Proposta de lei contra a violência doméstica: processo e fundamentos
Ximena Andrade
Publicado em “Outras Vozes”, nº 26, Março de 2009
O processo que conduziu à elaboração do projecto de Lei contra a Violência Doméstica, elaborado pela sociedade civil e entregue ao Gabinete da Mulher Parlamentar para ser discutido no Parlamento, baseou-se em diversas instâncias e partiu de várias condições que passamos a expor:
Primeira: A perspectiva de direitos humanos em que se formou a República de Moçambique, onde o princípio de igualdade de direitos humanos entre as/os indivíduos como cidadãs e cidadãos foi o pilar para assentar os direitos constitucionais que regem a nova nação – entre eles o princípio de igualdade entre mulheres e homens.
Segunda: A informação casuística referente à violência contra as mulheres, exercida, em especial, e comummente, no contexto marital e/ou ex-marital (designada de violência doméstica e que caracterizaremos mais à frente), necessitava de uma informação científica, através da investigação da realidade, para poder avaliar a sua extensão e características. Nesta actividade ajudou bastante a análise comparativa da informação proveniente da região, onde havia uma preocupação semelhante à nossa.
Terceira: As investigações relativas ao tema começaram em 1989 e continuaram até à data, sendo efectuadas a partir de vários ângulos do conhecimento da realidade: no âmbito do direito a alimentos e direito sucessório, no contexto da família e da administração da justiça. Os estudos prosseguiam sobre o funcionamento dos Gabinetes de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de Violência das esquadras da polícia.
As pesquisas aplicadas tanto nas áreas urbanas como rurais das diferentes regiões do país incluíram três dimensões de análise: o direito positivo ou estatutário, o direito consuetudinário e as práticas, utilizando a metodologia da investigação participativa e partindo da perspectiva dos direitos humanos como modelo teórico.
A informação obtida sobre violência contra as mulheres demonstrou tratar-se de um fenómeno estruturante da manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, que têm conduzido à dominação masculina, à discriminação contra as mulheres e à interposição de obstáculos contra o seu pleno desenvolvimento.
Mas, sobretudo, o que se observou foi que os direitos humanos das mulheres eram violados, simplesmente pelo facto de ela ser mulher e, que, se por um lado são consagrados na Constituição da República e, por outro, plasmados nos instrumentos internacionais e africanos, especificamente de direitos humanos, dos quais Moçambique era e é Estado Parte, estávamos perante uma situação grave que necessitava de ser revertida.
Entre os instrumentos internacionais a que nos referimos está a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adoptada em Dezembro de 1979 na ONU (mais conhecida por CEDAW, na sua sigla em inglês). A sua importância deve-se ao facto de ser o único instrumento legalmente vinculante, com enfoque específico para combater a discriminação contra as mulheres. A CEDAW é considerada como o “Instrumento de Direitos Humanos das Mulheres” e, até hoje, continua a ser o principal instrumento internacional para garantir a igualdade das mulheres e erradicar todo o tipo de práticas discriminatórias. Destacam-se entre elas a violência de género como uma das mais atentatórias aos seus direitos humanos, sobretudo onde ela é mais patente: em casa. Ou seja, por outras palavras: a violência doméstica.
Nesta Convenção são dadas duas recomendações específicas aos Governos, relativamente à violência contra as mulheres e, em particular, aquela observada no âmbito da casa. Estas são: i) publicada em 1989, nº 12, recomenda aos Estados Parte que incluam nos seus relatórios informação relativa aos avanços (entre outros) sobre a legislação vigente para proteger as mulheres de qualquer violência, particularmente a ocorrida no âmbito familiar; informação sobre outras medidas adoptadas para erradicar este tipo de violência; informação sobre os serviços de apoio às mulheres que sofrem agressões e maus-tratos, assim com dados estatísticos da frequência deste tipo de violência contra as mulheres.
