Violência contra as mulheres:
entre o relativismo cultural e a lei
Maria José Arthur
No passado dia 16 de Dezembro de 2002, no Hotel Rovuma, em Maputo, procedeu-se ao lançamento do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde da OMS, na sua versão em língua portuguesa1. Esta cerimónia, organizada pela OMS, contou com a presença de Sua Excelência o Primeiro Ministro, de outros membros do Governo, de representantes de agências internacionais de cooperação e de representantes de vários sectores da sociedade civil.
Neste evento, a WLSA Moçambique foi chamada a fazer uma apresentação em nome da sociedade civil, salientando a importância do relatório para a luta pelos direitos humanos das mulheres. Essa intervenção, que apresentamos a seguir, tinha como objectivos, por um lado, evidenciar as lacunas nos instrumentos legais de que dispomos para lidar com o problema da violência contra as mulheres e, por outro, denunciar a tolerância em relação a este tipo de violência, por parte de políticos, de representantes de instituições estatais e do pessoal que trabalha no sistema de administração da justiça, justificada pelo respeito pela cultura.
“Apraz-nos constatar que o problema da violência reúne tantas individualidades e pessoas interessadas. Esperamos que a vossa presença aqui signifique um cometimento para a causa da erradicação da violência, nas suas várias vertentes e dimensões. A nós, como uma organização de luta pelos direitos humanos das mulheres, interessa-nos particularmente a violência que é dirigida contra a mulher, pelo facto de ser mulher, aquela que na maior parte das vezes está encoberta e é banalizada. Aquela que é o corolário lógico da subordinação das mulheres a um sistema patriarcal que outorga a homens e a mulheres diferentes posições, legitimando a dominação masculina.
Desde 1996 que as organizações de mulheres no país se têm mobilizado para combater uma das formas que assume a violência contra as mulheres, concretamente a violência doméstica. Através do programa “Todos Contra a Violência”, a Kulaya, a Muleide, a Associação das Mulheres Moçambicanas de Carreira Jurídica, a OMM, o Fórum Mulher e tantas outras, contribuíram com seus esforços para visibilizar este problema e para fazer dele um objecto legítimo de pesquisa e de intervenção. Através de uma coordenação central e potenciando as capacidades de cada organização, atacou-se a frente dos órgãos de comunicação social, da pesquisa, da formação e da sensibilização dos agentes de polícia nas esquadras, e do atendimento clínico, psicológico e legal das vítimas de violência.
No entanto, este trabalho esbarrou com um grande obstáculo, que é a falta de suporte legal para legitimar e tornar eficaz a acção, e a existência de práticas ao nível das instituições e dos agentes, que reproduzem estereótipos sobre os lugares respectivos de homens e de mulheres na sociedade, mantendo assim as bases que produzem e reproduzem o fenómeno da violência contra as mulheres. Estamos a falar de lacunas na lei e nas políticas públicas, de preconceitos contra as mulheres que muitas vezes estão implícitos nos programas e nas práticas das instituições, dos preconceitos contra as mulheres que os agentes de polícia, os procuradores e outro pessoal do sistema de administração da justiça fazem intervir quando se trata de ministrar justiça a homens e a mulheres, formalmente cidadãos com iguais direitos e deveres.
Como compreender esta situação se Moçambique tem, desde a primeira Constituição de 1975, inscrita na lei a igualdade entre homens e mulheres? Se o Governo de Moçambique ratificou um conjunto de convenções internacionais que são outros tantos instrumentos legais para a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres? Nomeadamente, e para citar só alguns, a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos.
O problema da violência contra as mulheres, e este relatório da OMS traz contribuições importantes que contribuem para desvendar a sua magnitude, é que ele é suportado por um modelo de dominação que, como qualquer outro, é legitimado por um sistema simbólico e por relações de poder que concorrem no sentido da sua manutenção e reprodução. Trata-se de ideologias e estruturas que sancionam a violação dos direitos humanos das mulheres.
Muitas vezes a violência contra as mulheres e, mais particularmente, a violência doméstica, aparece como um fenómeno que tem a ver com o “privado”, o “doméstico”, e como parte integrante das tradições e cultura populares. E assim, o que pode ser justificado como “cultural”, não é considerado como uma violação de direitos e não é nunca analisado no contexto dos direitos humanos. É este aspecto mesmo que é levantado pela Relatora Especial das Nações Unidas para a Violência contra as Mulheres, no seu relatório de 20022. Diz ela, “Em nome do relativismo cultural permitem-se práticas que violam os direitos humanos das mulheres, ameaçam a sua integridade física e o seu direito de expressão e os valores essenciais da igualdade e da dignidade”. Chama à atenção para o artigo 5º da CEDAW, em que se afirma que:
“Os Estados tomarão todas as medidas apropriadas para:
a) Modificar os padrões sócio-culturais de conduta de homens e de mulheres, com vista a alcançar a eliminação dos preconceitos e das práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole, que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos, ou em funções estereotipadas de homens e de mulheres”.
Conclui lembrando que os efeitos da tensão entre os direitos humanos universais e o relativismo cultural se fazem sentir no quotidiano de milhões de mulheres no mundo.
A cultura tem a ver com a construção das masculinidades e feminilidades, o que é feito de maneira relacional. Assim, enquanto às mulheres se ensina a obediência, a dedicação à família e ao marido, temos uma masculinidade hegemónica que é construída a partir do controle das mulheres e que é tolerante com a violência como forma de resolução de conflitos ao nível do casal.
