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Brochura elaborada pela WLSA Moçambique sobre o problema da fístula obstétrica - um drama que atinge cerca de 100.000 mulheres em Moçambique.

Omitidas

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Leia mais sobre fístula obstétrica

Contra a violência de género

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A sociedade civil manifestou-se na inauguração dos X Jogos Africanos

 

Textos

Mulheres corajosas

Viagem no mundo das fístulas vesico-vaginais

Um texto do Dr. Aldo Marchesini

 

Panos a secar no HPB durante uma campanha

Panos de pacientes de fístula a secar no Hospital Provincial da Beira,
durante uma campanha, enquanto aguardam para serem operadas

Foto: Mercedes Sayagues

Introdução

O relato que se segue, escrito na primeira pessoa pelo Dr. Aldo Marchesini, é um depoimento apaixonado e emocionante de um cirurgião que dedicou a sua vida a salvar mulheres que vivem com fístula obstétrica, uma condição incapacitante e que leva à discriminação e ao isolamento social.

O Dr. Aldo Marchesini, italiano, é um sacerdote dehoniano, que trabalha em Moçambique, na província da Zambézia, desde 1975. Sensibilizado pela difícil situação das mulheres que sofriam de fístula obstétrica e que se chegavam aos serviços de saúde a pedir ajuda, começou a operar. Primeiro sozinho, depois formando os primeiros médicos e mais tarde interessando muitos outros profissionais de saúde. Os seus esforços deram fruto e hoje existe um programa nacional de combate à fístula obstétrica, do Ministério da Saúde. Mesmo sem ter ainda capacidade para responder a todas as demandas (calcula-se que 100 000 mulheres vivam com fístulas obstétricas e que surjam anualmente cerca de 300 a 400 novos casos), a fístula obstétrica está hoje na agenda nacional.

Dr. Aldo Marchesini

Dr. Aldo Marchesini

Foto: Mercedes Sayagues

 

Mulheres corajosas

Viagem no mundo das fístulas vesico-vaginais

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1. Deveis saber que…

Uma das últimas vezes que fui de férias à Itália, visitei em Roma alguns primos meus com os seus filhos e netos. Foi uma visita muito linda, cheia de tantas lembranças saudosas, porque com eles passara os anos da minha primeira infância. Eram os tempos da guerra mundial e com a minha mãe e a minha irmã Maria Teresa deslocáramo-nos à Toscânia. O pai partira soldado e nós tínhamos ido viver na família da avó materna. Moravam ainda na aldeia e, no raio de trezentos metros, tinha todos os tios e os meus primos. Esses anos ficaram indeléveis na minha memória, perfumados pelos afectos simples e gozosos dos primeiros anos da vida.

Tinham-me convidado para o jantar e o reaparecer das lembranças evocadas pela presença deles, criava uma atmosfera intensa, cheia de gozo e de vontade de contar coisas. Foi neste contexto familiar que a conversa se dirigiu para a minha vida de missão e para a actividade de médico em África. Um dos sobrinhos meus levantou-se a um certo ponto e disse-me: “Sabes, tio, que temos uma foto tua, de quando eras novo, numa revista das missões? Conservamo-la como uma relíquia de família. Agora vou buscá-la para ti.”

A minha primeira FVVVoltou com uma revistinha que trazia uma foto de quando eu tinha trinta anos, vestido com a bata branca de médico, ao pé da cama duma jovem sorridente. Reconheci logo o contexto: estava no hospital de Aber, no Uganda do Norte, e aquela jovem era a minha primeira paciente operada a fístula vesico-vaginal. Que emoção, ver aquela foto que pensava perdida para sempre!

“Sabeis – disse – quem é esta menina? É a minha primeira paciente de fístula! Julguei ter perdido para sempre a fotografia. Áris, deves absolutamente tirar uma cópia, antes que me vá! Quero-a conservar para sempre!”

“Por que, tio, estás tão ligado a esta foto?”

“Para o compreenderes deveria contar uma grande história, que acompanhou durante mais de trinta anos o meu trabalho em África. Necessitaria de muito tempo: não conseguiria acabar antes da meia-noite!”

“Deves, pelo menos, começá-la, tio!”

“É verdade, começa esta noite! Poderias depois acabá-la escrevendo uma história” – acrescentaram os outros.

“Está bem! Então começo …”

2. Era uma vez…

Quando cheguei a África pela primeira vez, era ainda jovem: poucos meses depois cumpri lá o meu vigésimo nono aniversário. Os meus superiores tinham-me encarregue de me preparar a fim de abrir um hospital missionário em Moçambique. A primeira coisa que fiz, depois duma visita de reconhecimento da situação sanitária da zona escolhida, foi a de aceitar o convite para ir ao Uganda ter com o padre e doutor Giuseppe Ambrosoli, dos missionários combonianos.

Era um cirurgião já experiente, que tinha fundado no meio da savana, na missão de Kalongo, um hospital de cerca de trezentas camas, com bloco operatório, enfermarias de cirurgia, medicina, maternidade e pediatria. Tinha também os Raios X e havia até uma escola para enfermeiras parteiras, muito apreciada no país. Convidara-me para passar com ele um ano, a fim de me ensinar, ao vivo, em primeira linha, os fundamentos da cirurgia que serve em África, sobretudo nas zonas rurais.

Aquele ano foi inesquecível! Operámos sempre juntos todos os casos de cirurgia electiva e todas as urgências que ocorreram: foram mais de oitocentas operações.

Entre estas houve dois ou três casos de fístulas vesico-vaginais. Os casos, é verdade, foram poucos, mas a importância que o padre Ambrosoli lhes deu foi muito grande. Explicou-me em detalhe como se formavam e descreveu as dolorosas consequências que iriam acompanhar essas jovens mães, desgraçadas para todo o resto da vida, a menos que não encontrassem um cirurgião que soubesse como se fazia para as reparar. Ele aprendera-o e considerava de extrema importância ensiná-lo também a mim.

Na quase totalidade da África, e em geral nos países em via de desenvolvimento, a rede sanitária de unidades hospitalares onde seja possível fazer uma cesariana é muito escassa. A maioria da população deve percorrer dezenas ou centenas de quilómetros (caso se use como unidade de medição a distância), ou empregar alguns dias (caso a unidade seja o tempo). É sabido que cerca de um parto em dez apresenta alguma complicação, capaz de pôr em perigo a vida e a saúde da mãe e da criança. Quando o parto se bloqueia, a cabeça do feto pára no interior da vagina e não consegue mais proceder.

