que colocam em crise a dimensão jurídica e social da dignidade sexual e a merecida protecção requerida. Ainda convivem com a ultrapassada concepção de que a sexualidade deve ser controlada por uma pauta moral de comportamento, segundo os padrões ditados pela ideologia patriarcal, como sucede com a criminalização do atentado ao pudor e ultraje público ao pudor. A sexualidade deve ser reconhecida como um atributo da pessoa humana e como expressão da sua dignidade e liberdade, e não como um bem comunitário. Por outro lado, a benevolência das penas não confere um quadro de protecção eficaz e que tenha idoneidade para inibir condutas sexuais abusivas.
Neste âmbito, é de concluir que o novo Código Penal não garante eficazmente o direito à liberdade sexual, na medida em que persistem diversos obstáculos para efectivação da desejada e necessária protecção deste valor jurídico.
- Veja também o artigo no jornal @ Verdade de 15 de Agosto (em PDF)