Uma abordagem para a análise do Programa de Acção para a Redução da Pobreza, PARPA
Margarita Mejia
Publicado em “Outras Vozes”, nº 5, Novembro de 2003
A elaboração da análise de género do Programa de Acção para a Redução da Pobreza, PARPA, pressupõe um exercício de grande complexidade através do qual se aprofunde o conceito de pobreza e as suas características em Moçambique, com o apoio de uma pesquisa que tenha como enquadramento uma perspectiva de género para a análise da realidade moçambicana.1
O presente artigo não pretende, portanto, apresentar a análise de género do PARPA e sim, contribuir, com algumas reflexões, para abordar o objecto de estudo: a pobreza em Moçambique e as suas determinantes do ponto de vista da teoria de género.
Esta reflexão questiona a forma como o PARPA aborda o conceito de pobreza, enquadrado no modelo de crescimento económico acelerado e em indicadores macro que não conseguem definir acções que incluam as capacidades e os conhecimentos de mulheres e homens considerados pobres e muito menos reconhecer a sua participação no desenvolvimento, dada a prioridade do consumo na definição do seu estatuto de pobres como incapazes.
É obvio que o plano de acção realizado pelos sectores e compilado no PARPA pelo Ministério de Plano e Finanças se enquadra no modelo dominante que cria exclusão. Temos de reconhecer os esforços que, ao longo do documento, se têm feito para salientar a importância de criar oportunidades para os pobres, mas o conceito de pobreza não permite que as acções definidas modifiquem, a partir do diálogo com as dinâmicas locais de mulheres e homens, as condições de subordinação e invisibilidade que condiciona o acesso e o controlo de recursos, principalmente para as mulheres, as principais excluídas ao nível da sociedade em geral e da família em particular.
Este artigo propõe o diálogo a partir dum modelo justo e solidário que reconheça a igualdade de direitos e oportunidades, capacidades, conhecimentos e contribuições dos excluídos, mulheres e homens, ao desenvolvimento sustentável e ao crescimento económico, com vista a sensibilizar o processo para a redução da pobreza em Moçambique.
Importância do PARPA
O PARPA pode ser considerado o primeiro plano para o desenvolvimento de Moçambique, dada a imensa proporção do seu grupo-alvo, a maioria do povo moçambicano2. É um plano multi-sectorial com ênfase nos sectores sociais sem omitir aspectos macroeconómicos. O que faz com que a sua análise seja da maior importância é o seu enquadramento institucional como um instrumento de planificação a médio prazo para promover o enfoque sobre a redução da pobreza na dotação de recursos públicos através do Cenário Fiscal de Médio Prazo (MTFF). O PARPA é, portanto, um referente que se reflecte no Plano Económico e Social e no Orçamento do Estado.
É importante não passar por alto a importância de ter em Moçambique o PARPA, mesmo nos termos em que se encontra. O PARPA, sensível ao género, é uma meta ambiciosa e difícil. Portanto, na sua análise, é importante a participação das instituições interessadas no avanço da mulher e das ONGs comprometidas com a redução da pobreza e tem de se lutar pela sua representatividade no processo. Esta abordagem da análise é mais um passo para assegurar uma participação efectiva e eficiente dos excluídos e particularmente da mulher e dos interessados no seu reconhecimento.
Por que a análise de género?
A análise dos fenómenos obedece à perspectiva do observador, ou seja, está de acordo com os seus interesses. Estes constroem conceitos e padrões de análise para a interpretação da realidade e são também edificados com base em modelos dominantes que, de uma ou de outra forma, beneficiam aquilo que o modelo determina como importante.
Quando se fala de género muitas pessoas acham que género significa mulher, assuntos de mulheres, programas, projectos de mulheres. O PARPA sensível ao género poderia, portanto, significar que as actividades propostas fossem apenas para o benefício daquelas. O assunto, porém, é mais complexo. O que se pretende é que o PARPA apresente estratégias e actividades com base na situação e relações dos moçambicanos, mulheres e homens excluídos dos benefícios do crescimento económico, que têm como base a economia de mercado.