Os ossos da cabeça comprimem os tecidos moles contra os ossos da bacia e a circulação do sangue se interrompe. Como consequência os tecidos morrem, forma-se um orifício e a urina começa assim a sair pela fístula directamente para a vagina, escorrendo pelas pernas abaixo.

Quando a compressão se der também entre cabeça e o osso sacro, comprimindo a vagina e o recto contra o sacro, acrescenta-se um segundo orifício, uma fístula recto-vaginal, através da qual saem fezes directamente pela vagina.

Parto obstruído. A cabeça fica encravada entre púbis e sacro

Parto obstruído. A cabeça fica encravada entre púbis e sacro

Qual é a evolução desta obstrução? Se não chegar uma ajuda do exterior, como uma cesariana, ou uma sinfisiotomia, ou uma ventosa ou o fórceps, que remova do canal de parto o feto, este morre e, com a decomposição cadavérica, a cabeça colapsa e pode passar. Outras vezes as contracções, sempre mais fortes, na tentativa de vencer o obstáculo, provocam a rotura do útero e a entrada das pernas e do tronco do feto morto na cavidade abdominal da mãe, gerando uma peritonite que em três ou quatro dias leva a parturiente ao óbito.

Se chegar a tempo a um hospital com cirurgia, poderá ser operada, mas quase sempre será necessário tirar o útero, muito infectado e em parte necrosado.

A maior parte das vezes essas complicações apresentam-se no primeiro parto, especialmente se a mãe é ainda uma adolescente ou se a sua altura é baixa, menos de um metro e meio. Existem, porém, complicações e fístulas que se formam durante a segunda, terceira ou quarta gravidez, por obstruções devidas ao mau posicionamento da cabeça do feto.

Estas mulheres sem sorte estão destinadas a ficarem sempre assim, ou até que consigam chegar a um cirurgião capaz de as operar e encerrar a fístula. Pode-se facilmente imaginar a vida dolorosa que as espera. A perca constante de urina, dia e noite, impele-as a procurar todos os meios para a absorver com panos volumosos, que em breve se embebem e começam a exalar mau cheiro. É necessário mudá-los com frequência, lavá-los e fazê-los secar, para os poder voltar a usar ciclicamente.

Se a fístula se formar no primeiro parto, quando ainda o casamento não está consolidado, quase sempre as mulheres são abandonadas e voltam a viver com a família de origem. O complexo do mau cheiro bloqueia-as em casa. Têm vergonha de ir ao mercado, às reuniões, à oração na comunidade, a visitar os conhecidos, a fazer, em suma, uma vida social como todas as outras.

Padre Ambrosoli não se fatigou muito para me interessar pelo problema. Como sempre, preocupou-se para que eu pudesse estudar algum texto que me fizesse aprofundar os seus ensinamentos e as suas sugestões. Levou-me à sua prateleira de livros e escolheu um deles, impresso na Inglaterra nos anos cinquenta, de um certo professor Chassar Moir, que mais tarde descobri ser um dos grandes mestres dessa cirurgia. Intitulava-se “Obstetric Fistula”. Era uma edição de valor, de papel de luxo, um pouco amarelado pelo tempo, com numerosas figuras, encadernado, com a capa rígida, de apenas uma centena de páginas, mas ricas da experiência duma vida inteira profissional. Numa das últimas páginas trazia uma estatística pessoal: contava ter operado mais de 850 fístulas!

Este número extraordinário ficou-me gravado na memória e muitas vezes me voltava à mente enquanto operava um caso. Quem sabe – dizia no meu interior – se conseguirei aproximar-me de uma tal estatística?

Não podia imaginar, na altura, o número de casos que teria encontrado, trabalhando uma vida inteira em África: certamente as ocasiões para operar fístulas foram muito mais que as que se apresentaram ao professor Chassar Moir na Europa!

Li o livro várias vezes, procurando mergulhar-me na sua realidade. Sugeria abertamente operar as pacientes numa posição inusual, aparentemente estranha, de barriga para baixo, com as pernas abertas e os pés em alto, segurados às perneiras com o auxílio de ligaduras para sustentar os joelhos.

O primeiro caso que me chegou à mão foi no hospital de Aber, onde trabalhava como único médico. Observei bem a paciente e pareceu-me que seria possível encerrar a fístula. Retomei o livro (padre Ambrosoli tinha-mo oferecido como encorajamento para o meu futuro trabalho) para imprimir bem na mente todas as passagens, e a seguir entrei na sala operatória. Era a minha primeira fístula que operava sozinho, sem a possibilidade de ter ajuda de um colega mais experiente.

O primeiro dia depois da operação, tirado o tampão vaginal, vi com grande satisfação que a paciente não molhava mais o lençol! Escrevi no processo: «Tirado tampão. Não molha.»

Também o dia seguinte o lençol mantinha-se seco. Mas no terceiro dia fiquei decepcionado: a minha primeira fístula molhava a cama!

A sutura cedeu, pensei. Mas logo me voltou à mente uma recomendação do padre Ambrosoli: “Nunca esqueças que a algália pode não funcionar bem, e parar de drenar urina. A bexiga fica cheia e o conteúdo faz pressão, passando entre a algália e a parede da uretra. A primeira coisa a fazer é mudar a algália”.

Esta lembrança tranquilizou-me e, antes de me deixar vencer pelo desconforto, chamei a enfermeira para organizar a troca da algália. Esvaziei o balãozinho que o prendia na bexiga e a retirei. Quando a nova entrou na bexiga, logo um fluxo de urina começou a escorrer e a entrar no saco colector. Era verdade: a bexiga estava cheia e aquela urina que molhava o lençol, não podendo mais sair pela algália, tentara forçar a via da uretra, escorregando ao lado da algália.

Que alegria experimentei! A minha primeira fístula estava a correr bem. Esperei com trepidação que acabassem os catorze dias previstos para deixar curar a sutura da bexiga. Não molhou mais a cama. Também depois, sem algália, o controlo da bexiga permanecia completo.

A satisfação que experimentei foi grande e senti a necessidade de imortalizar esta pequena vitória, tirando uma fotografia para a conservar para sempre!

O tempo do Uganda acabou alguns meses depois. Tive a ocasião de operar mais algumas pacientes e, graças a Deus, todas curaram completamente. Consegui encontrar-me com o padre Ambrosoli: desejava dar-lhe a conhecer como corria a experiência das fístulas e, sobretudo, queria agradecer-lhe por me ter introduzido naquele pequeno, mas especial, mundo das fístulas vesico-vaginais!

3. Chegada a Moçambique

Digo já que o projectado hospital missionário não se concretizou. Todavia, uma semana apenas depois da minha chegada, assinei o meu primeiro contrato com o Serviço Nacional de Saúde de Moçambique. Tudo o que aprendera no Uganda demonstrou-se logo útil.

