Violência de género, cultura e direitos humanos. A aplicação da Lei da Violência Doméstica
(Lei nº 29/2009, de 29 de Setembro)
Elisa Samuel1
Perspectiva do Género no Judiciário
Antes de entrarmos na análise da lei, consideramos ser pertinente reflectirmos acerca das atribuições do Poder Judicial como responsável pela efectivação dos direitos protegidos nesta mesma lei, já que é a este Poder que a Constituição da República de Moçambique (CRM) atribui a competência para apreciar toda a lesão ou ameaça ao direito. Ou seja, “o sistema judicial tem de ser capaz de dispor da ciência e da autoridade para intervir e tomar as medidas legais adequadas no quadro da violência doméstica” (Machado, Gonçalves e Abrunhosa, 2003). O mesmo sistema “tem de garantir à mulher, vítima de violência, que o julgamento não vai ser a repetição pública da sua experiência traumática, bem como a sua protecção antes, durante e depois” (Machado, Gonçalves e Abrunhosa, 2003).
Não obstante a igualdade entre o homem e a mulher prevista na CRM, a realidade ainda está aquém de alcançar os níveis desejáveis. Nesse sentido se pronunciou o Comité da CEDAW2, ao avaliar o relatório enviado por Moçambique em 20073. Tanto é que manifestou a sua preocupação pelo facto de apesar de Moçambique ter ratificado a Convenção em 1997, e dez anos depois a situação vivida no país era caracterizada pela falta de conhecimento adequado dos direitos das mulheres plasmados na Convenção, tanto por parte da sociedade em geral, incluindo o Judiciário, como, e em particular, por parte dos tribunais comunitários, mas sobretudo pelo desconhecimento das próprias mulheres acerca dos seus direitos, o que potenciava a fraca possibilidade de reclamação. Por isso, o Comité recomendava ao Estado moçambicano que adoptasse medidas de forma a incluir a Convenção no direito interno e que fizesse esforços para que a formação dos profissionais de direito, sobretudo do judiciário, tivessem em conta os princípios plasmados na CEDAW. Recomendava ainda que os membros dos tribunais comunitários fossem formados em matérias relativas aos direitos humanos e que as mulheres tivessem acesso aos tribunais em pé de igualdade com os homens.
Observa-se, contudo, que ainda persistem preconceitos de sexo, de classe e culturais, que influenciam as decisões do Poder Judiciário, muitas vezes em prejuízo das mulheres. São frequentes algumas práticas culturais e hábitos locais que influem na apreciação dos litígios que chegam aos tribunais, sobretudo respeitantes a conflitos familiares que prejudicam a posição da mulher.
Tais são, por exemplo, acusações contra a mulher de “práticas de obscurantismo” ou de a mesma “possuir espíritos”. Ela é também frequentemente objecto de “agressões físicas e de recurso a práticas de curandice por parte do réu”, culminando na “expulsão da casa por não fazer filhos e ter espíritos maus”, e levando por isso o réu a introduzir em casa uma outra mulher, dada a suposta “infertilidade da autora” (Leitão, Cristiano e Pedroso, 2003).
Estas questões, quando decididas nos nossos tribunais muitas das vezes põem em segundo plano os direitos da mulher, valorizando-se, a nosso ver, indevidamente, os aspectos culturais, que fazem parte do quotidiano, e até das vivências do próprio juiz da causa, potenciando o risco de tomada de decisões que ponham em causa o princípio da igualdade de género.
As discriminações que persistem devem-se, sobretudo, aos padrões de cultura presentes na sociedade e refletidos, em maior ou menor grau, nas práticas judiciárias. Mas a efectivação dos direitos das mulheres moçambicanas está, em grande parte, condicionada à efectiva incorporação pelo Poder Judiciário dos valores de igualdade e democracia, trazidos pela Constituição aprovada em 2004.
No intuito de avaliar a forma pela qual os direitos das mulheres vêm sendo implementados pelo Poder Judiciário, pesquisas efectuadas em processos judiciais na área da família revelam que na questão do acesso à justiça e na da gestão de conflitos, a representação social que, por exemplo, existe da visibilidade da queixa da mulher, assenta num modelo patriarcal que, para além de funcionar como constrangimento, orienta o encaminhamento do conflito. Ou seja, a diminuta apresentação dos conflitos de mulheres às diferentes instâncias (formais ou informais) fica a dever-se não só a razões de ordem material (distâncias a percorrer, dinheiro ou burocracia), mas também em grande medida à representação social que existe da visibilidade por parte do sistema da justiça das mulheres.
O sistema de justiça, sendo construído de acordo com a ordem social patriarcal, encobre, pela neutralidade que o configura, a exclusão dos direitos humanos das mulheres. É assim que os conflitos produzidos no âmbito familiar (com excepção dos casos do foro criminal) são excluídos do corpus jurídico, reforçando uma representação patriarcal da justiça (Osório e Temba, 2003). Por este motivo, antes da entrada em vigor da Lei da Violência Doméstica, a violência física contra a mulher era socialmente identificada com meros problemas privados, que deveriam ser solucionados no âmbito familiar.
Ainda no intuito de avaliar a forma pela qual os direitos das mulheres são tratados pelo judiciário, estudos feitos revelam que, no que respeita ao sistema formal de justiça4, a representação social dos conflitos pelos agentes da justiça e o estatuto social dos litigantes determinam (mesmo nos casos dos tribunais onde existem juízes profissionais) a forma como os conflitos são geridos. A complexidade dos mecanismos processuais, o número insuficiente de profissionais da advocacia, os conteúdos das leis (de difícil interpretação e aplicação para alguns magistrados) leva muitas vezes à existência de corrupção nas instâncias de justiça, transferindo esta para o campo do arbitrário (Osório e Temba, 2003:26).
