Breves
Família, cultura e violência doméstica contra as mulheres
A propósito do artigo 37 da Lei contra a Violência Doméstica, que trata da salvaguarda da família, este texto interroga-se sobre que tipo de família deve ser protegida: a família que ama e protege os seus membros, ou aquela em que as mulheres e crianças são violentadas?
Da aprovação na generalidade da Lei da Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher, à sua aprovação na especialidade, foram introduzidas profundas alterações na proposta de lei. Uma delas diz respeito ao artigo 37, que foi acrescentado à última hora, pois não constava do projecto da lei, onde se estabelece que “A aplicação da presente Lei deve ter sempre em conta a salvaguarda da família”.
Este artigo suscita sérios problemas na sua interpretação, na medida em que não se consegue perceber o que é que o legislador quis dizer com salvaguarda da família. A questão que se coloca é: estaremos a salvaguardar a família tentando uma reconciliação entre a vítima e o agressor?
Começando por analisar a Constituição da República de Moçambique (que é a nossa lei mãe), no nº 1 do artigo 119 estabelece-se que “a família é o elemento fundamental e a base de toda sociedade”. Vai ainda mais longe ao afirmar, no nº 2 do artigo 120, que a família “é responsável pelo crescimento harmonioso da criança e educa as novas gerações nos valores morais, éticos e sociais”. Podemos perceber, com estes artigos, que a família tem um papel fundamental na sociedade, na educação e na socialização dos seus membros.
Aliada aos princípios acima referidos, a Lei da Família consagra no nº 2, do artigo 1, “a família constitui o espaço privilegiado no qual se cria, se desenvolve e consolida a personalidade dos seus membros e onde devem ser cultivados o diálogo e a entreajuda”. Outros artigos da Lei da Família dispõem ainda:
“À família incumbe, em particular: (…) d) Assegurar que não ocorram situações de discriminação, exploração, negligência, exercício abusivo de autoridade ou violência no seu seio” (Artigo 4, Lei da Família, 2004).
“Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, confiança, solidariedade, assistência, coabitação e fidelidade” (Artigo 93, Lei da Família, 2004).
Ora, sabemos que muitas vezes a família não é o lugar calmo e pacífico que tanto se anseia e se idealiza. Conforme se vai conhecendo melhor a realidade e consoante se perde o medo de denunciar, vêm à tona muitas evidências de famílias que vivem em situações violentas e de grande perigo para as mulheres e, em consequência, para as crianças também. A violência doméstica contra as mulheres tem um profundo impacto nas vidas de todos os membros da família, atingindo especialmente as próprias mulheres, vítimas directas, mas também as crianças e outros membros.
Com toda a evidência, o Artigo 37 não pretende salvaguardar a família violenta, a família onde as mulheres sofrem quotidianas violências e por vezes encontram a morte, e onde as crianças não se sentem seguras e temem pela sua integridade física.
No entanto, apesar da violência doméstica contra a mulher ser agora um crime e de carácter público, quando as pessoas afectadas por esta violência procuram por ajuda e justiça por quem é de direito, os seus casos nem sempre são resolvidos, por vários motivos. Um deles tem a ver com a visão que os aplicadores da lei têm em relação ao papel da mulher na sociedade. Estas ideias e concepções sobre qual é o papel das mulheres na sociedade, marcadas por representações sociais próprias das culturas locais e patriarcais, interferem negativamente na interpretação e aplicação da Lei. Na sua perspectiva, a agressão do homem pode-se tornar “justificável” quando o comportamento da mulher foge do padrão daquilo que é culturalmente aceite.
Em nosso entender, os aplicadores da lei, porque são seres humanos, pertencem a uma determinada cultura e com ela se identificam. Têm, portanto, as suas próprias crenças, ideais e valores, transportando esse tipo de preconceitos para a resolução de casos concretos. No entanto, esta interferência entra em confronto directo com o próprio juramento que os magistrados fazem ao entrar em funções, que reza o seguinte:
“Eu (nome) juro por minha honra aplicar fielmente a Constituição e demais leis em vigor e administrar justiça com imparcialidade e isenção, no respeito pelos direitos dos cidadãos e na defesa dos superiores interesses do Estado moçambicano” (Artigo 21, Lei n.º 7/2009: Estatuto dos Magistrados Judiciais).
Concluindo, podemos afirmar que, a família deve ser um lugar onde a felicidade é para todos os membros. Só assim ela será a base de uma sociedade equilibrada, acolhedora e justa, onde todas/os nos sentimos amadas/os, seguras/os e felizes, tal como preconiza a lei no país.
Salvaguardemos a família que educa e protege os seus membros, mas lutemos contra situações familiares injustas e cruéis para mulheres e crianças.
Por Berília Cossa
Referências:
MOÇAMBIQUE, Lei nº 29/2009, Lei sobre a Violência Doméstica praticada contra a Mulher. BR, I SÉRIE, nº 38, de 29 de Setembro de 2009.
MOÇAMBIQUE, Constituição da República, revista em 2004, BR nº 51, de 22 de Dezembro de 2004.
MOÇAMBIQUE, Lei nº 7/2009, Estatuto dos Magistrados Judiciais. BR, I SÉRIE, nº 10, de 11 de Março de 2009.
MOÇAMBIQUE, Lei nº 10/2004, Lei da Família, 2004. BR, I SÉRIE, nº 34, de 25 de Agosto de 2004.
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