Fui colocado provisoriamente no hospital de Quelimane. Dois meses mais tarde recebi a minha primeira nomeação, para o hospital rural de Mocuba, centro da Província da Zambézia, “onde todas as estradas se cruzam e a Zambézia se abraça”. Assim rezava a placa na entrada da cidade.

Era um hospital de 120 camas e eu era o seu único médico. O trabalho era extraordinariamente intenso e devia dedicar-me à cirurgia e à maternidade, à pediatria e à medicina. As operações eram numerosas e rapidamente comecei a ter uma ideia das patologias mais frequentes. Muito do trabalho estava relacionado com os partos. Fazia muitas cesarianas, mas apenas nos casos extremos. Frequentemente resolvia a obstrução praticando a sinfisiotomia.

É uma operação simplicíssima, que o padre Ambrosoli me tinha ensinado no Uganda, que se faz com anestesia local. Consiste em incidir a cartilagem da sínfise do púbis, de maneira que o diâmetro da bacia se alargue de um centímetro. Isso é suficiente para que a cabeça do feto possa passar.

Esta simples operação, inventada na Argentina pelo ginecologista Zarate, exige menos de dez minutos para a fazer. Pratiquei-a dezenas de vezes em Mocuba e certamente foi a primeira medida de prevenção, excluindo a cesariana, que apliquei para contrastar a formação das fístulas obstétricas! Ela pode ser feita onde não existe a sala operatória.

Como sempre acontece, quando alguém sabe curar uma enfermidade, os casos começam a aparecer sempre mais frequentes. Pouco a pouco a notícia ia-se difundindo e as pacientes com fístula começavam a chegar ao hospital por iniciativa própria, sem esperarem ser transferidas por algum enfermeiro.

4. Novos contextos

Aconteceu porém que, antes de acabarem dois anos, fui transferido para trabalhar no hospital do Songo, a vila nascida para hospedar os trabalhadores das empresas construtoras da grande barragem e central eléctrica de Cahora Bassa.

Pertencia a outra província, a de Tete, e as diferenças eram muitas. Enquanto que Mocuba era o centro onde todas as estradas se cruzavam, Songo estava situado na extremidade duma estrada em subida que não tinha nenhuma outra via de acesso ou de saída. A população que vivia no planalto era constituída por poucos milhares de pessoas e, além disso, toda a zona estava vedada e protegida por um serviço de segurança.

As primeiras semanas que lá passei fizeram-me sentir quase que inútil e subutilizado.

Eu era também o responsável sanitário do Distrito e portanto tinha deveres de assistência e de controlo de duas pequenas unidades sanitárias: Estima e Marara. Ia visitá-las todas as semanas, num dia fixo. Muito depressa a população que vivia ao longo dos 150 km do percurso começou a notar que todas as quartas-feiras passavam a ambulância do hospital com o doutor e dois enfermeiros. Em curto espaço de tempo constituíram-se três ou quatro lugares de consultas ao ar livre, ao longo da estrada, debaixo de algumas árvores grandes.

Em cada viagem trazia comigo, para o hospital, alguns doentes. Em geral eram pessoas que precisavam duma cirurgia. Entre elas, inevitavelmente, havia algumas com fístula vesico vaginal.

Fiquei no Songo quatro anos e as viagens de quarta-feira contribuíram para me fazer conhecer mais de perto o ambiente rural onde as pessoas viviam, adoeciam e onde, às vezes, os partos se complicavam e davam origem às fístulas obstétricas.

No fim desse período regressei à Zambézia.

Paciente de fístula

Paciente de fístula

Foto: Diário de Moçambique

Trabalhava no Hospital Provincial de Quelimane, muito maior e com mais movimento que os de Mocuba e Songo. Havia necessidade de aumentar o abastecimento de material que se consumia e o que mais me preocupava eram os fios de sutura. Para operar as fístulas descobrira um fio muito bom, de lenta absorção, de fibras torcidas, coradas de um roxo pálido, resistente e muito flexível. O seu nome era “Vicryl”. Era muito caro e o Estado fornecia-o em quantidade mínima.

Era necessário que me mexesse para encontrar algum benfeitor amigo que me oferecesse e enviasse da Itália bastantes embalagens.

Assim também o multiplicar-se da casuística tornava necessário poder dispor de um maior número de instrumentos próprios para esta cirurgia. Devia ter ferros suficientes para conseguir operar duas ou três fístulas no mesmo programa operatório.

O mundo das fístulas vesico-vaginais começava, portanto, a interpelar, por causa do abastecimento, novas pessoas residentes também fora de Moçambique. Entretanto a notícia desta cirurgia começava a difundir-se a outras províncias.

5. As “campanhas”

Em 1987 recebi um convite do Director Provincial de Inhambane, o doutor Caetano Pereira: “Doutor Marchesini, estaria disposto a vir durante um mês a Inhambane operar algumas dezenas de doentes portadoras de fístulas vesico-vaginais? Esta patologia é muito frequente na província e não temos nenhum cirurgião que as opere. Seria uma grande ajuda para a nossa população. Se aceitar, pensamos nós em seleccionar as doentes e concentrá-las no hospital provincial. Nos dias anteriores à operação poderão ficar numa casa de espera. Reservaremos também um número de camas suficientes para permitir o internamento das operadas.”

Aceitei o convite e dois ou três meses mais tarde estava tudo pronto.

Quando cheguei de avião ao Maputo, encontrei à minha espera um voo militar num Antonov da União Soviética. Era um avião de carga. Os assentos consistiam numa espécie de banco de ferro ao longo das paredes laterais do avião. A parte central estava reservada para a carga do material. O que mais lembro desse voo é o barulho infernal dos dois motores de hélice, que nos acompanhou durante a viagem toda.

O Antonov avançava lento, majestoso, envolvido no seu barulho. Não lembro que houvesse janelas para olhar fora. Podia apenas ficar sentado, sem falar, sem ideia da velocidade, mergulhado na consciência de que se tratava dum voo militar caracterizado, portanto, por regras desconhecidas por nós, simples hóspedes civis. Levámos uma hora a percorrer os quatrocentos quilómetros entre Maputo e Inhambane.

Quando a porta se abriu e desci do avião, reconheci logo, de pé, nas margens da pista, a figura sorridente do doutor Caetano Pereira. Fomos ao hospital para uma visita às enfermarias da maternidade e cirurgia e para cumprimentarmos as pacientes.

Concertámos o horário para o dia seguinte e, a seguir, o meu colega levou-me à residência do senhor Bispo de Inhambane, Dom Alberto Setele que, gentilmente, aceitara hospedar-me.