É nesse sentido que a responsabilidade do judiciário não pode ser esquecida em decisões dessa natureza, já que o judiciário detém a função da prestação jurisdicional, o que o autoriza a definir o alcance dos direitos por meio da interpretação das leis e da Constituição (Leão, 2010) e acima de tudo o obriga a adoptar boas práticas, de tal sorte que a questão do género seja valorizada e se erradique a discriminação da mulher, potenciando o seu desenvolvimento a todos os níveis.
Sem dúvida a actividade judiciária e o seu poder coercitivo ampliam a sua responsabilidade social, pois a produção de texto no interior do procedimento judicial confunde-se com o próprio Direito. Daí que as boas práticas, no domínio do judiciário, requeiram, quando estão em causa comportamentos subsumíveis aos ilícitos de violência doméstica, um completo conhecimento da factologia e recolha das provas relevantes de forma a assegurar uma competente interpretação dos factos, uma correcta qualificação jurídica, uma rigorosa apreciação da prova e uma adequada escolha da pena e sua dosimetria (Neves, 2009).
A relevância de uma decisão judicial na explicitação das leis que aplica junto aos factos em análise implica necessariamente a construção de relações sociais.
Algumas Considerações Gerais acerca dos Constrangimentos na Aplicação da Lei da Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher (Lei nº 29/2009, de 29 de Setembro)
1. Regime Jurídico – Objecto (Art. 1º)
A Lei da Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher (doravante designada de LVD) tem desde logo como objecto principal punir “a violência praticada contra a mulher no âmbito das relações domésticas e familiares das quais não resulta a morte”.
Daqui se pode retirar que o sujeito passivo deste crime é principalmente a mulher. No entanto, e em consonância com o princípio constitucional da igualdade de género plasmado no art. 36º da CRM, a mesma lei aplica-se em igualdade de circunstâncias e com as necessárias adaptações, igualmente aos indivíduos do sexo masculino que sofram o tipo de violência tratado nesta lei no âmbito das relações domésticas e familiares (art. 36º da LVD).
Pensamos nós que o legislador ao assim dispor, talvez o tenha feito como forma de acautelar uma discussão futura de inconstitucionalidade no seio dos aplicadores da lei, em atenção ao princípio da igualdade, à semelhança do que se vê acontecer, por exemplo, no Brasil, a propósito da Lei Maria da Penha. Aqui debate-se acerca da constitucionalidade ou não da lei, em face, principalmente, da adequação ou não do princípio constitucional da igualdade, por se entender por lá que há na Lei Maria da Penha manifesto tratamento diferenciado dos géneros, com vista à protecção do ser humano do sexo feminino, em detrimento do masculino (Rudson, 2009:13), já que a mesma visa punir especificamente a violência doméstica praticada contra pessoas do sexo feminino.
Quer em relação à posição adoptada pelo nosso legislador quer no que respeita à tese que, no debate suscitado em torno da Lei Maria da Penha, sustenta a sua inconstitucionalidade, defendemos uma posição divergente.
Entendemos que o facto de o legislador moçambicano ter incluído o princípio do género na LVD, só por si vem desvirtuar e subverter por completo a lógica que inspirou a presente lei, bem como a que orientou as Nações Unidas quando decidiram adoptar a CEDAW.
Não obstante já vigorarem, quando da adopção deste instrumento, os princípios da protecção da vida e da integridade física das pessoas, plasmados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda assim, as Nações Unidas sentiram a necessidade de lhes consagrar um documento de protecção específico, perante as particularidades e as características de determinados grupos da sociedade que necessitavam de uma protecção especial, por serem os mais discriminados e estarem em desvantagem e, por conseguinte, colocados numa posição de inferioridade em relação aos demais.
Daí que o objectivo do legislador moçambicano deveria ter sido o de elaborar uma lei especificamente dirigida à violência doméstica praticada contra a mulher e como tal designada, como aliás estava previsto no Anteprojecto. Ou então não tomar expressamente nem uma nem outra posição, e tão somente optar por não especificar a questão do género, como aliás parece ser a opção legislativa de outros países onde existe uma lei semelhante, como é o caso de alguns países europeus, dentre eles Portugal.
2. Medidas cautelares (Art. 6º)
Este é um dos artigos que tem levantado constrangimentos de vária ordem na sua aplicação prática. Desde logo, o art. 6º é a materialização de um dos objectivos traçados pelo legislador no art. 2º, o da introdução de medidas de modo a que os órgãos do Estado (leia-se Tribunais), possam eliminar a violência que esta lei visa punir. Portanto, a ser assim, não se entende que na mesma altura e algo contraditoriamente venha através do art. 6º o próprio legislador retirar os referidos instrumentos das mãos dos destinatários quando condiciona o decretamento das referidas medidas ao requerimento do Ministério Público (MP) ou da vítima!
A experiência que temos na prática é que de facto, nem do lado do MP e nem tão pouco do da vítima, tem havido tal solicitação. Não obstante a maior parte das situações em que se encontram as vítimas de violência que acorrem aos postos policiais, aos gabinetes5, procuradorias e até tribunais, reclamarem e exigirem a aplicação imediata das medidas ali previstas de forma a proteger as vítimas.
