Reflexões sobre o debate público em torno da lei contra a violência doméstica
Alberto Cumbi
A 30 de Junho de 2009, o Parlamento aprovou na generalidade a proposta de lei contra a violência doméstica que afecta as mulheres, depois de um longo e atribulado processo. Como já se discutiu em outras ocasiões, neste mesmo boletim, notou-se entre algumas e alguns parlamentares um mal-estar, em primeiro lugar, por ser uma proposta de lei vinda da sociedade civil; em segundo lugar, por repousar sobre uma concepção que vê a violência doméstica contra as mulheres como violência de género, isto é, resultante de desequilíbrios de poder entre mulheres e homens na sociedade e na família; e, em terceiro lugar, por ser direccionada à protecção das mulheres, reconhecidas como as principais vítimas deste tipo de violência. Nesta ordem de ideias, as e os parlamentares do Gabinete da Mulher Parlamentar e da Comissão de Assuntos Sociais, de Género e Ambientais realizaram discussões em todo o país, que, segundo o divulgado pelos jornais, apontavam para a negação da proposta de lei como tal (veja texto do Movimento Pela Aprovação da Lei, “Parlamentares esvaziam proposta de lei contra a violência doméstica“, Outras Vozes, nº 27, 2009).
Quando depois deste processo se culminou com a aprovação, na generalidade, de uma lei com um conteúdo muito próximo ao da proposta inicial, foi uma grata mas intrigante surpresa. Esta mesma perplexidade ficou patente em alguns dos jornalistas, que inclusivamente acusaram o Parlamento de “trair o povo” (L. Mabunda, “Deputados traíram o povo”, O País, 17/07/2009), que argumentava que a lei foi aprovada contra a vontade expressa do “povo” nas reuniões de auscultação, em que se defendia que devia haver “mais abrangência”, quer dizer, referir-se a homens, mulheres, crianças, idosos e a todos os que partilham o espaço doméstico.
Entretanto, entre a aprovação, na generalidade, da lei, a 30 de Junho e a sua aprovação final a 21 de Julho de 2009 (depois de sucessivos adiamentos por falta de consenso), foram muitas as reacções na imprensa, rádio e televisão.
As reacções suscitadas pela aprovação do projecto de lei não são uniformes: uns posicionaram-se contra (justificando que a lei para além de agredir a tradição é discriminatória e contradiz a Constituição da República que defende a igualdade do homem e da mulher perante a lei), enquanto alguns preferiram ser muito cuidadosos e posicionaram-se de maneira ambígua, ou seja, ao mesmo tempo que apoiam a lei, negam-na. Para esses últimos a lei é importante e vem atacar a onda de violência no espaço doméstico, mas argumentam ser necessário que esta seja abrangente e proteja igualmente mulheres e homens. Posições em favor da lei foram poucas e pontuais.
A imprensa e a maneira como tratou a violência doméstica contra as mulheres e a proposta de lei deve ser analisada, pois para grande parte do público, que não teve acesso a nenhuma versão escrita da proposta de lei, nem antes nem depois da sua aprovação, os media são a única fonte de informação.
Análise e discussão das posições
As posições predominantes sobre a lei variam entre os que a recusam e os que, embora reconhecendo existir a necessidade de uma lei, defendem que ela deve considerar a evolução da situação, que é de que actualmente as mulheres estão a bater nos homens.
A nossa análise e discussão destas posições baseia-se na noção construtivista das relações sociais, ou seja, na premissa de que a maneira como homens e mulheres se comportam no seu dia-a-dia não é resultado da sua natureza biológica mas fruto da forma como eles são ensinados, desde à nascença, a se comportarem como homens e mulheres ideias. Uma das perspectivas que defende a visão construtivista do social é a de género: “Falar em género é falar de relações sociais em que o poder é desigualmente distribuído”. Isto significa que “a violência de género tem como ponto de partida uma diferenciação desigual dos papéis sociais de mulheres e de homens, o que quer dizer que, durante todo o círculo de vida, uns são socializados para a subalternidade e outros para a dominação” (Arthur e Mejía, 2006: 11).
A distribuição diferenciada de papéis e, por conseguinte, de expectativas entre homens e mulheres, durante o percurso biográfico, estrutura as relações conjugais. Os homens são orientados para o mando e as mulheres para a obediência. É dentro deste contexto que os discursos não apologistas da aprovação do Projecto de Lei ganham sentido e explicação.