À distância de vinte e cinco anos as lembranças são pouco nítidas, mas conservo ainda na memória o acolhimento amigável dos dois instrumentistas e dos dois enfermeiros anestesistas. O seu número reduzido obrigava-os a prestar serviço de urgência em dias alternados. Mesmo assim, mostraram-se muito interessados para prestar a sua obra por esta nova cirurgia todos os cinco dias laborais de cada semana!

Na manhã seguinte, o doutor Pereira e eu começámos a examinar as pacientes. Todas tinham já o processo em ordem, com os seus dados pessoais e uma pequena história clínica. O primeiro exame sumário fi-lo no consultório, com uma exploração vaginal. Explicava ao doutor Pereira os pormenores a que se devia prestar atenção e de que se devia tomar nota, como o tamanho da fístula, a sua localização na vagina e assim por diante. Isto servia para classificar os vários tipos de fístulas e dava uma ideia sobre o desfecho da reparação.

No mesmo dia pusemo-nos a trabalhar e operámos a primeira paciente. Quando se começa uma cirurgia, até então nunca praticada num bloco operatório, há sempre muitas coisas para organizar. Uma destas era, no nosso caso, encontrar a maneira melhor para usar as perneiras. Era preciso escolher o posicionamento correcto das hastes que serviam para manter levantados os membros inferiores de maneira a permitir uma boa visibilidade ao cirurgião principal.

Devia-se manter pronto o aspirador, uma algália para drenar a urina, com o seu saco colector e dispor sobre a mesa do instrumentista os vários ferros especiais. A coisa mais curiosa para o pessoal foi a preparação duma cápsula com líquido azul escuro e uma grossa seringa. Isto servia para controlar, no fim, se a sutura tinha fechado bem: devia-se encher a bexiga de líquido colorido e observar atentamente que não saísse nem uma gota dele na vagina.

A primeira operação serviu de rodagem. A manhã seguinte foi muito mais simples. Houve também uma linda novidade. O doutor Igor Vaz, jovem médico que trabalhava no hospital de Chicuque, na outra margem da baía de Inhambane, conseguira atravessar o mar com o primeiro barco e chegar a tempo para o início das operações. Estava muito interessado para entrar, ele também, no pequeno mundo cirúrgico das fístulas vesico vaginais. Não iniciara ainda a pós-graduação em cirurgia, mas já operava habitualmente no seu hospital, resolvendo com sucesso os casos de base e os de urgência.

Nasceu logo entre nós uma amizade sincera e empenhada, cheia de entusiasmo e de dedicação para procurar resolver o maior número de casos possíveis.

O doutor Caetano conseguira reunir vinte e sete pacientes com fístula, provenientes dos vários distritos da província de Inhambane. Para as operarmos todas tínhamos à disposição três semanas. A casuística não era demasiado difícil e foi então possível permitir aos meus dois jovens colegas operar, como primeiros cirurgiões, quase todos os dias. No fim resultou que ambos tinham conseguido operar como cirurgião principal sete pacientes cada um.

Uma experiência tão intensa e realizada com empenho diário durante três semanas seguidas fazia esperar que fosse suficiente para lhes dar a coragem de continuar, mesmo sozinhos, a operar os casos mais simples.

Chegou o último dia e organizámos um encontro com as pacientes já operadas, que ficavam no hospital para completar as duas semanas de algália. Faltavam dois ou três dias para a festa do Natal. As pacientes estavam sentadas em bancos, ao longo das paredes duma sala. O doutor Caetano informou que eu devia voltar para Quelimane e que as queria cumprimentar. Era um ambiente de festa, pois praticamente todas tinham parado de perder urina e a satisfação lia-se-lhes nos olhos.

Passei em frente de cada uma para dizer “ciao” e apertar a mão. Assim fiz com as primeiras três. A quarta, porém, levantou-se com um salto e abraçou-me e beijou-me, com grande efusão. A seguir a ela todas as outras se levantaram para me abraçar e beijar. A alegria que experimentei foi grande e conservo-a intacta no coração até hoje, tantos anos depois.

Os seus beijos e abraços confirmaram-me no propósito de continuar a fazer todo o possível para doar de novo o sorriso a mulheres como essas, que já se consideravam marginalizadas por uma sorte cruel.

6. Nunca se acaba de aprender

Eram os anos da guerra e viajar era sempre um pouco difícil. Todavia acontecia que, de uma província ou outra, me chegasse um convite para ficar três ou quatro semanas para operar bastantes pacientes que não tinham quem as operasse. Viajei, assim, várias vezes à Beira, Tete e Pemba.

Os anos, entretanto, passavam e o doutor Igor Vaz concluiu a pós-graduação em cirurgia e prosseguiu com a de urologia. Depois de alguns anos tornou-se o director da urologia do Hospital Central do Maputo e docente universitário. Estes cargos ofereceram-lhe várias ocasiões para viajar, ver outras técnicas, conhecer outros colegas, outras mentalidades e aprender muito.

Começou a organizar no Hospital Central de Maputo seminários internacionais de urologia onde a cirurgia das fístulas tinha sempre um lugar de relevo. Participei eu também algumas vezes. E tive a sorte de aprender novas maneiras de abordar os problemas.

O contributo mais relevante foi o do doutor Thomas Raassen, um cirurgião holandês residente no Quénia. Tornámo-nos amigos e começou a perguntar-me que técnicas usava. Expliquei-lhe que operava as pacientes de bruços, como tinha estudado no livro de Chassar Moir e como tinha visto fazer ao padre Ambrosoli no Uganda.

Ficou bastante admirado, pois esta posição fora praticamente abandonada em todo o mundo e tinha sido substituída pela hiperginecológica, que consistia em posicionar a paciente deitada de barriga para cima, com as coxas abertas e flectidas sobre o abdómen. A marquesa operatória ficava inclinada na posição conhecida como de “Trendelemburg”, isto é com a cabeça mais baixa que a bacia.

Contei-lhe que tinha encontrado descrições de técnicas operatórias em vários atlas, mas que não tinha mais lido nenhum tratado de cirurgia de fístulas. Aproveitou para me falar do livro “Obstetric fistula”, de Robert Zacharin, um ginecologista australiano que trabalhara muitas vezes com os cônjuges Reg e Catherine Hamlin, considerados os mestres da moderna cirurgia das fístulas.

Eles abriram nos anos setenta na Etiópia, perto de Addis Abeba, um hospital dedicado, exclusivamente, às fístulas vesico e recto vaginais de origem obstétrica. Inspiraram-se no ginecologista americano James Marion Sims por todos indigitado como o pai desta cirurgia. Em 1855 ele fundara em New York “The First Fistula Hospital” (O Primeiro Hospital de Fístulas), totalmente dedicado a essa patologia.