Ou seja, fazendo por exemplo uma análise dos autos que nos são remetidos vindos dos gabinetes, que à partida classificam os factos como sendo de violência patrimonial, verifica-se que, quando compulsados já em tribunal, a maior parte destes processos, envolvem ou envolverão situações em que a vítima já saiu de casa, às vezes acompanhada de crianças menores. E quando ela se dirige ao gabinete ou ao posto policial, vai à procura de uma ajuda imediata, que resolva a situação pontual que é a falta de residência.
Mas uma vez aqui chegada, o gabinete o que faz é, naturalmente, como é de lei, a recolha dos factos, a elaboração do auto de denúncia e a remessa do processo, que muitas vezes não tem sido imediata, ou ao MP ou ao tribunal. E porque a remessa dos autos a tribunal pode levar, e normalmente leva alguns dias, o problema daquela mulher e daquelas crianças (a falta de residência) mantém-se. Mas por desconhecimento (pois muitas das vezes não tem assistência jurídica), a vítima não faz nem fará naturalmente o uso da prorrogativa que lhe confere o art. 6º, de forma a que o juiz possa resolver a situação de emergência em que ela se encontra. O que faz aquele então? Aguarda, de acordo com a informação recebida do gabinete, até que o auto seja remetido ao tribunal para julgamento.6
Com isto queremos sustentar a nossa opinião de que, se a opção do legislador tivesse sido a de igualmente permitir ao juiz que, de forma oficiosa, decretasse as medidas ali previstas logo que recebesse o auto, estaria assim materializado o objectivo primário da lei, que é de eliminar de forma eficaz a situação de violência de que a vítima está a ser objecto naquele momento.
Relativamente ao Prazo e aos Procedimentos Tramitacionais Tendentes à Aplicação das Medidas do art. 6º
Outro dos constrangimentos que se levantam com a aplicação do art. 6º é a questão do prazo para que o juiz decrete as respectivas medidas, uma vez requeridas, quer pela vítima, quer pelo MP. Na medida em que, entendemos nós, o legislador não fixou nenhum prazo nem directrizes para tal. Porque dizemos isso? Da leitura atenta do art. 6º e percorrendo o resto da Lei da Violência Doméstica, não se encontra nenhum dispositivo (norma remissiva) que nos direccione para disciplinar o procedimento a seguir na aplicação das referidas medidas. Dir-me-ão alguns que a situação fica resolvida se recorrermos à lei processual, no caso ao processo civil. Nós entendemos que esta solução não é assim imediata. Só por analogia obviamente poderemos chegar a tal solução, mas (não obstante as medidas do art. 6º serem algumas de natureza cível), não nos podemos esquecer que estas medidas, embora de natureza cível, são aplicadas no âmbito do direito penal, onde em princípio não é permitido recorrer à analogia para incriminar ou condenar o réu.
Naturalmente que a solução final tem sido a de recorrer às normas do processo civil que disciplinam a matéria dos procedimentos cautelares e fazemo-lo de forma automática, pois, repetimos, não se encontra no art. 6º nem em nenhuma outra parte da lei qualquer norma remissiva que seja expressamente aplicável.
Assim, e no que se refere ao prazo, somos do entendimento de que a situação ficaria resolvida se o legislador tivesse optado por uma solução diferente, por exemplo, acrescentando ao dispositivo aqui em análise a expressão “imediata”. Ou seja, em vez de se estabelecer “a requerimento do Ministério Público ou da vítima, o Juiz pode decretar as seguintes medidas”, estabelecer simplesmente:
“A requerimento do Ministério Público ou da vítima, o Juiz pode, encontrando-se reunidos os restantes requisitos, decretar de forma imediata as seguintes medidas:”
Achamos que desta forma se solucionariam melhor as situações de precariedade elencadas na disposição legal em análise.
Por sua vez, relativamente aos procedimentos tramitacionais tendentes à aplicação das medidas, não repugnaria estabelecer taxativamente naquele artigo que, “para decretar as medidas ali previstas deve o juiz fazê-lo nos termos da lei do processo”. Assim dispondo, resolveríamos a questão da segurança jurídica e não menos importante do que isso, haveria uniformização tramitacional no seio do judicial.
Momento Judicial para Aplicação das Medidas do art. 6º
Outra das questões importantes que têm sido levantadas na aplicação do art. 6º é a de saber em que momento é que o juiz decreta as medidas ali previstas. Se antes da decisão ou seja, da sentença final, se durante ou mesmo se depois da sentença. Como aliás é em parte a disciplina geral no processo civil relativamente aos procedimentos cautelares (art. 384º do C.P.C).
Relativamente a esta questão, e a prática na aplicação da lei assim nos mostra, entendemos que as medidas, dependendo naturalmente daquela de que se trata, podem ser aplicadas nos vários momentos aqui levantados. Porquê? Porque se percorrermos às várias alíneas elencadas no art. 6º, qualquer uma delas justificaria em princípio a sua aplicação.
Quer antes da sentença, o que se verificaria antes da audiência de discussão e julgamento, enquanto o processo estivesse, por exemplo, na fase de instrução preparatória caso houvesse lugar para esta; quer depois da sentença final, caso houvesse perigo e receio de que o agressor pusesse em causa os direitos da vítima ali protegidos (por exemplo, depois de tomada uma decisão no sentido de condenar o agressor pela prática do crime de violência doméstica em qualquer das modalidades ali previstas e o mesmo, como retaliação, expulsasse a vítima de casa e, juntamente com isso, pretendesse vender o bem comum que é a casa de morada de família).