Por sua parte a ii) Recomendação nº 19 (1991) destaca o que se considera a violência para as mulheres, definindo-a como: “a violência contra as mulheres, que afecta ou anula o gozo dos seus direitos humanos e das suas liberdades fundamentais em virtude do direito universal e dos diversos convénios de direitos humanos, constituindo discriminação, tal como é definido no artigo 1º da Convenção, que compreende entre outros: o direito à vida; o direito a não ser submetida a torturas ou maus-tratos ou penas cruéis, inumanas ou degradantes e o direito à igualdade na família”.
O objectivo destas duas recomendações (entre as 25 emitidas pelo Comité da CEDAW) é exortar aos Estados Parte para que velem para que as leis contra a violência e maus tratos na família, a violação, o assédio sexual e outro tipo de violência contra as mulheres, protejam de forma adequada todas as mulheres e respeitem a sua integridade e a sua dignidade. Também indicam ser necessário proporcionar às vítimas protecção e apoio apropriados e consideram ser indispensável capacitar os funcionários judiciais, os agentes da ordem pública e outros funcionários públicos a aplicarem a Convenção.
Também, na Declaração e Plano de Acção de Viena (Conferência sobre Direitos Humanos, 1993), reconhece-se que a violência baseada nas relações sociais de género é “incompatível com a dignidade e valor do ser humano e, deve ser eliminada (…) através de medidas legais e da acção nacional e a cooperação internacional nos campos do desenvolvimento económico e social, educativo, da saúde e apoio social”.
Ainda na Declaração da Eliminação da Violência contra as Mulheres, define-se violência de género como “todo o acto de violência baseado na pertença ao sexo feminino, que tenha como resultado um dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para a mulher, inclusivamente as ameaças de tais actos, a coacção ou a privação arbitrária da liberdade, tanto se produz na via pública como na privada”.
Finalmente, no Protocolo dos Direitos Humanos da Mulher Africana à Carta dos Direitos Humanos e dos Povos, no artigo 4º (Direito à Vida, à Integridade e à Segurança da Pessoa), assinala-se no nº 2, que os Estados Parte devem tomar todas as medidas apropriadas e efectivas para:
- “Promulgar e aplicar leis que proíbam todas as formas de violência contra as mulheres, incluindo as relações sexuais não desejadas e forçadas, quer em espaço privado ou em espaço público;
- Adoptar todas as outras medidas legislativas, administrativas, sociais, económicas e outras que possam ser necessárias para garantir a prevenção, punição e erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres;
- Identificar as causas e as consequências da violência contra as mulheres, e tomar as medidas apropriadas com vista a prevenir e a eliminar a violência;
- Promover activamente a educação da paz, através dos currículos escolares e da comunicação social, de forma a erradicar elementos que legitimam e exacerbam a persistência e a tolerância da violência contra as mulheres, contidos nas crenças, atitudes tradicionais e culturais, nas práticas e estereótipos;
- Punir os perpetradores da violência contra as mulheres e implementar programas para a reabilitação das mulheres vítimas;
- Estabelecer mecanismos e serviços acessíveis para assegurar a informação, a reabilitação e a indemnização efectiva das mulheres vítimas da violência;
- Prevenir e condenar o tráfico de mulheres, processar os perpetradores do mesmo e proteger as mulheres mais expostas ao risco de tráfico;
- Atribuir recursos orçamentais adequados e outros para a implementação e monitoria de acções que visam prevenir e erradicar a violência contra as mulheres”.
Assim, como uma quarta instância deste processo, deve-se indicar que foi no ano 2000, durante a Marcha Mundial das Mulheres, que a sociedade civil se comprometeu a levar a cabo, pela primeira vez na história do país, um projecto de lei relativo à violência contra as mulheres.
