Carta Aberta ao Ministro da Justiça
Resposta da LAMBDA à Entrevista com o Ministro da Justiça
16 DE OUTUBRO DE 2015
Carta aberta ao Ministro da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos da República de Moçambique, Sua Excia. Dr. Abdurremane Lino de Almeida
Excelência,
Em primeiro lugar, gostaríamos de lhe congratular por ter sido nomeado para assumir a pasta da Justiça, no governo de Sua Excia. o Presidente Filipe Nyusi, gostaríamos de tê-lo feito presencialmente, mas desde que ocupou este cargo, não teve tempo para receber-nos, ou talvez não tenha achado um espaço na sua imensa lista de prioridades. A verdade, senhor Ministro, é que temos um encontro adiado consigo, e que até este momento não sabemos se ocorrerá.
Talvez, senhor Ministro tenha razão em não nos receber, afinal o seu cargo é um cargo de nomeação, não um cargo de eleição. Provavelmente, devíamos tentar falar com o senhor Presidente da República de Moçambique, que foi eleito por nós, povo moçambicano e jurou respeitar a Constituição e as leis desta nossa Pátria Amada. Mas ainda assim, senhor Ministro, acreditamos que foi nomeado por possuir qualidades e competências que faltam a outros cidadãos, ferramentas necessárias para cumprir com o seu mandato de forma cabal.
No dia 12 de Fevereiro de 2015, enviámos a si uma carta a expor o processo da LAMBDA e a solicitar uma audiência. No dia 19 de Fevereiro, recebemos de sua parte um convite para participar de uma auscultação pública sobre o direito de associação das minorias sexuais. Felizmente, foi alertado para o absurdo e a ilegalidade de tal pretensão, auscultar publicamente sobre a outorga de um direito constitucionalmente consagrado, e o encontro não aconteceu. No dia 16 de Abril, remetemos a vós, senhor Ministro, uma carta a solicitar uma resposta ao nosso pedido de audiência, e, mais uma vez, brindou-nos com o seu silêncio. Talvez não sejamos dignos, senhor Ministro, de entrar em seu Gabinete, onde, aliás, já fomos recebidos pelas Ministras que o antecederam, a Dra. Benvinda Levy e a Dra. Esperança Machavela. Sim, senhor Ministro, a preocupação que pretendíamos partilhar consigo é antiga. Porquê não foi resolvida até hoje, senhor Ministro, não saberemos responder, a verdade é uma: continuamos à espera, certos de que um dia a lei terá de ser cumprida. Resumindo, senhor Ministro, em 2008 um grupo de cidadãos homossexuais, e não só, submeteu, na Conservatória do Registo das Entidades Legais, o requerimento para o reconhecimento da associação que pretendiam constituir, a LAMBDA. De lá a esta parte, senhor Ministro, não logramos obter resposta, nem positiva nem negativa.
No início de 2015, fomos todos, cidadãos desta pátria amada, inundados por uma lufada de ar fresco, tomava posse um novo Presidente da República. O discurso de investidura deste “empregado do povo,” como assim se intitulou, foi um discurso tendente a sarar feridas há muito abertas, foi um discurso apaziguador, um discurso em que a tónica era a inclusão. Talvez, o senhor Ministro, que ainda não o era não tenha tido a grande oportunidade de ouvir tal discurso, por isso transcrevemos aqui dois breves trechos:
“Não aceitaremos a violação deste contrato social firmado com o nosso povo. Ninguém está acima da Lei e todos são iguais perante ela.[…]” “Cada um de nós deve se orgulhar de pertencer a uma Nação unitária e indivisível, sem que para isso tenha que abdicar dos seus atributos e dos seus valores culturais próprios. NÃO EXISTEM OS QUE SÃO MAIS E OS QUE SÃO MENOS MOÇAMBICANOS. A bandeira multicolor que cobre todos os moçambicanos representa exactamente essa unidade na diversidade.”
Há muito que os moçambicanos esperavam por estas palavras, e acima de tudo pelas acções que as devem dar concretização. De certeza, senhor Ministro, quem o nomeou espera que trabalhe com vista a fazer destas palavras não apenas um discurso, mas uma realidade na vida de todos os moçambicanos.