Nestes casos, que sabemos serem muito frequentes, entendemos que não obstante a sentença condenatória ter sido já decretada e do comportamento do agressor que não corresponde a nenhum tipo criminal de per si, ser posterior àquela sentença, pode a vítima recorrer ao tribunal, invocando aquela decisão criminal como sendo o motivo pelo qual o requerido/agressor a expulsa naquele momento da casa.
A alegação pela vítima da sua expulsão da casa e a pretensão da venda desse bem comum pelo agressor, poderão constituir fundamento para que o juiz decrete, posteriormente à sentença final, as medidas cautelares requeridas pela vítima que seriam as das alíneas c) e f) do art. 6º. Obviamente que o juiz, analisados os factos, e concluindo pela verificação de perigo de disposição unilateral dos bens comuns e do facto da vítima se encontrar numa situação de perigo por não ter onde habitar, decidirá decretando tais medidas.
Se assim se entende, a outra questão que se levanta é esta: sendo a medida aplicada depois de proferida a decisão final, não estaríamos a pôr em causa a natureza da dependência do procedimento cautelar relativamente ao processo principal que seria o processo crime? (art. 384º do C.P.C)
Quanto a esta questão, entendemos, em primeiro lugar, que aquela medida cautelar não é dependente do processo crime, mas tão somente do processo cível respectivo tendente à efectivação do direito substantivo civil que está na eminência de ser ou está sendo violado.
Imaginemos, para tomar em conta exemplos práticos e como acima referimos, que depois do juiz decidir em acção penal a condenação do agressor pela prática do crime de violência doméstica, numa das diversas modalidades previstas na lei, este, como forma de retaliação, decida expulsar a vítima de casa sendo esta seja, por hipótese, um bem comum, e ao mesmo tempo vender o imóvel de morada de família, sem consentimento daquela.
Quando der entrada no tribunal o requerimento respectivo, que será o de pedir ao juiz que decrete as medidas das alíneas c) e f) do art. 6º, este, ao decidir, decreta as medidas requeridas e obviamente fará depender na sentença a sua validade, da atempada instauração da acção respectiva que será, no caso, uma acção de divisão de coisa comum, tendo em vista a divisão dos bens comuns do casal e o consequente reconhecimento do direito da vítima à sua meação nesses bens.
Portanto, é nosso entendimento que a medida decretada no âmbito do processo de violência doméstica manter-se-á desta feita até que no prazo de 30 dias, como estabelece o art. 382º do C.P.C, seja proposta a respectiva acção da qual depende.
Relativamente ao Procedimento a seguir pelo Juiz para efectivação da Medida da alínea f) do art. 6º e da consequência da falta de cumprimento da respectiva medida pelo agressor
Esta alínea também tem vindo a ser polémica no seio do judiciário quanto à sua aplicação. De facto, percorrendo o art. 6º, não se vislumbra nenhuma norma que oriente o juiz de modo a garantir à vítima que tenha sido expulsa da casa de morada de família, o seu regresso de forma segura. Ou seja, a lei é omissa quanto à modalidade de cumprimento desta medida. E nem sequer remete para uma futura regulamentação.
A pergunta imediata que nos surge aquando do momento do decretamento da medida é a de saber qual teria sido a intenção do legislador ao impor aquele comando. Naturalmente a resposta a esta questão é patente na própria alínea, que é a de garantir que a vítima regresse ao seu lar e uma vez lá não sofra mais violência. Mas se assim é, cabe perguntar qual o motivo que levou o legislador a não disciplinar uma matéria tão importante como esta. Não seria porque o legislador confia ou confiou na capacidade de decisão, análise e ponderação dos seus juízes!?
Ora bem, para entendermos a intenção do legislador decidimos percorrer aquilo que poderíamos chamar de “trabalhos preparatórios” que antecederam a aprovação da lei que estamos aqui a analisar. Da leitura do Anteprojecto, nos seus artigos 6º e 7º verificamos que o legislador havia afinal disciplinado esta matéria, e de forma eficaz.
O Anteprojecto previa aquilo a que chamou medidas de protecção para tutelar os direitos da mulher vítima de violência, estabelecendo para o efeito medidas de segurança e cautelares. Sendo que aquelas visam deter a violência em qualquer das suas manifestações, e estas últimas visavam prevenir a repetição da violência doméstica contra as mulheres mediante a reeducação do agressor e o fortalecimento da autoestima da mulher e garantir o cumprimento das responsabilidades familiares do agressor.
Ora, quanto às medidas de segurança e relativamente à situação de expulsão da vítima da residência, ali o legislador previa como medida de segurança na alínea f) do art. 7º, a garantia do “regresso seguro da mulher que foi obrigada a abandonar a sua residência por razões de segurança”, devendo neste caso ser aplicada imediatamente a medida estabelecida na alínea a) que era a de separar “temporariamente o agressor da casa em que coabita com a mulher agredida”.
E mais ainda, previa o legislador no art. 28º do Anteprojecto, a possibilidade do juiz decretar a prisão preventiva do agressor, sempre que entendesse haver indícios razoáveis para supor que a pessoa agressora pudesse pôr em perigo a integridade da vítima.
De facto, não se percebe que no projecto final, que o legislador tenha optado por suprimir aquelas directivas que no nosso entender seriam importantes ferramentas para o juiz, com o seu mandato, poder reprimir a violação de direitos das vítimas de violência doméstica.