A violência contra as mulheres é, pois, essencialmente uma forma de controle e de demarcação de limites, de fixação dos comportamentos e das atitudes apropriados. Concretamente, no caso da violência doméstica, esta é justificada, por um lado, como resposta para a transgressão (porque não respeitou o marido, os sogros, etc.; porque não cumpriu os seus deveres), por outro lado, para desencorajar novas transgressões. A este propósito, nos anos 90, na cidade de Chimoio, um informador explicou a violência doméstica da seguinte maneira: deve-se bater sempre que uma mulher não cumpra os seus deveres, mas deve-se bater com maneiras. Se se passar um ano ou dois sem ter havido faltas, mesmo assim é preciso bater pelo menos uma vez, para que ela, a mulher, não se desabitue. Senão, quando houver motivos de verdade, ela, que já se acostumou a não apanhar, vai-se revoltar.
Esta afirmação é muito reveladora de todo o problema: trata-se de poder, de submissão e de controle!
Até aqui temos vindo a falar da violência doméstica, mas outra dimensão igualmente importante da violência contra as mulheres é o abuso sexual. Ao contrário do que é voz comum, este relatório vem reafirmar o que muitos outros estudos já revelaram, que a casa é o sítio mais perigoso para uma mulher: se bem que o medo da violação ou da violência sexual esteja associado ao facto de se estar fora de casa, a grande maioria dos casos de violência sexual na realidade ocorre em casa da vítima ou do agressor. Afirma-se também que o factor de risco mais importante para as mulheres, que as expõe à violência sexual, é estar casada ou coabitar com um parceiro, porque o casamento é muitas vezes usado para legitimar a violência contra as mulheres, ao sancionar um certo grau de violência do marido contra a mulher.
No caso de Moçambique, o abuso sexual atinge as mulheres adultas e, em particular, as jovens raparigas e ocorre tanto em casa, como no bairro, como nas escolas. Os agressores podem ser os maridos ou companheiros, mas também os pais, outros familiares, os vizinhos ou os professores, sobretudo nas escolas primárias. No casamento, o sexo é potencialmente coercivo, já que se aceita ser obrigação das mulheres prestarem serviços sexuais aos seus maridos, sempre que estes assim o desejarem, independentemente do seu interesse ou da sua vontade.
Nós, como organizações que lutamos pelos direitos humanos das mulheres, sentimos que a actual situação em Moçambique é no mínimo frustrante. Há uma enorme distância entre intenção e gesto, o que quer dizer que os discursos políticos não coincidem com as práticas políticas e as das instituições do Estado. Não é ao nível dos discursos que os problemas se colocam, mas exactamente nas práticas.
Só dois exemplos.
- Como explicar que até agora os professores que violam meninas recebam como sanção a transferência para outra escola, onde continuam a violar mais meninas?
- Como explicar que a proposta de Lei de Família, um instrumento legal fundamental no combate à violência contra as mulheres, esteja, desde Agosto de 2001, no Parlamento, sem que tenha ainda sido discutida? O que dizer dos argumentos que nos vão chegando e que alegam ser esta proposta um atentado contra a cultura moçambicana, quando ela mais não faz do que traduzir o espírito da Constituição e das Convenções Internacionais ratificadas pelo Governo? Quando nos dizem que é insultuoso que a chefia da família não seja outorgada ao homem, que é inadmissível que seja fixada a mesma idade núbil para homens e mulheres, como se estas só precisassem de ter maturidade física para conceber e para estar em condições de se casarem?
Depois de um processo que levou mais de dois anos de debates constantes, de discussões nas províncias, de investimento em materiais educativos como brochuras e cartazes, vêm dizer-nos que ainda falta adequar a proposta à cultura moçambicana e falam-nos dos direitos dos polígamos e das mulheres que querem que o marido tenha muitas esposas e que adoram ser batidas, porque isso é uma prova de amor.
Enquanto isso, continua em vigor a Lei de 1966, que limita severamente os direitos das mulheres e lhes destina um lugar de segunda categoria. Como trabalhar nestas condições? Como trabalhar quando, na prática, em nome da cultura se violam os direitos dos cidadãos, neste caso, das cidadãs?
A proposta de Lei das Sucessões está paralisada, porque depende da aprovação da Lei de Família.
A revisão do Código Penal, iniciada quase ao mesmo tempo que a revisão da Lei de Família, está igualmente paralisada. Desconhecemos as razões de tal situação.
Gostaríamos de concluir lembrando que um dos indicadores mais seguros para aferir o grau de democracia de um país é a situação dos direitos humanos das mulheres, as possibilidades que estas têm de desfrutar plenamente dos seus direitos de cidadania, o grau de acesso aos níveis de decisão e aos recursos. Terminamos apelando para que, ONGs e Governo, unamos os nossos esforços neste combate.”
- Cf. o site da OMS: http://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/en/
- “Integración de los derechos humanos de la Mujer y la perspectiva de génereo. La violencia contra la mujer”. Informe de la Relatora Especial sobre la violencia contra la mujer, sus causas y consequencias, Sra. Radhika Coomaraswamy, presentado de conformidad con la resolución 2001/49 de la Comisión de Derechos Humanos. Naciones Unidas, 31 de enero de 2002.