Breves
Do direito a lutar por uma vida sem violência
Nota escrita para ser publicada como direito de resposta. Como o assunto diz respeito à proposta de lei contra a violência doméstica, achamos importante divulgá-la.
No dia 21 de Maio de 2006, no jornal Domingo, foi publicado um artigo assinado por Mini Macatai Mathendja, obviamente um pseudónimo, onde:
- Se defendia a imutabilidade do Direito;
- Se procurava mostrar o erro que foi ter aprovado a Lei de Família, apesar da pressão das “meninas rancorosas do Fórum Mulher”;
- Se procurava alertar para não se cometer o mesmo erro com a aprovação de uma Lei contra a violência doméstica.
Na verdade, muitas mais coisas neste artigo merecem discussão, mas, antes disso, esclareçamos alguma confusão sobre o Direito:
- O Direito é um conjunto normativo que responde às necessidades da organização social. Isto significa que a sua evolução corresponde às mudanças da ordem social. Acontece que é a sociedade com os fenómenos e os mecanismos que a estruturam, que permite a produção de reguladores que são (mais cedo ou mais tarde) reflectidos em leis adoptadas pelos Estados. Portanto, o Direito evolui como qualquer outro campo de conhecimento: tal como a matemática e a física é a reflexão sobre novas realidades empíricas que permite o avanço científico.
- Não se escreve hebeas corpus, mas sim habeas corpus.
- O Direito não contém nada que não se encontre na realidade social, pois é essa realidade que impõe a necessidade de uma regulação; por exemplo, se nunca tivessem existido roubos não haveria legislação sobre esse crime. No entanto, para que haja lei, não basta que os fenómenos existam: é preciso que sejam regulares, estáveis, e que a sua ocorrência careça de respostas que só o Estado pode dar. Para que haja nova legislação, não é contudo suficiente a existência dos fenómenos que ameaçam a estabilidade social, é preciso que os actores sociais se mobilizem e exerçam os seus direitos de cidadania.
Assim, se o Direito tem como função articular e dar corpo a novas situações e problemas, interrogamo-nos: a que novas realidades corresponde o surgimento da Lei da Família e do Ante Projecto da Lei Contra a Violência Doméstica?
O articulado do Código Civil que antes da aprovação da nova Lei de Família regulava as relações na esfera familiar, datava de 1966, incorporando no seu conteúdo disposições que contrariavam os princípios constitucionais. A grande novidade na nova Lei é a consagração da igualdade entre homens e mulheres na vigência do matrimónio. Haverá alguém que ache que a Constituição não deve ser respeitada? Exigir os direitos que a Constituição do país nos dá, é ou não é um dever de todos os cidadãos? Ou será que o Sr. Mini Macatai Mathendja nos está a tentar dizer que a Lei de Família foi aprovada para “ficar bem na fotografia”, mas que afinal ninguém concorda que as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens?
Por favor, se esse é o caso, falemos claro. E que também fique claro que nós, activistas dos direitos humanos das mulheres, estamos cansadas de insultos. Nós não somos “as meninas” nem as mulheres de ninguém (“as nossas mulheres”). Somos cidadãs de pleno direito a exercer os nossos direitos de cidadania. E como tal exigimos respeito.
O ponto central do artigo é a proposta de lei contra a violência doméstica. E aqui podemos apercebermo-nos de que a posição do Sr. Mini Macatai Mathendja é a seguinte:
- As mulheres que propõem a lei são rancorosas (rancor, s.m. – Ódio profundo; grande aversão). Têm rancor a quê? Aos homens que voltam bêbados a casa e ainda gritam com a esposa ou parceira e lhe batem, forçando-as a ter relações sexuais. Perguntamos: haverá alguém que não tenha “ódio profundo” ou “grande aversão” a este tipo de comportamento? Aparentemente, o Sr. Mini Macatai Mathendja acha ser este um comportamento normal, ou não insultaria quem honestamente quer propor um instrumento legal para criminalizar e conter estas agressões.
- Esta proposta de lei abre espaço para a vigarice das mulheres. Mais outro insulto, embora não explicado.
Sr. Mini Macatai Mathendja, a legislação que actualmente é aplicável à resolução dos conflitos domésticos data do século XIX e revela graves lacunas conceptuais no que respeita a entender a natureza sociológica do fenómeno da violência de género e da violência doméstica. A necessidade de combate a esta forma de violência afirma-se cada vez mais e é até um compromisso assumido pelo próprio governo, expressando o nível de consciência de amplos sectores da sociedade. Como já dissemos, o direito não é uma abstracção, mas um produto de relações sociais, a expressão jurídica da distribuição de poder numa dada situação. Como tal, o direito deve estar ao serviço das necessidades e das perspectivas das pessoas, respeitando os seus direitos básicos.
Não é mais admissível que as mulheres tenham de suportar maus-tratos físicos, psicológicos e económicos por parte dos seus maridos ou parceiros, enquanto o Estado e todos os cidadãos viram a cara para o lado e fingem que nada acontece. Chega de agressões, chega de assassinatos! E este não deve ser um problema que preocupe só as mulheres. Todos os cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres, deverão mostrar um salutar rancor, ódio profundo ou grande aversão à violação grosseira e ultrajante do direito das mulheres à sua integridade física, à sua dignidade e à sua segurança.
O Conselho de Direcção do Fórum Mulher
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