Na prática o que se constata, e pensamos ser o procedimento mais ou menos generalizado, é, por um lado, optar-se por aconselhar a vítima a procurar abrigo entre os seus familiares, amigos ou vizinhos para pelo menos lá ser acolhida enquanto o processo não chega a tribunal para decisão. Por outro, e temos conhecimento de que alguns juízes assim procedem, é, dentro do processo penal em curso e se a medida é requerida no decurso da audiência de julgamento, condenar o agressor, aquando da sentença final, em pena de prisão efectiva, ainda que por alguns dias, caso se prove a prática do crime de que é acusado, garantindo-se assim que a vítima regresse com segurança à residência de onde foi expulsa.
Outra das práticas tem sido a de, não ordenando a recolha do agressor ao estabelecimento prisional, ainda assim, decretar o regresso seguro da vítima à residência e para efeito de cumprimento da decisão, requisitar, quando necessário, força policial junto do gabinete para que a medida seja efectivamente cumprida. Caso não se cumpra por culpa do agressor, então este será processado criminalmente, desta feita por desobediência.
3. Suspensão Provisória da Pena (art. 10º)
O art. 10º nº 1 estabelece, relativamente ao prazo e aos requisitos para a decretação desta medida, uma especialidade de suspensão, relativamente às estabelecidas no art. 88º do Código Penal. Desde logo, aqui se estabelece o prazo mínimo de 2 e o máximo de 5 anos e relativamente aos fundamentos para a suspensão, estes são diferentes dos elencados na Lei da Violência Doméstica. Nesta, o prazo máximo da suspensão está fixado em 12 meses e ao contrário do regime geral, findo este prazo a decisão deve necessariamente ser executada.
Talvez seja por isso que alguns defendam a não remissão das penas estabelecidas nesta lei como já ouvimos em alguns “fora”, posição que não compartilhamos. Ora, e sempre ressalvando o devido respeito por entendimento contrário, defendemos que não há nada na lei que proíba a remissão pelo juiz das penas de prisão ali previstas. Desde logo, da leitura dos artigos 7º, 8º, 9º, 13º nº 2, 16º e 19º da lei somos levados a concluir o contrário. É que nos artigos aqui elencados o legislador estabeleceu taxativamente como pena alternativa à prisão, a possibilidade do juiz, por exemplo, como vem plasmado no art. 13º nº 2, substituir a pena de prisão por pena de trabalho a favor da comunidade. Assim sendo, entendemos de facto que não há cobertura na lei para tal posição mas que, pelo contrário, as penas podem ser remíveis. Aliás em termos práticos, a entender-se a não remissão das penas, o legislador viria aqui agravar a situação de superlotação que se vive nas cadeias moçambicanas que tem sido apontada como um dos grandes problemas a serem erradicados no sistema de administração da justiça em Moçambique.
4. Pena a aplicar no caso do tipo de crime previsto no art. 16º (Violência Moral)
Segundo o art. 16º, “aquele que por escrito, desenho publicado ou qualquer publicação, imputar um facto ofensivo à honra e carácter da mulher, é punido nos termos do art. 7º da presente lei”.
Se formos ao art. 7º para onde a lei nos remete, à partida não encontraremos estabelecida nenhuma pena, mas sim uma remissão para outras disposições do diploma em análise e subsidiariamente para as previstas na lei penal geral. Ora, analisando estes artigos, em princípio poderíamos concluir que, de duas uma: ou estamos perante um erro que terá ocorrido antes ou durante a impressão da lei e que onde se pretendia escrever 8º acabou por se escrever 7º, ou então, não se tratando de um erro, ter sido intenção do legislador a de efectivamente aplicar ao crime do art. 16º as penas que punem no Código Penal o mesmo facto criminoso.
Admitindo a primeira hipótese, bastaria que o juiz fizesse uma leitura correctiva e aplicasse a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade prevista no art. 8º e pronto, a situação estava resolvida.
Mas entendendo-se que não se está perante nenhum erro e que o legislador de facto quis punir de igual modo o mesmo facto ofensivo à honra e consideração de uma pessoa com as penas previstas no Código Penal para os crimes de difamação e injúrias, então não restaria mais nada ao juiz senão aplicar as penas previstas no art. 407º e 410º do C.P.
Pela nossa parte, e sempre ressalvando o devido respeito por entendimento contrário, entendemos todavia que esta segunda solução também não é pacífica nem resolve a dificuldade decorrente do facto de que se estaria de novo a pôr em causa o princípio da legalidade que norteia o processo penal e a punir por analogia aquele que cometesse o crime do art. 16º da LVD, com as penas estabelecidas para o crime de difamação e injúria, já que no Código Penal não se prevê o crime de violência moral, sendo este um tipo especial previsto apenas na lei da violência doméstica.
5. Violência Patrimonial (art. 19º nº 2): fonte da obrigação para prestação de alimentos violada?
Partindo do pressuposto de que a Lei da Violência Doméstica não dá uma definição do que é o crime de violência doméstica patrimonial, apenas resta ao julgador no momento da decisão integrar o conceito de violência patrimonial no conceito de violência definido no glossário da lei da violência doméstica. Desde logo, o glossário define “violência patrimonial, como sendo qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial dos objectos, instrumento de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos económicos incluindo os destinados a satisfazer as suas necessidades”.
Com efeito, e com interesse para a nossa reflexão, entendemos que a redacção do nº 2 do art. 19º, quando estabelece como um dos tipos do crime de violência patrimonial, aquele que é praticado por alguém que nos termos da Lei da Violência Doméstica, falte à prestação de alimentos a que está obrigado, levanta a questão de saber (isto porque o conceito de obrigado não se encontra enquadrado), qual a fonte dessa obrigação.