No actual modelo, o poder que exclui estabelece relações no campo político e económico criando modelos globalizantes que excluem a justiça social e limitam o papel do Estado na sua responsabilidade de prestação de serviços públicos e sociais. Estes passam para as mãos de empresas investidoras que os fornecem só a quem puder pagar um preço que permita obter lucros, ou seja, representam mais um produto do mercado. Os pobres são os excluídos e tornam-se dependentes das suas próprias capacidades e do seu conhecimento do local para a subsistência. Entre os pobres, as mulheres são aquelas que assumem a subsistência, sem reconhecimento na economia de mercado, tornando-se, portanto, invisível o seu trabalho.
A análise da sociedade moçambicana, da sua diversidade cultural, dos seus sistemas patri e matrilineares, do direito consuetudinário, é necessária para compreender hábitos e costumes que, socialmente, constroem a discriminação da mulher. Assim mesmo, é importante a valorização do papel da mulher na família e em todos os campos do desenvolvimento do País. Só um diálogo fecundo a partir de uma reflexão aprofundada poderá abrir espaços para o reconhecimento da igualdade de direitos e das diferenças sem hierarquias.
Moçambique subscreveu ao tratado internacional da Convenção para a eliminação de Todo o Tipo de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, ratificado a 2 de Junho de 1993) e a sua Constituição proclama este princípio, e assinou a Declaração sobre Género e Desenvolvimento dos Chefes de Estado do SADAC, em 1997, a qual reconhece a equidade de género como um direito humano e exige o fortalecimento de medidas para a sua implementação e monitoramento. Assinou também a Carta Africana dos Direitos dos Povos e da Mulher. Contudo, na prática isto não é simples. O Reporte de Adesão e o Protocolo Opcional do CEDAW assim como a Adenda da Declaração da SADC encontram-se, ainda hoje, à espera de serem ratificados pelo Conselho de Ministros. Muitas políticas e programas e mesmo a própria legislação não reflectem a igualdade de direitos para a mulher, quer no código civil, onde ainda se justifica a sua discriminação, quer na regulamentação das leis que pretenderam a igualdade (lei das terras). A lei de família tem tido um processo longo e enfrentado muitas dificuldades no Parlamento para o reconhecimento da mulher como igual na esfera privada. Muitos projectos não têm tido o devido impacto uma vez que não estão relacionados com as necessidades práticas e estratégicas das mulheres e de suas famílias.
A definição da Pobreza e a sua relação com os seus determinantes.
Para que se possam estabelecer objectivos e estratégias, a definição da Pobreza é fundamental. Se o conceito do que se quer reduzir não for claro não se pode saber como fazê-lo. Antes de entrar na análise da definição de pobreza contida no PARPA é necessário aprofundar a forma como se realiza a exclusão, conceito priorizado na origem da pobreza, segundo o nosso modelo de análise.
A exclusão tem origem nas relações de poder do modelo dominante que toma medidas para que, a partir do crescimento económico, os principais beneficiários sejam os capitais financeiros que impõem as regras do mercado e do investimento, sacrificando os sectores sociais, os serviços públicos e o emprego. Neste modelo aparece como mais lógico não investir onde não se produz lucro.
É importante, na altura, aprofundar a análise da construção da exclusão de oportunidades económicas, a nível dos países pobres e ao mesmo tempo, o motivo pelo qual estes países entram no jogo que beneficia apenas alguns e marginaliza a maioria.
Um dos pilares do modelo é o livre comércio que facilita as importações e proíbe o proteccionismo da produção nacional. Isto prejudica principalmente os países pobres que têm de recorrer a empréstimos com altos juros para fomentar a indústria nacional e os seus produtos, encarecidos pelo pagamento da dívida, perdendo a competitividade ante a inexorável lei de oferta e de procura.