Quando os Hamlin decidiram, em 1975, abrir eles também na Etiópia, um hospital totalmente dedicado às fístulas obstétricas, o doutor Reg Hamlin viajou a New York, conseguindo obter um dos tijolos do velho hospital do doutor Sims, que trouxe, triunfante, para Addis Abeba, para o conservar como um troféu caríssimo.

Deram ao seu hospital o nome de “The Second Fistula Hospital”, para sublinhar a ideal continuidade com o filão original. Operava-se, em média 700 pacientes por ano e rapidamente se constituiu, espontaneamente, uma escola onde se começaram a acolher cirurgiões de todo o mundo. A Escola continua, mesmo depois da morte de Reg e a reforma da cirurgia activa de Catherine, ultra octogenária.

Quando voltei a Quelimane, comecei a usar, eu também, a posição hiperginecológica e concluí que era infinitamente melhor que a de barriga para baixo. Comprei o livro “Obstetric Fistula” e estudei-o com paixão e grande interesse. Pude também aprender novos pormenores de técnica, que me ajudaram a melhorar os resultados.

Dr. Aldo Marchesini

Foto: Mercedes Sayagues

Houve um outro encontro internacional em que voltei a ver o Doutor Tom Raassen e aproveitei para lhe agradecer. Nessa ocasião foi oferecido a todos os participantes o livro do cirurgião holandês Kees Waaldijk, que há muitos anos se dedicava unicamente a operar fístulas obstétricas. Tinha um pequeno hospital rural na Nigéria do Norte, no estado de Katsina.

A partir do 1984 dedicara-se a essa cirurgia e recolhera uma infinidade de dados. Em dez anos operara cerca de cinco mil pacientes e em 1994 estava em condições de publicar a sua experiência no livro “Cirurgia das fístulas vesico-vaginais, passo por passo”, rico de fotos e de ensinamentos práticos. Apresentava também uma proposta de classificação das fístulas, sugerindo que se tornasse um instrumento de referência para comparar técnicas e discutir os resultados em diversas partes do mundo.

7. Não basta reparar fístulas: é preciso ensinar como se faz

Em Quelimane as pacientes com fístula chegavam em fluxo contínuo: uma, duas ou três por semana. Vinham em maioria das zonas rurais da província da Zambézia. Por vezes chegavam também de outras províncias. Sozinho, nunca conseguiria fazer algo de valioso para a grande maioria das pacientes.

As estatísticas epidemiológicas dizem que nos países pobres, com rede sanitária insuficiente, em cada mil partos há dois que se complicam com uma fístula.

Calculando que em Moçambique há cerca de um milhão de partos por ano, as novas fístulas deveriam ser mais ou menos duas mil, espalhadas em todo o território nacional, isto é duzentas em cada uma das dez províncias, variando conforme o número de habitantes.

A experiência das campanhas de fístulas demonstrou que era preciso ir ao encontro das pacientes, sem pretender que viajassem por centenas ou milhares de quilómetros.

Depois de Inhambane fui solicitado, de vez em quando – como já disse – para ir a outros hospitais provinciais para operar algumas dezenas de doentes. Fui assim à Beira, Tete e Pemba, várias vezes. Não encontrava, porém, muito interesse para aprender, por parte dos cirurgiões locais, enquanto que a coisa mais importante seria a de ensinar o maior número de pessoas possível. Era preciso encontrar cirurgiões que estivessem interessados a aprenderem!

O caminho foi progressivo. O primeiro passo dei-o na Beira, uma dezena de anos atrás. Depois da primeira campanha, em que operei sozinho uma quinzena de pacientes numa semana, vi que não podia continuar assim. Falei disso com o director, o doutor Josefo Ferro, que se mostrou sensível ao problema.

Sugeri-lhe que escolhesse, na próxima vez, um cirurgião periférico, colocado num distrito, para vir ajudar-me e aprender comigo. Estava convencido de que nos distritos seria mais fácil encontrar cirurgiões motivados, porque era na periferia que se formavam as fístulas e era nas mais remotas áreas rurais que as pacientes habitavam.

Dito e feito. A vez seguinte o doutor Ferro apresentou-me o cirurgião distrital de Nhamatanda, distante cem quilómetros da Beira. Era o doutor Caetano Dias. Fiquei contente, porque nos conhecêramos anos antes numa campanha de Tete. Ele mostrou grande interesse e muita habilidade cirúrgica. Operámos juntos quinze pacientes e foi nessa semana que o doutor Dias ficou conquistado por este mundo das fístulas! Entrando em contacto com essas pacientes deu-se conta de que não era só questão de aprender uma técnica. Havia necessidade de ir à procura delas nas áreas rurais, dando-lhes a conhecer que era possível curar com uma operação.

As mulheres que sofrem desta complicação ficam marginalizadas, porque a perca contínua de urina, dia e noite, não lhes deixa trégua. Procuram combater usando, como já disse, panos para absorver a urina que escorrega pelas pernas abaixo.

Apesar deste cuidado, é fácil emitir um mau cheiro, que as impede da convivência civil. Vivem afastadas, resignadas, com a convicção ancestral, velha como o mundo, de que esta enfermidade não tem cura.

Panos a secar no HPB durante uma campanha

Panos de pacientes de fístula a secar no Hospital Provincial da Beira,
durante uma campanha, enquanto aguardam para serem operadas

Foto: Mercedes Sayagues

Nos meses que se seguiram, o doutor Dias empenhou-se bastante: sensibilizou as parteiras dos centros sanitários rurais, falou com as autoridades tradicionais, que faziam de intermediárias entre os Administradores dos distritos e a população civil de um certo território. A vez seguinte trouxe consigo quase vinte mulheres, que podia, com verdades, definir como “suas” pacientes.

Esperava-me uma segunda bela notícia: chegara na tarde anterior, de Chimoio, capital da vizinha província de Manica, distante cerca de 250 km, o doutor Armando Melo, jovem ginecologista moçambicano, director do hospital daquela capital provincial. Soubera que na Beira corriam campanhas de reparação de fístulas cada seis meses, e tinha chegado espontaneamente, impulsionado pelo desejo de entrar como protagonista para resolver o problema destas doentes marginalizadas.

Tornámo-nos logo amigos todos os três, muito motivados, cheios de interesse para multiplicar as habilidades cirúrgicas de cada um de nós, através da prática apaixonada, de operar todos os dias, de segunda a sábado, durante cerca de dez horas de trabalho consecutivo, o maior número de pacientes possível.