Ou seja, o legislador decidiu “punir com uma pena de prisão até 6 meses aquele que faltar à prestação de alimentos a que estiver obrigado, se daquela falta resultar para os beneficiários de sustento, por um período superior a sessenta dias, um risco à sua saúde, educação e habitação”. Diz o nº 2, “que o faltoso é, ainda, obrigado a pagar em dobro o valor da pensão de alimentos em falta”.
Ora vejamos. Este artigo, no nosso entendimento, e sem querer correr o risco de estarmos a levantar um falso problema, (mas porventura já o levantando), ao utilizar a expressão “prestar alimentos a que está obrigado”, sem mais detalhes (ou seja, não especificando a fonte da obrigação), pode conduzir a uma dupla interpretação, de tão ambígua que é a expressão “estar obrigado”.
Por um lado, existe quem defenda que a fonte da obrigação deva ser necessariamente uma sentença judicial e outros há, como é nosso entendimento, os que defendem que a fonte também pode ser o acordo das partes e a lei, como se poderá retirar do art. 409º nº 1 e 410º da Lei da Família.
Admitindo que a fonte seja uma sentença judicial, então só podemos concluir que para que se preencham os elementos constitutivos da prática deste crime, seja mister que exista previamente uma sentença judicial onde o infractor tenha sido condenado a pagar uma pensão alimentícia, a título definitivo ou provisório, a favor da vítima do crime de violência patrimonial e que, transitada em julgado, o mesmo não a cumpra. Assim sendo, aplicaríamos o art. 19º nº 2 da Lei da Violência Doméstica, porque estariam reunidos os elementos constitutivos ali exigidos.
Mas já no caso de a decisão ter sido tomada no âmbito da Lei da Violência Doméstica como consequência da decretação das medidas elencadas no art. 6º alínea g) e supondo que essa medida haja sido decretada antes da fase de discussão e julgamento, aí tecnicamente falando não teríamos necessariamente uma sentença mas sim um despacho.7
Logo, se entendermos que a fonte da obrigação é uma sentença stricto sensu, perante a falta de prestação de alimentos provisórios decretada ao abrigo da medida do art. 6º alínea g) que o tivesse sido antes ou depois da sentença final, não poderíamos considerar o referido comportamento crime de violência patrimonial, nos termos ali previstos, porque não teríamos necessariamente uma sentença mais sim um despacho, e sendo assim apenas restaria punir o infractor ou faltoso ao abrigo da lei penal geral pelo crime de desobediência, nos termos do art. 118º do C.P., aplicado ex vi do art. 387º/A do C.P.C.
A situação complicar-se-á se, por exemplo, interpretarmos a expressão “a que está obrigado”, como sendo fonte da obrigação a lei! Aqui teríamos a obrigação que decorre do acordo das partes (art. 409º nº 1 e 410º da Lei da Família). Se o infractor viola o acordo supostamente alcançado e assinado pelas partes, não homologado pelo juiz ainda (acordo extrajudicial celebrado nos termos do art. 405º do C. Civil), implicará, sempre considerando a hipótese de estarem reunidos os requisitos do art. 5º da LVD, relativos ao sujeito passivo, a vítima intentar primeiro uma acção civil que efective aquela obrigação de alimentos decorrente do acordo violado (art. 409º) e só depois de se obter uma decisão condenatória aqui, se recorrerá então à aplicação do nº 2 do art. 19º no âmbito criminal.
Em princípio parece que quer a fonte da obrigação seja uma sentença quer um acordo, a solução será a mesma. Para que se pratique o crime de violência patrimonial será necessário que o infractor viole o dever de prestar alimentos a que esteja obrigado independentemente da natureza da respectiva fonte.
Mas tratando-se da falta de cumprimento de um acordo, esse mesmo cumprimento teria de ser reclamado no âmbito da necessária acção declarativa de condenação e só depois de ser aqui reconhecida a obrigação estariam reunidas as condições para a sua reclamação no âmbito criminal. Mas se assim for entendido, entendemos que se estarão a desvirtuar tanto a finalidade como o carácter de urgência que se pretendeu salvaguardar com esta lei.
Por isso achamos que a opção legislativa poderia ter ido no sentido de, em vez de utilizar o simples vocábulo “obrigado”, ter adoptado a expressão “obrigado por lei ou decisão judicial”, como aliás parece ter sido a opção do legislador quanto à mesma matéria no que se refere aos menores, ao prever no art. 130 nº 1 da Lei da Organização Tutelar de Menores que a pessoa deve ser judicialmente obrigada a prestar alimentos primeiro e só depois, na falta de cumprimento, se aplicam as sanções previstas naquele artigo.
É que na prática o que se verifica é que a maior parte dos autos que chegam aos tribunais, vindos dos gabinetes, levantam questões relacionadas com a falta de prestação de alimentos e com a expulsão do lar conjugal. E se entendermos que a definição de alimentos também engloba a instrução, a habitação e a saúde, o legislador deveria ter sido mais rigoroso especificando as fontes da obrigação alimentar a que se refere no nº 2 do art. 19º.
A não ser assim, correr-se-á o risco de, não estando preenchidos os requisitos para a prática do tipo de crime em causa, por ausência de uma sentença judicial, se agravar, na maioria dos casos, a situação de necessidade em que as vítimas se encontrem.