Os países pobres vêem-se obrigados à exportação dos seus recursos naturais, não renováveis, quase sempre de forma não sustentável. O processamento da sua matéria-prima não se realiza na indústria nacional mas nas transnacionais que, apoiadas pela promoção que o modelo realiza sobre a importância do investimento estrangeiro para o desenvolvimento, localizam nestes países as suas indústrias, utilizando mão-de-obra barata que lhes permite uma maior competitividade para os seus produtos e um maior lucro ao investimento comparativamente com o fraco retorno para os países que favorecem a sua implantação.
Neste processo, os donos do modelo estabelecem relações de poder com o poder político dos países pobres de modo a facilitar os processos, propiciando, ao mesmo tempo, oportunidades económicas a quem participa na tomada de decisões. Muitos passam a ser excluídos dos benefícios e oportunidades, não usufruindo de direitos iguais embora contribuindo com o seu trabalho, muitas vezes intensivo, para o sucesso do modelo. Mesmo com os seus baixos salários, são induzidos ao consumo. Outros, os excluídos do emprego, que o modelo tende a racionalizar para atingir os seus objectivos, passam a ter uma forma de vida determinada ao nível da subsistência, dependendo para tal do seu conhecimento, habilidades e redes de solidariedade. Não têm capacidade de consumo, nem mesmo de beneficiar de serviços públicos ou sociais que deixam de ser direitos e passam a bens de consumo. Uns e outros são considerados pobres com maior ou menor incidência, segundo a sua capacidade de consumo. De entre os excluídos a mulher é a mais sacrificada.
Dentro das diversas formas de família que se geram na luta pela sobrevivência, é à mulher, com as suas múltiplas actividades, que cabe a responsabilidade daqueles serviços públicos, tais como procura de água, apanha de lenha e cuidados com os menores e os idosos. Isto apesar do modelo dominante não reconhecer a contribuição feminina. A mulher é apenas considerada como dependente e subordinada ao “chefe da família”, que controla o acesso aos fracos recursos. Os escassos rendimentos que consegue auferir são fruto do subemprego ou dos excedentes duma produção de subsistência não remunerada.
A não-aceitação das condições do modelo por parte dos países pobres significa o veto dos poderosos que acarreta, por sua vez, sanções económicas e guerras de desestabilização que os conduzem à miséria.
Voltando ao que se quer analisar, conforme o PARPA a pobreza é a “incapacidade dos indivíduos de assegurarem para si e para os seus dependentes, um conjunto de condições básicas mínimas para a sua subsistência e bem-estar, segundo as normas da sociedade”. Esta definição, tal como vem referido no próprio documento, antes de ser adoptada, foi muito discutida internamente. Não é por acaso que se gerou essa polémica, pensamos nós, pois a primeira apreciação que fazemos da mesma deixa-nos entender que são os indivíduos pobres que aparecem como responsáveis da sua própria pobreza, dada a sua incapacidade. Aliás, esta é uma saída que o modelo neoliberal dominante já utilizou para se eximir das suas responsabilidades. Isto é, fala no “círculo vicioso da pobreza”, suficientemente refutado pela análise de género, a par de um outro argumento ou “círculo”, o da “mulher, vítima da sua própria acção”, que explica a degradação ambiental como causadora de pobreza, tentando ultrapassar a sua responsabilidade pelo ambiente de exclusão e subordinação criado pelo modelo e responsável pela pobreza. No caso de Moçambique, qualificar o pobre como incapaz, seria reconhecer que 70% da população é incapacitada. A impossibilidade dos indivíduos daria margem de análise para obter determinantes mais apropriados da pobreza e abrir maiores probabilidades à realização de acções estratégicas para a sua redução.
A análise de género do termo “dependentes” daria para todo um tratado: dependentes de quem e do quê? Parece óbvio que, para o modelo, a dependência é do dinheiro e de quem o controla. O indicador de consumo per capita é um valor monetário que exclui ou torna invisível a contribuição da mulher e de outros membros da família, necessária para a subsistência.