Para o efeito formou-se um grupo técnico entre pessoas das organizações pertencentes ao Fórum Mulher. Para a realização deste projecto (que teve várias e variadas versões), a equipa baseou-se nos conteúdos das fontes mencionadas. Quer dizer, nos resultados das pesquisas realizadas no país, na região e à escala internacional; na Lei-Mãe da República e sua legislação ordinária; nos instrumentos internacionais e regionais de direitos humanos, dos quais Moçambique é Estado Parte e na legislação ad-hoc de África e de outros países, assim como na sua experiência de aplicação.
Este processo, que teve uma duração de quase três anos, mereceu uma extensa consulta. O projecto de Lei foi submetido à auscultação e debate em quatro reuniões regionais: uma por cada região do país e uma na Cidade de Maputo. Nestas reuniões participaram representantes da sociedade civil, da administração da justiça e do Estado e do poder local, provenientes das diferentes províncias. A informação recolhida nesta actividade foi analisada e incorporada ao projecto de Lei, dando lugar a mais uma nova versão do mesmo.
Pela proximidade de Moçambique com a África do Sul, a equipa deslocou-se a este país vizinho para debater o projecto de lei com membros da sociedade civil e da Administração da Justiça e assim cotejar a sua experiência e subsídios para melhorar o projecto.
Para completar o processo de realização do projecto de lei, deslocou-se ao país Alda Facio, consultora do Secretário-geral da ONU para os assuntos da violência contra as mulheres. A versão final apresentada na Reunião Nacional da sociedade civil para a aprovação do projecto a ser apresentado ao Parlamento (Abril 2006) contou com a sua intervenção.
Na Reunião Nacional da sociedade civil para a aprovação do projecto de Lei de Violência Doméstica, onde participaram mais de 150 pessoas, entre representantes da sociedade civil, administração da justiça e do Estado, da Assembleia da República e do Comité Africano de Direitos Humanos, na presença da Senhora Ângela Melo, o projecto de lei da violência doméstica, com as respectivas emendas surgidas do debate, foi aprovado por unanimidade pelos presentes na reunião.
Depois de incorporadas as correcções emanadas da Reunião Nacional durante o ano 2006 o projecto de lei foi entregue ao Gabinete da Mulher Parlamentar para que fosse submetido ao Parlamento.
Ulteriormente, têm-se realizado várias reuniões entre a equipa e o Gabinete da Mulher Parlamentar e ainda com a Comissão dos Assuntos Jurídicos da Assembleia, sendo actualmente o ponto de situação o que se segue:
- O projecto de Lei foi discutido pelas Comissões ad-hoc do Parlamento, cujo resultado, infelizmente, esvazia os conteúdos dos princípios dos Direitos Humanos em geral, e em particular dos Direitos Humanos das Mulheres, que com tanto esmero e cuidado a sociedade civil tentou incorporar, com o intuito de que real e concretamente os Direitos Humanos das Mulheres moçambicanas estivessem resguardados.
- Todo este processo de elaboração e proposta de uma lei contra a violência doméstica constituiu um exercício de cidadania, à luz do que já anteriormente aconteceu, por exemplo, com a Campanha da Terra. Com efeito, uma sociedade é tão mais democrática quanto consegue ser inclusiva dos vários grupos e interesses presentes, quer dizer, quando a diferença não é usada como desculpa para excluir, mas sim existe a preocupação de dar voz a todas e todos e tomar em consideração que existem expectativas e necessidades diversas. Por isso, a inclusão dos direitos humanos das mulheres é uma exigência democrática.
Finalmente, para terminar, permitam-me ler os comentários enviados pelo Fórum Mulher aos comentários ao projecto de Lei de Violência Doméstica realizada pelas Comissões do Parlamento.
Comentários do Fórum Mulher à apreciação feita pelas comissões à proposta de lei contra a violência doméstica
O projecto de lei apresentado pela sociedade civil foi elaborado com base na Constituição da República de Moçambique, nos instrumentos de direitos humanos internacionais e regionais vinculativos, ratificados por Moçambique (Refª artº 4º do CEDAW e o Protocolo Opcional).