Na verdade, e pensamos ser isto o que acontece na generalidade dos casos, o que se conclui é não estarem reunidos os elementos constitutivos do crime de violência patrimonial, por não haver ainda uma sentença que fixe o montante dos alimentos e que terá sido violada, sendo o infractor absolvido.
Para evitar estes inconvenientes temos, na prática, procedido da seguinte forma em conjugação com o MP: se o MP, no decurso da audiência de discussão e julgamento, considera existirem elementos para tal, antes do início desta, ou das alegações finais, promove igualmente que o juiz decrete a medida da alínea g) do art. 6º, com o que se evita protelar a situação de risco em que as vítimas se encontram.
Constrangimentos
O judiciário no seu todo, desde a polícia (gabinetes), procuradoria, assistência e patrocínio judiciário e tribunais, têm enfrentado na aplicação dos mandamentos constantes da Lei da Violência Doméstica, constrangimentos de vária ordem, desde logo:
- Recursos humanos qualificados – há falta de recursos humanos qualificados formados e treinados para lidar com questões da violência doméstica desde os próprios gabinetes, polícia, técnicos jurídicos e até magistrados (procuradores e juízes), o que consequentemente acaba dificultando a efectivação dos direitos das mulheres e das crianças vítimas de violência doméstica;
- Autos de denúncia mal instruídos, o que em parte se deve a esta falta de preparação técnica e psicológica;
- Precariedade da prova – falta de exames e relatório médico ou clínico;
- Remessa tardia dos autos a tribunal para julgamento;
- Falta de celeridade na tramitação dos processos em tribunal, principalmente nos tribunais de distrito de maior movimento processual, ligada a dificuldades de agenda de forma a cumprirem-se os prazos estabelecidos na lei no artº 26 para julgamento dos casos de violência doméstica;
- Falta de articulação entre os diversos intervenientes nos processos de violência doméstica (gabinetes, procuradoria, saúde, tribunais);
- Assistência Jurídica precária nesta matéria;
- Falta de psicólogos afectos ao tribunal – não obstante existirem algumas ONGs que trabalham directamente com vítimas de violência doméstica, prestando acompanhamento psicossocial, como é o caso da CAPAZ, infelizmente pela experiência prática que temos do dia-a-dia no nosso trabalho, sentimos que este apoio não se tem ainda feito sentir em tribunal. Talvez, naturalmente haja falta de articulação destas instituições com o próprio tribunal. Por isso, esperamos que deste encontro possamos sair com estratégias para implementação de um plano conjunto nesta matéria;
- Ausência de boas práticas – há falta de boas práticas e uniformização no seio do grupo acima indicado, incluindo aqui os tribunais, o que acaba criando disparidades no tratamento jurisdicional que é dado à vítima da violência doméstica. Como exemplo, podemos citar o facto de alguns magistrados admitirem a extinção do processo, por desistência ou por perdão da vítima, situações que não têm acolhimento legal na citada lei por se tratar de um crime de natureza pública, o que significa que o mesmo não admite perdão nem desistência por parte da vítima.
Boas práticas
Exemplos de Boas Práticas que têm sido adoptadas pelo Tribunal:
- Criação de uma base de dados – Foi criado a nível deste tribunal (Machava) um mapa estatístico específico para casos de violência doméstica, já que os dados referentes a este tipo de processos eram incorporados no mapa de processos de outra natureza. Achámos que criando ao lado dos restantes tipos de crime, um mapa estatístico que tratasse apenas dos processos de violência doméstica, iria facilitar e até incentivar a criação para o resto do judicial, uma base de dados que no futuro poderia ajudar na avaliação do impacto e do nível de implementação da Lei da Violência Doméstica em Moçambique;
- Celeridade no julgamento – Não obstante o movimento processual que é característico deste tribunal, tem sido feito um esforço de dar vasão aos processos de violência doméstica logo que dão entrada, tendo em conta a sua natureza urgente. Isto tem ajudado as vítimas a saírem com a devida brevidade da situação de violência e muitas vezes de abandono a que estavam expostas;
- Retro informação – uma vez julgados e sentenciados os processos, tem sido ordenado na própria sentença o envio da cópia da mesma aos gabinetes, para facilitar na elaboração dos dados estatísticos e como forma de acompanhamento das vítimas;
- Colaboração com outras instituições chave – Após a sentença condenatória e em caso de a vítima ter sido expulsa de casa, enviamos um ofício ao gabinete e à polícia para facilitar o regresso desta em segurança, à luz do disposto no artigo 6º, alínea f) da Lei da Violência Doméstica;
- Acompanhamento da situação da vítima – Telefonemas e visitas de acompanhamento da situação da vítima após decisão.
Conclusão
Em jeito de conclusão gostaríamos de reforçar que o objecto da presente reflexão, que tem como mote as boas práticas, no domínio do judiciário, quando estão em causa comportamentos subsumíveis aos ilícitos de violência doméstica que exigem do judiciário uma postura forte e de coesão nas suas práticas, como forma de mitigar o fenómeno aqui em análise. As boas práticas, repetimos, devem integrar, naturalmente, um completo conhecimento e recolha da factologia e das provas relevantes, uma competente interpretação dos factos, uma correcta qualificação jurídica, rigorosa apreciação da prova e adequada escolha da pena e sua dosimetria.
Mas antes de tudo isso, também as integram um conhecimento razoável do fenómeno social que subjaz a esta problemática e um claro panorama sobre o direito vigente na matéria.