Dávamos conta que, uma vez interiorizados os princípios desta cirurgia, o progresso na habilidade cirúrgica dependia de quantos mais casos fosse possível operarmos e quanto mais diferenciados fossem nas suas características.

O doutor Melo convidou-nos para realizarmos a campanha seguinte no seu hospital de Chimoio. Foi esta uma experiência muito positiva, quer para conhecer outras estruturas e outros colegas, quer para divulgar a realidade desta patologia, durante tanto tempo descurada pela medicina oficial, no ambiente duma outra província.

Sendo já três os médicos a saber reparar fístulas, pensámos como poderíamos alargar o número dos cirurgiões. Escrevemos um memorandum para o Ministro da Saúde, o doutor Ivo Garrido, e lho enviámos, para que tomasse conhecimento e o aprovasse.

A resposta não se fez esperar e para a vez seguinte encontrámo-nos seis na Beira! Acrescentaram-se os cirurgiões dos distritos de Búzi, o doutor Silva, de Vila Catandica, a doutora Ilda e de Tete, o doutor Gomes, pertencentes respectivamente, às províncias de Sofala, Manica e de Tete. Uniu-se também o doutor Hélder Miranda, director do serviço de cirurgia do Hospital Central da Beira.

As habilidades cirúrgicas difundiam-se no País e assim também a consciência e o empenho para procurar e conduzir à Beira as pacientes das zonas rurais mais longínquas.

A notícia destas campanhas de aprendizagem chegou também a Nampula. O director da cirurgia daquele hospital provincial, Doutor Bernardo Leite, convidou-me a ir ter com ele e pouco a pouco começou-se também nessa província muito povoada do Norte, a fazer campanhas regulares de reparação de fístulas e de aprendizagem.

Restava a Zambézia, a minha província: tornara-se a mais descurada quanto ao ensino! Procurei remediar, indo pessoalmente aos dois distritos principais de Mocuba e do Gurué e operando com cada um dos dois cirurgiões locais uma quinzena de pacientes numa maratona de seis dias consecutivos, iniciando de manhã e acabando à noite, depois do pôr-do-sol.

Esta experiência, a que chamei de “um distrito, um docente, um aluno”, teve aos meus olhos um grande êxito. O que o aluno presente conseguia aprender era bastante mais do que outros na modalidade utilizada na Beira e Nampula, em que éramos vários.

8. Nem todos os operadores de fístulas são cirurgiões

Com o aumentar do número das campanhas e com o recrutamento de novos cirurgiões, tornava-se sempre mais importante o problema dos abastecimentos da retaguarda. Operavam-se algumas centenas de pacientes por ano e os cirurgiões em formação eram já quase duas dezenas. A nossa finalidade era ensinar da maneira mais detalhada possível e de encorajar os colegas para que operassem sozinhos os casos mais simples, nos seus distritos periféricos.

É fácil dizê-lo em palavras, mas depois é preciso fornecer aos novos cirurgiões os instrumentos, que, como já tive ocasião de expor, são próprios desta cirurgia. Necessitam, por exemplo, várias qualidades de valvas vaginais, um tipo de porta-agulhas curvo, uma sonda metálica para usar com a uretra, uma pinça de dissecção especial, subtil e de ponta fina, que nós cirurgiões de fístulas baptizámos com o gracioso diminutivo de “Joaninha”, e assim para a frente.

Um conjunto de ferros próprios chama-se, em linguagem cirúrgica, de “kit”. Ora bem, a cada novo cirurgião autorizado a operar sozinho no seu distrito, era necessário oferecer um kit desses.

Kit para operar fístulas vesico-vaginais

Kit para operar fístulas vesico-vaginais

Em Moçambique não era possível encontrá-los. Era preciso recorrer a amigos e benfeitores de fora. O primeiro círculo era formado por pessoas que tinham a tarefa principal de coordenar: redigir a lista das coisas pedidas, telefonar aos revendedores, eles também tornados com o passar do tempo, membros da equipa das fístulas.

Pessoas gentilíssimas que se empenhavam, não só para procurar na praça internacional os vários produtores dos instrumentos, mas também a fornecê-los ao preço de custo, sem margens de lucro para eles. E como não lembrar com gratidão a multidão de benfeitores que contribuíam com as suas ofertas para reunir os fundos necessários para a aquisição e a expedição?

O material adquirido devia ser confeccionado em encomendas postais de 2 kg. Porquê mesmo dois quilos? Bem, o primeiro motivo é que os Correios aceitam apenas pacotes até dois quilos, até cinco ou até dez. O segundo é porque os até dois quilos são isentos de taxas alfandegárias e portanto as práticas para o seu levantamento em Moçambique são bastante simplificadas. Várias pessoas amigas colaboravam a procurar as caixas para as encomendas, a confeccioná-las, a embrulhá-las em papel e atá-las.

Para o material consumível, como fios de sutura, algálias, sacos colectores, etecetera, o trabalho devia ser feito, com muito maior frequência.

Sem a colaboração voluntária e sorridente de todas essas pessoas, não teria sido possível realizar as campanhas, nem distribuir os kits aos novos cirurgiões de fístulas. Penso então que a pleno título todas essas pessoas possam entrar a fazer parte da equipa dos cirurgiões de fístulas de Moçambique!

9. Pacientes, não só casos clínicos

Quero começar com um caso verdadeiro, que me aconteceu nos anos imediatamente seguintes ao fim da guerra. Encontrava-me em Mocuba para substituir o cirurgião local e decidi ir visitar o centro de Saúde de Mugeba, a cerca de quarenta quilómetros de estrada má.

Um pouco antes de chegar a Mugeba vejo, parado à beira da estrada, um grupinho de pessoas: uma jovem mulher, sentada sobre uma pedra, esgotada, uma mulher mais anciã com um recém-nascido no regaço e um homem. Paro, para perguntar se precisavam de alguma ajuda.

Respondem-me que a jovem mãe tinha dado à luz naquela noite a criança que estava no regaço da avó. A placenta não saíra e então estavam indo a pé, devagarinho, em companhia do marido, para o Centro de Saúde de Mugeba, para obter socorro.

Mando-os subir no carro e levo-os comigo. Era domingo e encontro só a irmã enfermeira, irmã Cecília, que vivia na missão ao lado e uma servente de turno.

Faço-me acompanhar à sala de partos e ponho o avental de oleado, depois calço as luvas estéreis para extrair manualmente a placenta. Felizmente sai sem dificuldade, mas me molho de sangue até ao cotovelo. Lavo-me numa bacia em que a irmã deita a água em cima dos antebraços com uma caneca.