Os discursos expressos através de artigos ou entrevistas publicados nos jornais, por um lado, estão permeados de valores tradicionais, crenças, mitos que revelam a incorporação naturalizada das desigualdades de género e, por outro, procuram reproduzir e perpetuar esse modelo cultural através de apelos à necessidade de respeito pela tradição que se acredita ter sido quebrada, apesar de existirem artigos e entrevistas que reconhecem a importância da aprovação de Lei da violência doméstica contra a mulher.
A ideia de que “a lei pode criar espaço para vermos os homens a serem espezinhados pelas mulheres todos os dias” (António Victor, Jornal Domingo 05/06/09; p. 3) mostra que o normal da sociedade é viver-se numa situação de desigualdade, ou seja, qualquer comportamento feminino que fuja dos papéis sociais definidos pela família é tido como humilhante para os homens. Isto fica bem claro quando os artigos apresentam evidências de situações em que os homens podem viver momentos de vexame. O trecho abaixo é ilustrativo:
“Está-se a aprovar uma lei que vai fomentar a voz das mulheres. Teremos homens obrigados a lavar as fraldas e a limpar o chão enquanto as esposas estão numa boa” (António Muchanga, Jornal Domingo 05/06/09; p. 3).
Isto significa que existe na sociedade especificidade de papéis normalizados e que a aprovação do projecto de lei é vista como uma ameaça a esse estado normal da sociedade. Porque lavar fraldas e limpar o chão são tidos como trabalhos naturalmente das mulheres então quando são desempenhados pelos homens vêm-se como um acto de humilhação masculina.
Esses trabalhos por não serem remunerados permitem a construção das mulheres que não se ocupam em funções remuneradas como improdutivas e não tendo direito, portanto, sobre os bens do casal. A passagem abaixo é reveladora: “senão todos os dias teremos homens obrigados a abandonarem as suas residências e a fortuna. Afinal quem cria riqueza numa casa? Não estaremos a criar condições para que haja separações e outros se apoderarem da riqueza do homem?” (António Victor, Jornal Domingo 05/06/09; p. 3).
A noção do homem como provedor da família está bem patente neste trecho e, por conseguinte, a “fortuna” da família é tida como da pertença do homem. Neste caso, a lei é vista como promotora de divórcios e como uma estratégia feminina para a usurpação dos bens masculinos uma vez que se acredita que as mulheres são improdutivas e que o homem é o único capaz de produzir a riqueza no seio da família.
Alguns dos artigos publicados argumentam que:
“Todos os dias nota-se homens a serem espezinhados pelas mulheres, havendo casos de espancamentos constantes, e que o mais recente caso foi de um homem que apanhou uma martelada na cabeça que lhe ceifou a vida e nenhuma feminista levantou a voz para o defender” (António Muchanga, Jornal Domingo 05/06/09; p. 3).
Este argumento não é consistente em todos os aspectos. Primeiro não diz onde e quando viu, só diz que viu, facto que nos autoriza a duvidar. Segundo: admitindo a possibilidade de ser verdade, o argumento peca por não apresentar os antecedentes da agressão uma vez que vários estudos mostram que as mulheres matam os seus maridos em legítima defesa, ou seja, em reacção ao ciclo de humilhações, agressões que se repetem todos os dias (Osório et al., 2002). Terceiro: a lei de violência doméstica contra as mulheres não se aplica “nos casos em que dos actos de violência resulte a morte” uma vez que nesses casos são “aplicadas as disposições do Código Penal”. Isto para dizer que não é imperioso que uma voz feminista defenda esse tipo de casos. O que se pretende com a lei é tipificar e tornar crime público casos de violência que tradicionalmente não são tidos como violência e remetidos para o campo familiar.
Por exemplo, o casamento é uma instituição que tradicionalmente simboliza a entrega da mulher ao homem, e não o inverso. Este simbolismo confere poderes aos homens sobre o corpo da mulher. Isto explica porque nas relações conjugais e amorosas as mulheres são obrigadas a satisfazer sexualmente os seus cônjuges ou parceiros quer elas queiram quer não. Ou seja, as mulheres são coagidas a uma cópula não consentida e isso não é visto como violência. Para além de conferir poderes sobre o corpo da mulher confere poderes sobre o seu comportamento. Dito do outro modo, a mulher deve agir em função do modelo de conduta aceite pela sociedade, caso contrário, o marido é tido como aquele que deve corrigir, para salvaguardar a sua honra e prestígio na família, agredindo fisicamente ou psicologicamente à esposa. São estas as formas de violência de género que dificilmente o Código Penal criminaliza devido ao seu carácter normalizado que a nova Lei pretende penalizar.
