Breves
Depois da feminização do SIDA, temos a feminização da culpa
Ao longo dos últimos anos, ficou clara a emergência do fenómeno da “feminização da SIDA”, o que significa que as pessoas contaminadas com o HIV são não só mais jovens, como também mulheres.
O reconhecimento desta situação, devido sobretudo à vulnerabilidade física das mulheres e à estrutura das relações de género que as privam de poder para decidir sobre o seu próprio corpo, tem estado na origem de um conjunto de iniciativas, entre as quais a criação de um grupo especial de trabalho a mando do Secretário Geral das Nações Unidas. Entretanto, internamente, ao longo das várias iniciativas governamentais, ao nível nacional e provincial, o problema da feminização da SIDA e a desigualdade de poder entre os géneros, não são sequer abordados.
Apesar de toda a proclamada preocupação com a expansão desta doença, nenhuma intervenção oficial pôs o dedo na ferida, para desvendar uma das razões da sua propagação descontrolada: a estrutura e os valores patriarcais, que valorizam uma masculinidade agressiva e a submissão feminina. Ao invés, nos últimos meses, os órgãos de comunicação social têm passado insistentemente a mensagem, vinda de vários sectores da sociedade, de que as raparigas e as mulheres contribuem para a rápida expansão da epidemia do SIDA, por causa da maneira como se vestem. Aliás, este tema já foi discutido na edição 14 do nosso boletim, através da divulgação de um comunicado público do Fórum Mulher.
Não é a primeira vez e provavelmente nem será a última, que em momentos de crise na sociedade as pessoas busquem culpados em quem atribuir a responsabilidade, ao mesmo tempo que denunciam a “degradação de valores morais e culturais”. É como acontece na caça às bruxas: a crença num universo moral, onde o mal é sempre merecido, dita a procura dos que violaram interditos ou faltaram com os seus deveres, dos estrangeiros ou dos oprimidos, que teriam motivos para se vingarem. E assim, numa altura em que a SIDA mata e afecta cada vez mais as sociedades em Moçambique, encontraram-se as culpadas: as mulheres/raparigas que usam roupas que deixam o corpo à mostra e que por esta via provocam os homens e fomentam a prostituição. Desta maneira se assiste à feminização da culpa, depois de já se ter consumado a feminização da SIDA.
E portanto, mais uma vez, as mulheres passam de vítimas a culpadas dos próprios problemas que as afligem. Isto não é nada de novo, já vimos que o mesmo se passa com problemas como a violência contra as mulheres: se uma mulher é violada sexualmente, foi ela que provocou, ou porque andava na rua “fora de horas” ou porque se vestia de “maneira imprópria”; se ela é agredida pelo marido é porque não o respeitou ou não cumpriu com as suas obrigações. Portanto, culpar as mulheres dos males que as afectam e afectam a sociedade, não é nada de novo. Assim como não é novo (aliás, é velho como o mundo) o controle sobre os corpos femininos, que tem a sua face mais visível no controle do vestuário, mas que se exerce sobretudo no campo da sexualidade e da reprodução.
E por que é que ninguém aponta o dedo aos homens que compulsivamente necessitam de ter várias parceiras, aos que corrompem menores (muitas vezes com menos de 12 anos), aos que violentam e violam as suas mulheres? Por que estes são comportamentos “legítimos”! A sociedade, a maioria dos homens e das mulheres, acham-nos “normais”.
Perante este debate público, o que fazem os órgãos de comunicação? Simplesmente reproduzem (e por vezes selectivamente!) o que é dito, mas ninguém educa. E o que fazem as autoridades? Também não vimos ninguém aparecer em público a tentar contrariar estas opiniões preconceituosas sobre a maldade e a culpa das mulheres/raparigas na propagação da SIDA. Já se ouve falar de desacatos nos bairros, nas cidades e no campo, dirigidos contra mulheres e raparigas que as autoridades locais (às vezes são os indivíduos do policiamento comunitário ou então simples transeuntes) consideram estar “mal” vestidas. Se nada for feito, vamos assistir a um recrudescimento destes tipo de violações, criando-se um clima ainda menos seguro para as mulheres. Nós, como feministas e activistas dos direitos humanos das mulheres, temos o dever de não calar.
Maria José Arthur
Maio de 2006
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