Diz-me que há um caso muito complicado à espera de solução e me pede para o ver.

Mostra-me uma mulher deitada numa esteira, chegada de manhã, depois de algumas horas de caminho, levada aos ombros por quatro homens da família, em cima duma maca feita de ramos de árvore. A cabeça do feto está parada na vulva, e vêem-se os cabelos que se mostram entre os pequenos lábios.

Peço um estetoscópio para sentir os batimentos cardíacos do feto. Estão muito lentos, mas ainda estão presentes. Já é demasiado tarde para a levar até Mocuba para uma cesariana. A única solução possível é fazer uma sinfisiotomia. Pergunto se existe um bisturi. Diz-me que ficou apenas uma lâmina na confecção estéril e que, de cabos, não há nenhum.

Peço para me trazer uma seringa descartável e injecto lidocaína na região do púbis, para fazer a anestesia local. Segurando a lâmina entre dois dedos e guiando-me com o indicador da mão esquerda enfiada na vagina, incido a pele e depois aprofundo até cortar a cartilagem da sínfise púbica. Sinto a bacia abrir-se ligeiramente e aquele centímetro de diâmetro ganho é suficiente para que a cabeça passe e, em menos de cinco minutos o feto saia. Não respira, mas está vivo. Deito-o numa mesinha e com uma gaze entre os meus lábios e os dele, inicio a respiração boca a boca.

Cada três respiros, paro para fazer a massagem cardíaca. Continuo assim durante mais de meia hora. Ausculto o coração apoiando a orelha sobre o tórax. Sinto um batimento de vez em quando. Continuo ainda um pouco, mas depois devo dar-me por vencido. O feto não recuperou.

Volto à mulher. Faço sair a placenta massajando o fundo do útero e depois faço um toque vaginal. Os tecidos estão em grave sofrimento e semidestruídos. Não se pode fazer outra coisa a não ser esperar. Logo que o tecido necrosado se descolará, formar-se-á uma fístula vesico vaginal…

De histórias parecidas escutei muitas, mas só relatadas: “começaram as dores de parto, chegaram as mulheres da família que viviam ali em volta para fazer força sobre a barriga, mas nada! Por fim tomou-se a decisão de ir à maternidade do Centro de Saúde da zona, distante alguns quilómetros. Um verdadeiro calvário, com dores sempre mais fortes. A parturiente foi carregada sobre uma bicicleta, conduzida à mão, enquanto alguém a segurava e procurava dar-lhe coragem. Na maternidade a parteira a examinou e deu-se conta de que a cabeça não passava.

Era preciso levá-la a um hospital com bloco operatório para fazer uma cesariana. O hospital estava demasiado longe. Era preciso um carro. Procurou-se telefonar para mandar vir a ambulância. Ninguém tinha telefone e foi-se à estrada para pedir uma boleia a algum carro que passasse por ali. Por fim chegou-se ao hospital e o cirurgião residente fez a cesariana”.

O feto muitas vezes já está morto. Se o útero está roto, a cesariana transforma-se numa histerectomia. Mais vezes o útero não rompeu, mas pode acontecer que a cirurgia praticada nesse útero com a cavidade já infectada depois de tantas horas com as membranas rotas, abra a porta, através da ferida, para fazer penetrar os germes na espessura do órgão, provocando uma sépsis. Um dia ou dois depois torna-se evidente uma peritonite e é necessária uma laparotomia de urgência para tirar o útero infectado.

Quando vivi o episódio de Mugeba, contado acima, com a história das duas mulheres unidas pelo drama imprevisto das complicações do parto, vi-me interpelado em primeira pessoa, vendo com os meus olhos, sentindo com os meus ouvidos, tocando com as minhas mãos. Como é diferente a realidade ouvida de fora nas palavras duma narração e vivida por dentro, tomando parte como actor!

 

Jovem, 16, com fistula obstétrica; Inhambane

Jovem, 16, com parto obstruído durante três dias num distrito. Quando chegou ao Hospital Provincial em Inhambane, o bebé estava morto e já tinha uma fistula obstétrica

Foto: Mercedes Sayagues

Queria também contar um outro aspecto complementar, que faz parte, ele também, do mundo interior vivido por essas mulheres, menos dramático, talvez, mas sempre de alguma maneira fonte de sofrimento.

Parto de um caso concreto. Tinha ido a Pebane, junto com um grupo de colegas, para ver a que ponto estavam os trabalhos de preparação dum pequeno bloco operatório no centro de saúde daquele distrito, tão fora de mão, na costa do Oceano Índico. Distava trezentos quilómetros, quer de Mocuba quer de Quelimane, ambas ao sul, e era o ponto de confluência de todos os casos de complicações obstétricas duma imensa área, que se estendia por outros duzentos quilómetros para o norte, para terminar na beira do rio Ligonha.

Estávamos para subir no carro, quando sinto gritar o meu nome por uma mulher que acabava de descer da bicicleta do irmão dela, que corria ao nosso encontro agitando as mãos. Era uma jovem paciente de fístula obstétrica que tinha observado em Quelimane e tinha programado para a operar mais ou menos naqueles dias. Soubera que estava em Pebane e vinha para concordar melhor a data da sua baixa.

Disse-lhe para chegar na semana seguinte. Ficou contente e para me agradecer beijou-me, quando lhe dei a mão para a cumprimentar. No dia seguinte partimos para Quelimane e na viagem a ambulância capotou. Fiquei vivo por milagre e tive de me submeter a tratamentos e reabilitação durante cerca de nove meses.

Aquela paciente, que chamarei Jolita, fez de facto trezentos quilómetros na semana seguinte. Mas não me encontrou em Quelimane. Teve que regressar triste para Pebane e ficar lá para me esperar até que curasse. Reapareceu quase um ano depois, quando se espalhou a notícia de que eu tinha regressado.

Começou a juntar de novo o dinheiro para conseguir pagar pela segunda vez o bilhete e finalmente, um dia, apresentou-se no hospital para ser operada. Foi operada e em Quelimane conheceu um agente de serviço do hospital que se apaixonou por ela e lhe pediu para se casarem. Dois anos depois nasceu, por cesariana, uma linda criança.

Há algo de doloroso em tantos acontecimentos deste tipo. Quando a paciente passa da resignação por pertencer a uma condição de marginalização e humilhação sem saídas, para o conhecimento que, aliás, é possível serem operadas e curarem, a esperança volta a brilhar na vida e concentra-se na espera gozosa da data estabelecida para a operação.

Finalmente chega o dia e quando já parecia tudo chegado ao fim, surge uma complicação que obriga a um adiamento para uma data futura, envolvida na incerteza.