Noutros desenvolvimentos, os artigos defendem que a nova Lei ao atacar o machismo promove o “mulherismo” acentuado (Jorge Matine, Domingo, 5 de Julho de 2009, p. 23). Isto é, reconhece-se que as mulheres historicamente são estigmatizadas, escravizadas e agredidas mas afirma-se também que os homens são violentados, por isso, a lei tem que ser abrangente. Este argumento ilustra claramente a resistência do poder patriarcal de reconhecer a igualdade de direito entre homens e mulheres e de pretender criar estratégias para a reprodução da dominação masculina. Se a Lei favorecer homens e mulheres, cria-se condições para a manipulação deste instrumento legal tanto ao nível familiar, como dos tribunais, para uma aplicação discriminatória da lei, favorecendo, logicamente, os homens.
Temos que ter em conta que os direitos humanos foram criados excluindo sempre as mulheres. Essa exclusão assenta num conjunto de valores que constroem a mulher não como um sujeito detentor de direitos mas como um objecto desprovido de direitos. Essa estrutura social influencia na forma como é administrada a justiça mesmo numa situação em que a lei olha para o homem e a mulher como iguais (Osório et al., 2000). Neste contexto, é necessário um instrumento legal que proteja apenas as mulheres para que não haja possibilidade de instrumentalização da Lei a favor dos homens, criminalizando cada vez mais as mulheres. Por exemplo, socialmente é aceite como normal que um homem dê uma bofetada ou profira palavras pejorativas à sua esposa ou parceiro uma vez que se acredita no direito e dever do homem de educar a sua esposa, mas o caso é bem diferente quando se trata de uma mulher. Uma mulher que, em reacção ao abuso masculino, der uma bofetada ou agredir verbalmente ao seu marido ou parceiro é tida como anormal, desviada, fora do padrão normativo aceite pela sociedade.
Nestes casos, havendo uma lei abrangente, os homens podem apresentar queixa ao tribunal e, como os espaços de administradores da justiça também partilham desses valores tradicionais a mulher pode ser condenada juridicamente e sancionada socialmente (Osório et al., 2000), voltando-se portanto à situação anterior em que, numa situação de aparente igualdade, os homens saem a ganhar. Esta é uma das razões porque a Lei não é abrangente, não como uma luta contra os homens (aquilo que, em alguns dos artigos que recorremos para esta discussão, de “mulherismo acentuado”), mas como um desafio aos valores patriarcais que subalternizam as mulheres.
Notas finais
Com a leitura dos artigos ou entrevistas saltou-nos à vista a ideia de que a aprovação do projecto de lei de violência doméstica contra a mulher vai provocar conflitos conjugais e ou divórcios. Contrariamente ao que se acredita, os antagonismos ou divórcios não serão agudizados pela aprovação da lei mas pela resistência do modelo patriarcal, expressa em discursos e linguagens sexistas que se produzem quotidianamente, em aceitar à mudança. Qualquer mudança que procura modificar uma ordem social, luta contra os beneficiários ou os alienados pelo status quo prevalecente e essa luta nunca é pacífica.
Os discursos veiculados nos artigos e entrevista publicados em jornais, estão permeados de crenças culturais que representam a mulheres como submissas, obedientes e subalternas em relação ao homem, não tendo, por isso, direito de viver numa situação de igualdade. A lei como um instrumento que procura subverter esse normativismo social, suscita reacções que procuram estigmatizá-la com o intuito de manter a ordem social prevalecente.
Referências:
ARTHUR, M. José; MEJÍA, Margarita (2006). Coragem e impunidade: denúncia e tratamento da violência doméstica contra as mulheres em Moçambique. Maputo: WLSA Moçambique.
OSÓRIO, Conceição, et al. (2000). A ilusão da transparência na administração da justiça. Maputo: WLSA Moçambique.
________, et al. (2002). Poder e violência: homicídio e femicídio em Moçambique. Maputo: WLSA Moçambique.
Outras referências em jornais nacionais:
- AR aprova lei da violência doméstica contra a mulher. In: O País (AIM), 21 de Julho de 2009
- Borges Nhamirre, Lei sobre Violência Doméstica transforma todo homem em diabo. In: Canal de Moçambique, 30 de Junho de 2009
- Homem penalizado, mulher poupada. In: Savana, 3 de Julho de 2009
- Lazáro Mabunda, As queixas de homem domesticamente violentado. In: O País, 30 de Abril de 2009
- Ricardo Machava, Esposa espanca frequentemente seu próprio marido. In: O País, 31 de Março de 2009
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