O elevado número de dependentes e ainda as diferentes formas de família alargada, entre as quais a poligâmica, convertem-se em estratégias de sobrevivência para suprir as deficiências de modelos excludentes no acesso aos recursos e igualdade de direitos e oportunidades. Quer dizer, no lugar de ser uma determinante da pobreza passa a ser mais uma consequência das condições criadas pelo modelo dominante.
Este aspecto não só se refere à economia de mercado, último modelo concebido pelos dominadores. A colonização foi igualmente um modelo, na altura também justificado, que tornou ricos os países que conseguiram exercer com efectividade o seu domínio e aqueles que têm conseguido conservar o poder económico, adquirido a partir da carreira armamentista, componente que demonstra grande importância nos nossos dias. Alguns analistas, críticos do sistema actual, denominam-no de neocolonialismo.
Tudo isto para dizer que o “bem-estar, segundo as normas da sociedade” tem mudado conforme os modelos vigentes. Na sociedade de consumo o bem-estar pressupõe parâmetros de consumo muito alto e sofisticado, indispensáveis para não se marginalizar o mercado de trabalho. Nos países ricos, pessoas com salário considerado alto no nosso meio não conseguem adquirir os bens necessários que lhes permitam ser considerados económica e socialmente como competentes. Por isso, navegam num mar de dívidas que as mantém longe do bem-estar, mas contribui substancialmente para o índice de consumo que é o que interessa ao modelo.
O PARPA demonstra preocupação pelo que pode significar ser considerado pobre em Moçambique. Cita vários estudos sobre a percepção da pobreza indicando o debate que se tem suscitado em relação ao tema e identifica mesmo os conceitos de poder e exclusão como algumas das tendências dos últimos tempos. Contudo, parece combinar com o indicador de consumo o qual, cada vez mais, globaliza o bem-estar com os parâmetros da sociedade de consumo onde os serviços sociais básicos são produtos do mercado. Ter acesso a estes serviços significa ter capacidade de pagar por aquilo que precisa e tem direito de receber. O Estado deixa de assumir as suas responsabilidades.
À medida que se acelere no país a privatização de recursos, incluindo a terra, bens e serviços, exigência do crescimento acelerado, a incidência da pobreza, não como indicador, mas como realidade, vai aumentar, uma vez que as estratégias de subsistência, praticadas pelas mulheres e invisíveis para o modelo, vão de facto desaparecer. Os povos submergirão na miséria e criar-se-á um ambiente propício para alternativas erradas como a criminalidade e a corrupção. Isto começa a perceber-se em Maputo e é mais evidente na maioria dos países latino-americanos, expostos às exigências do crescimento económico acelerado há já várias décadas.
Em geral, todos os determinantes da pobreza que aparecem no PARPA mais do que a causa são a consequência da aplicação de modelos dominantes que procuram o seu benefício. As estratégias buscam eliminar as causas para minimizar os efeitos. No entanto, sendo estes considerados como causa, nunca poderia existir uma mudança real.
O último PARPA apresenta alguns pontos interessantes da conexão entre o crescimento económico e a redução da pobreza, mas, em geral, assume como lógico que um maior desenvolvimento económico contribui, por si próprio, para a redução da pobreza sem uma sustentação aprofundada de como realizá-lo ao longo do plano.
Embora o PARPA reconheça a participação dos pobres nos benefícios do crescimento económico como um imperativo político, a análise de género está praticamente excluída do diagnóstico da pobreza e, consequentemente, das estratégias, sem que se prevejam actividades para eliminar a discriminação que existe nas relações de género ao longo do plano. É importante a vontade política para que estes assuntos façam parte das estratégias e do plano de acção, assim como para os executar na gestão orçamental. Isto deve ser incluído no processo de revisão e avaliação do plano, com vista a assegurar a mudança de políticas e de programas necessária para a redução da pobreza em Moçambique, assegurando igualdade de direitos e oportunidades para todos, homens e mulheres.
- Artigo extraído da consultoria realizada para o Fórum Mulher pela autora.
- Segundo palavras da Ministra de Plano e Finanças, Luisa Diogo, na discussão do PARPA com a USAID em princípios do ano de 2002.