Esta carta, senhor Ministro, poderia ter sido escrita há mais tempo, mas ela vem em resposta a um pronunciamento público de V. Excia. do qual retiramos apenas alguns pontos: Quando perguntado sobre o processo de registo da Associação LAMBDA, o senhor respondeu nestes termos: “não é prioridade do governo verificar sobre os homossexuais; o governo simplesmente ficou calado, e esse silêncio não obsta que os homossexuais façam o que quiserem”. Disse ainda, senhor Ministro, que no vizinho Zimbabwe nem sequer se pode falar de homossexuais, pois lá estes “são exterminados e banidos”. Vem ainda o senhor Ministro dizer que isto não acontece em Moçambique porque o governo moçambicano reconhece a Liberdade. Mesmo reconhecendo alguma liberdade aos homossexuais, vem o senhor afirmar que se acautelem, chegando por palavras suas a afirmar a existência de uma linha vermelha, que estes, os homossexuais não podem transpor, sob pena de serem entregues à justiça. Na sua fala, senhor Ministro, afirma que os homossexuais (entenda-se LAMBDA) têm o direito de continuar a fazer o que puderem desde que não cometam crimes. Que ninguém os negou a liberdade de associação e que a atestá-lo está o facto de exercerem as suas actividades normalmente, sem nunca terem sido presos por tal motivo.
Excia, consta-nos que possui formação jurídica, por isso não devíamos lembrar-lhe o que nos obriga a lembrar, uma vez não ser leigo nessa matéria, mas ainda assim, e aproveitando o carácter aberto desta carta, pensamos que terá alguma utilidade as análises jurídicas que nas próximas linhas serão vertidas. O direito de associação, senhor Ministro, está consagrado na Constituição da República de Moçambique (artigo 52), na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (artigo 10) no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 22), os dois últimos ratificados e em vigor na ordem jurídica moçambicana. É desolador, senhor Ministro, perceber que o titular da pasta da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos desconheça o lugar da Constituição dentro de um ordenamento jurídico. Com efeito, senhor Ministro, as suas palavras vilipendiam a Constituição de forma veemente e inaceitável, num Estado que se pretende democrático e de justiça social (artigos 1 e 3 CRM).
Não será despiciendo, senhor Ministro, lembrar-lhe que um dos baluartes da nossa Constituição e de todo o moderno Estado de Direito é o princípio da Igualdade, e caso não saiba tem como corolário a proibição da discriminação. Senhor Ministro, este princípio vertido no artigo 35 da nossa Constituição proíbe a discriminação entre outros aspectos, pela orientação sexual, mesmo que a letra da lei a isso não refira, para ajudá-lo a chegar a este entendimento, convidamo-lo a olhar o artigo 43 da Constituição que refere que os preceitos relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e com a Carta Africana, que no seu artigo 2 vem dizer:
todas as pessoas terão direito ao gozo dos direitos e liberdades reconhecidos e garantidos na presente carta sem qualquer distinção, nomeadamente de raça, de etnia, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política, ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.
Não é demais lembrar-lhe, senhor Ministro, sobre as regras constitucionais acerca da restrição de direitos fundamentais, como é o caso da liberdade de associação. Congratulamo-nos em saber, senhor Ministro, através de si que são prioridades do governo moçambicano dar água, saúde, educação, trabalho ao povo moçambicano, do qual também somos parte, só esperamos que uma vez garantidos não sejam negados aos moçambicanos que tenham uma orientação sexual homossexual, tal como lhes é negado o direito de se associar. Não nos prenderemos por ora em detalhes acerca da tutela dos direitos fundamentais e do lugar dos direitos, liberdades e garantias face aos direitos económicos, sociais e culturais, de que referiu, pois acreditamos que tendo estudado direito Constitucional deva saber que ao contrário dos direitos sociais, económicos e culturais, os direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis, vinculam as entidades públicas (unidades orgânicas do governo, por exemplo) e privadas, e que o seu exercício só pode ser limitado por via de lei, e que esta lei só o poderá fazer quando a Constituição expressamente o preveja (artigo 56 CRM). Não encontramos, senhor Ministro, nenhuma referência na Constituição relativa à proibição de livre expressão de determinadas formas de orientação sexual e muito menos no artigo referente à liberdade de associação (artigo 52 CRM), à restrição deste direito quando os peticionários sejam homossexuais ou o objecto da associação tenha alguma referência à orientação sexual homossexual. Precisamos lembrar-lhe, senhor Ministro, que o termo orientação sexual não é novo no nosso ordenamento jurídico, com efeito preceitua o número 1 do artigo 4 da Lei nº 23/2007, de 1 de Agosto, da Lei do Trabalho, que “a interpretação e aplicação das normas da presente lei obedece entre outros ao princípio (…) da não discriminação em razão da orientação sexual”.
Senhor Ministro, como vê, à luz da lei, inexiste qualquer fundamento para restringir o Direito de associação aos cidadãos, com base na sua orientação sexual e talvez por isso, senhor Ministro, e não porque nos reconhece alguma liberdade como afirmou, não haja uma resposta formal do Estado moçambicano até hoje. Pois, por muito que incomode este assunto, não encontra o senhor, tal como não encontraram as suas antecessoras, pessoas de inteligência acima da média, qualquer fundamento na lei que nos proíba de nos associarmos.