Estas pacientes são mulheres extraordinárias, que o longo sofrimento habituou à suportação, que a marginalização consolidou numa posição de humildade e de sem direitos na sociedade.

Sabem suportar com grande força de ânimo os adiamentos e as modificações dos programas.

Podemo-lo constatar tantas vezes nos anos das nossas campanhas. Elas chegam ao hospital em número frequentemente superior ao que conseguimos operar. Fazemos os exames para a classificação, controlamos que não haja impedimentos de saúde para a anestesia e para a operação, depois preenchemos uma lista com as datas operatórias para cada uma.

Quase sempre conseguimos operar todas as que estão presentes no primeiro dia. Mas as chegadas continuam durante toda a duração da campanha. Algumas conseguimos que sejam acrescentadas, mas não é possível satisfazer todas.

Devemos convocar as últimas e explicar-lhes que não conseguiremos operá-las. Deverão voltar para casa, por vezes distante mais de cem quilómetros e voltar dali a seis meses, para a próxima campanha.

Muitas, é verdade, choram pelo desconforto e a desilusão. Choram, porém, silenciosamente, sem se queixarem e sem insistir. Recolhem as suas trouxas e voltam para casa. Mas não desistirão. Sustenta-as a esperança de que, na vez seguinte serão operadas. A sua humildade e força de ânimo são para nós a melhor lição que podemos receber!

10. Nasce o Programa Nacional

Mesmo a nível mundial as coisas estão evoluindo. A patologia das fístulas obstétricas saiu da lista das doenças esquecidas, para entrar na das patologias privilegiadas pelos objectivos do terceiro milénio da Organização Mundial da Saúde.

Os vários governos do mundo, sobretudo da faixa tropical, foram solicitados para darem importância nos seus programas a esta realidade, até à data considerada sem importância, mas que afligia milhões de pessoas e famílias. Era urgente que se elaborassem planos e programas para enfrentar com decisão todos os aspectos, isto é: prevenção, tratamento, reintegração e reabilitação social das operadas.

Foram publicados vários princípios guia para cada um dos aspectos. Começaram-se a realizar encontros internacionais de especialistas para fazer crescer a consciência e encorajar as iniciativas. Moçambique também aderiu ao convite e comprometeu-se com a comunidade mundial, para redigir a sua própria estratégia. Neste contexto nasceu o Programa Nacional de Fístulas Obstétricas. O doutor Melo foi nomeado director e o doutor Igor Vaz assessor. Com a passagem de núcleo cirúrgico espontâneo para Programa Nacional, cada campanha tornou-se um evento que emana directamente do gabinete do Ministro.

11. Cirurgias diversificadas

As modalidades com que uma fístula se pode apresentar são bastante diversificadas. Para cada variedade há maneiras diferentes para as reparar. Vai-se dos casos simplicíssimos até aos de extrema dificuldade, que exigem frequentemente três horas ou mais de trabalho bem concentrado. Algumas variedades não se consegue operá-las por via vaginal. Torna-se necessária uma laparotomia, isto é uma cirurgia “de barriga aberta”.

Os casos mais complexos operamo-los nas campanhas provinciais, ajudados pelos alunos, para lhes mostrar as exigências avançadas duma cirurgia muito especial. Tais casos, porém, não se deixam operar nos distritos e são encaminhados para cirurgiões mais experientes.

É preciso saber que, infelizmente, existem também casos inoperáveis, que apresentam uma destruição quase completa da bexiga ou uma retracção cicatricial total que deixa uma abertura vaginal do tamanho da ponta duma lapiseira.

Que fazer, então?

Uma solução existiria: a que se adopta quando se deve tirar a bexiga por completo, por causa de um tumor maligno. Cortam-se os ureteres e reimplantam-se no trajecto terminal do intestino. A continência fica segurada pelo esfíncter anal, que normalmente retém a urina com facilidade.

É, como se pode compreender facilmente, um extremo remédio.

Em presença de casos de cancro não há hesitações. É a única alternativa para poder viver. Mas para as mulheres com fístulas, nascem dúvidas. O desvio dos ureteres para o intestino traz consigo riscos reais de uma infecção ascendente: os germes presentes nas fezes podem subir ao longo dos ureteres e provocar graves infecções renais, com sério perigo de morte.

Se esta complicação se apresentar numa mulher que pode com facilidade recorrer a um hospital suficientemente abastecido, o risco é menor: fortes antibióticos, nas doses certas, conseguem controlar o perigo.

Não é, infelizmente, assim para muitas das pacientes com fístulas. Elas vivem, mais frequentemente, em áreas rurais remotas, de difícil acesso, sem hospitais suficientemente apetrechados nos arredores. Além disso deve-se considerar o nível de instrução destas pacientes, que, na maioria dos casos são analfabetas e paupérrimas.

Que fazer, então?

É um dilema sério. Em vários contextos cirúrgicos africanos escolheu-se assim: melhor continuar a perder urina, com uma esperança de vida normal, mais do que viver sem se molhar, mas com o perigo real de viver alguns (ou muitos) anos menos que a média.

Nós operámos bastantes nos anos passados, mas devemos dizer que só de pouquíssimas temos tido notícias. A nossa posição fez-se ultimamente mais prudente, depois dos encontros internacionais em que se levantou o problema. Estamos à procura de estatísticas pós-operatórias de diferentes partes do mundo: desejamos ter um pouco mais de conhecimentos para tomar decisões iluminadas, especialmente nos casos das pacientes que insistem para desviar a urina.

12. Conclusão

É um problema de consciência que acrescenta dramaticidade ulterior à situação destas pacientes sem sorte. Um motivo a mais para olhar com simpatia e proximidade estas mulheres corajosas e tão provadas.

Felizmente tais casos são em percentagem reduzida, menos de um sobre dez, na nossa experiência.

A sua existência torna mais tocante o panorama das fístulas obstétricas e reforça ainda mais a decisão de as ajudar com todas as forças.

Sobretudo, porém, leva a sublinhar que a coisa mais importante é a prevenção. Deve-se conseguir fazer de maneira que as fístulas não se formem!

A solução final pode ser só esta, como já acontece nos sistemas sanitários plenamente desenvolvidos.

Entretanto, enquanto se luta para chegar aí, continuaremos a empenhar-nos para dar dignidade e sorriso a estas mulheres extraordinárias: pacientes com fístulas, amigas queridas!

 

Gurué, 17 de Janeiro de 2013

Aldo

Dr. Aldo Marchesini

O Dr. Aldo Marchesini

Foto: Mercedes Sayagues

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Mulher e Lei na África Austral - Moçambique