Na verdade, de pouco servirá um esforçado empenho procedimental, se não se tiver uma noção suficientemente clara do bem jurídico tutelado pelas normas penais, pois o desnorte nesta matéria poderá comprometer, porventura irremediavelmente, a análise e selecção dos factos relevantes, a recolha das provas, a apresentação do caso em juízo e o alcance de uma decisão justa.
E dito isto, gostaria de terminar com um adágio de que gosto muito, usado por um Juiz de Ponta Delgada, Moreira das Neves, que acho que se enquadra perfeitamente na nossa situação e que é o seguinte:
É melhor ter bons juízes com más leis, do que boas leis com maus juízes.
E compreendem-se bem as razões do adágio. As boas práticas podem fazer boas as más leis e as más práticas más as boas leis. Mas o ideal seria ter boas leis e melhores práticas.
Este texto foi apresentado num encontro que teve lugar em Maputo, de 26 a 27 de Novembro de 2013, com o tema “Violência de género, cultura e direitos humanos”. Este evento foi uma iniciativa da WLSA Moçambique em conjunto com outros parceiros da sociedade civil e do governo.
Referências:
Leão, I., 2010. “Perspectiva de Gênero no Judiciário: promoção e garantia da igualdade”. In: Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci e, Patricia Tuma Martins Bertolin (org.), Mulher, Sociedade e Direitos Humanos. Homenagem à Professora Dra. Esther de Figueiredo Ferraz. São Paulo: Rideel.
Machado, C.; Gonçalves, R.A. (2003), Violência e Vítimas de Crimes. Coimbra: Quarteto.
Marques, M.M., Cristiano, A.; Pedroso, J., 2003. “A Justiça Cível nos Tribunais Provinciais”. In: Boaventura de Sousa Santos e João Carlos Trindade (org.), Conflito e Transformação Social. Uma Paisagem das Justiças em Moçambique, 1º volume. Porto: Edições Afrontamento.
Neves, J.F., 2009. Violência Doméstica, bem jurídico e boas práticas. Comunicação apresentada no dia 20/02/2009, no Centro de Estudos Judiciários, no âmbito do Curso Breve de Especialização Sobre Violência Doméstica Contra as Pessoas, Ponta Delgada.
Osório, C.; Temba, E., 2003. “A Justiça no Feminino”. In: Boaventura de Sousa Santos e João Carlos Trindade (org.), Conflito e Transformação Social. Uma Paisagem das Justiças em Moçambique, 1º volume. Porto: Edições Afrontamento.
Rudson, M., 2009. A Função Judicial no Tratamento da Violência Doméstica no Brasil: uma abordagem da Lei Maria da Penha à luz da política jurídica. Disponível aqui.
1. Juíza de Direito C afecta ao Tribunal Judicial do Distrito da Machava, na Província de Maputo.
2. Convenção Para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres.
3. Committee on the Elimination of Discrimination against Women. Thirty-eighth session 14 May-1 June 2007. Concluding comments of the Committee on the Elimination of Discrimination against Women: Mozambique. Disponível em: português ou inglês.
4. A expressão sistema formal de justiça é aqui utilizada em contraposição ao sistema informal da justiça. A Constituição moçambicana reconhece o pluralismo juridico, na medida em que se estabelece no art. 4º da CRM, que o Estado reconhece os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição. Daí que os conflitos, principalmente de nível familiar que envolvam a situação da mulher e criança, muitas vezes acabam sendo dirimidas nos vários sistemas tradicionais existentes e maioritariamente nos tribunais comunitários (que são tribunais de resolução de conflitos tendo como base a equidade, consenso e as práticas e costumes da terra).
5. Gabinetes de Atendimento de Mulheres e Crianças Vítimas de Violência, a operar nas esquadras de polícia.
6. Obviamente a questão é saber onde a mesma deverá aguardar. Pois para o lar conjugal certamente não voltará por temer mais violência e se não tiver familiares por perto que lhe possam dar a si e a seus filhos abrigo, fica no ar a questão de saber para onde irão esta mulher e estas crianças.
7. Recorrendo ao dicionário jurídico teríamos que SENTENÇA é uma decisão, resolução ou solução dada por uma autoridade a toda e qualquer questão submetida à sua jurisdição. Sentença e despacho são conceitos inconfundíveis. No despacho, quase sempre há uma ordem para que se faça ou se cumpra alguma coisa, sem a intenção de solucionar. Rigorosamente, não configura uma decisão nem pode ser identificado como um julgamento. A sentença sempre decide, ou julga a questão ou a causa trazida ao conhecimento do juiz, quando em caráter definitivo, o que será julgamento final, ou sempre põe fim a qualquer controvérsia suscitada perante o juiz. O despacho ordena factos relativos ao procedimento, determinando medidas, dispondo sobre actos que se devam praticar como necessários ao andamento do processo. Sentença é o acto pelo qual a autoridade, judicial, administrativa ou arbitral decide a questão, controvérsia ou contestação que lhe é submetida.
DESPACHO: É o acto de ofício do juiz tendente a dar andamento ao processo solucionando questões. Na técnica forense e administrativa, exprime a decisão proferida pela autoridade judicial ou administrativa nas petições, memoriais ou demais papéis submetidos pelas partes ao seu conhecimento e solução.
Mais, consistindo o despacho em uma solução ou ciência do requerimento, pedido ou questão levados ao conhecimento da autoridade, a fim de que determine ou delibere a respeito, vários aspectos pode o mesmo apresentar. Despacho, em sentido estrito, é o acto judicial que não é sentença ou decisão interlocutória.