Senhor Ministro, o senhor assume que se calou perante a solicitação legítima de um grupo de cidadãos moçambicanos que amparados na Constituição e nas leis a si recorreram. Assumindo assim que não deve respeito à lei. Senhor Ministro, não esperávamos ter de o lembrar em público de alguns princípios que devem nortear a actuação da administração pública, como o princípio da legalidade e o dever de fundamentação dos actos administrativos, o direito de resposta dos administrados, entre outros.
Senhor Ministro, aquando do primeiro ciclo da revisão periódica universal, a questão da liberdade de associação das minorias sexuais foi levantada e Moçambique recebeu a recomendação de garantir este direito, tendo a recomendação sido recusada. Somos obrigados a reconhecer que sua posição não nos colhe de surpresa, mas surpreende-nos a sua coragem de pisar nas leis e na Constituição deste país em público, coisa que as suas antecessoras com o bom senso que as caracterizava não conseguiram.
O senhor Ministro afirma que os homossexuais moçambicanos têm a sorte de não estarem no Zimbabwe onde, segundo palavras suas, simplesmente seriam exterminados e banidos. Infeliz comparação, senhor Ministro. Do titular da pasta da Justiça, espera-se que seja o defensor do Direito instituído e acima de tudo da justiça que deve ser igual para todos os cidadãos. Não compare um país que vive numa democracia multipartidária, onde há sucessão por via de eleições dos órgãos de poder, onde existe liberdade de expressão, com um país onde estas coisas são vã filosofia. Desde logo porque o povo zimbabweano vive sob o jugo da ditadura de um homem que não é exemplo a seguir. Se lhe interessa comparar-nos com outros, escolha os melhores, tal como dizia o saudoso Presidente Samora Machel, não nos devemos comparar com os piores, e nós acrescentamos, porque isso nos diminui ao tamanho destes. Mesmo assim, senhor Ministro, caso não saiba no Zimbabwe existe uma organização LGBT a GALZ, Gays e Lésbicas do Zimbabwe, organização esta que está legalmente registada e este ano comemorou 25 anos de existência.
Senhor Ministro, convidamo-lo a rever o seu conceito de liberdade. A liberdade não é um óbolo, uma esmola. É um direito que possui de outro lado um dever de respeito que a todos impende. O senhor Ministro refere o Programa Quinquenal do seu governo, afirmando que deste não cabem as questões dos homossexuais. Primeiro, alertar-lhe, senhor Ministro, para um grande equívoco, não estamos a discutir questões dos homossexuais, estamos a discutir sobre um direito que a Constituição atribui, a liberdade de associação; segundo convidar-lhe a rever o Programa Quinquenal do Governo, aprovado pela Assembleia da República, na Resolução 12/2015 e publicado no BR I Série número 29. O governo tem como prioridades “consolidar a Unidade Nacional, a Paz e a Soberania”(3.1) e para efeito tem como prioridades a criação de um ambiente de paz, harmonia e tranquilidade, consolidando a democracia e a governação participativa (alínea 2) e para o efeito compromete-se a garantir um estado de direito democrático e de justiça social (alínea 5.i).
Portanto, parece-nos, senhor Ministro, que para além de desconhecer a lei deste país, também desconhece outros documentos do governo de que faz parte, o que é deveras preocupante. Gostaríamos, senhor Ministro, de o convidar a reflectir sobre o impacto dos seus pronunciamentos numa sociedade que já estigmatiza os cidadãos homossexuais. Tais pronunciamentos vindos de si institucionalizam a discriminação e o preconceito, e são uma grave mancha à imagem deste país que tem demonstrado grandes evoluções no âmbito dos direitos humanos.
Os homossexuais, estes de que o senhor se refere como “ELES”, são cidadãos moçambicanos que diariamente contribuem para o desenvolvimento do país em todas as esferas, que votam e que acreditam numa nação mais justa e igualitária para todos. Estamos cientes de que é compromisso do governo de que faz parte, a construção de uma sociedade inclusiva, sem os “ELES” mas, sim, repleto de “Nós”, nós as mulheres e os homens deste país. Continuamos à espera de uma resposta à solicitação que fizemos há 8 anos, e esperamos de si, senhor Ministro, que se coloque do lado certo da história, para que não seja lembrado como apenas mais um, mas como um verdadeiro timoneiro da justiça e da legalidade. Com os nossos melhores cumprimentos, nos despedimos por agora.
Fonte: www.lambdamoz.org/