O processo de elaboração desta proposta de Lei, foi participativo e incorporou as contribuições que resultaram dos seminários regionais realizados entre 2004 e 2005, nas três regiões do país Norte, Centro e Sul, assim como na Cidade e Província de Maputo, com representantes de diversas organizações da sociedade civil, de instituições do Estado, da administração da justiça, líderes comunitários e religiosos. Na sequência desses debates, em Abril de 2006 foi realizada na Cidade de Maputo uma Reunião Nacional onde o projecto foi adoptado por unanimidade.
Por tudo isto, é nossa convicção que qualquer modificação ao projecto não pode desvirtuar os objectivos e os princípios que nortearam a sua elaboração. Pretendemos uma lei que previna e proteja efectivamente as mulheres da violência do género, que seja uma lei acessível, autónoma, que descreva todas as situações de violência e preveja os procedimentos a seguir sem remissões substanciais à lei geral.
Nesta medida, o Fórum Mulher defende que a proposta de lei deve ser aprovada na íntegra, embora admita que possam ser introduzidas algumas alterações, designadamente de natureza técnica, mantendo os princípios que conduziram à elaboração da proposta e que passamos a expor:
1. Os crimes de violência doméstica devem ser considerados de natureza pública. A ideia de que tudo o que acontece no foro doméstico é de carácter privado e que se deve respeitar essa privacidade parece-nos ultrapassada, pois a tendência actual é, em nome da protecção dos direitos humanos, limitar cada vez mais o espaço dessa privacidade. Não é aceitável que se impeça o Estado de agir perante uma situação clara de grave violação do direito de uma pessoa, quer seja homem ou mulher. A partir do momento em que há violação dos direitos humanos, deixa de existir foro privado.
2. Em segundo lugar, acresce o facto de que as pessoas no ambiente doméstico deveriam ter mais protecção do que fora dele, por estarem mais expostas e dependentes do seu agressor. Portanto, para que se possa entender a necessidade da natureza pública deste crime deve-se ter em conta a qualidade do agressor e da vítima e a obrigatoriedade do Estado de proteger os cidadãos contra todos os perigos.
3. Da mesma forma, defendemos que a lei deve prever o máximo possível do procedimento sem muitas remissões para a lei geral, para que esta seja acessível a qualquer cidadão. Havendo remissões para a regra geral significa que as pessoas devem ter o Código de Processo Penal e é sabido que a linguagem jurídica não é inteligível para qualquer cidadão, sendo um mal que se pretende erradicar a partir da própria Lei. Com uma simples leitura da lei as pessoas devem saber que atitude tomar perante determinada situação e o que acontecerá em seguida.
4. Finalmente, pensamos que deve ser especificado que, sendo as mulheres as principais vítimas da violência doméstica e pelo facto de se encontrarem em situação de grande desigualdade em relação aos homens, uma Lei contra a violência doméstica deve protegê-las de forma específica (o mesmo que acontece com a Lei sobre o HIV/SIDA, já aprovada pela Assembleia da República, onde se admite a feminização do SIDA).
O Fórum Mulher reconhece, no entanto, que a Assembleia da República tem toda a autonomia para introduzir as alterações que entender, deixando de lado os princípios mais básicos de defesa dos direitos humanos, mas alertamos que dessa maneira não se protegerá as mulheres contra situações de violência, o que é contra a Constituição da República de Moçambique e os instrumentos internacionais e regionais ratificados por Moçambique sem reservas e plenamente vigentes.
A ser submetida à discussão uma outra lei, sem os princípios e objectivos fundamentais da proposta da sociedade civil, ela não defenderá os direitos humanos das mulheres e, porque o Fórum Mulher está comprometido com esse valor fundamental, não reconhecerá a proposta e continuará lutando, de todas as formas possíveis, por uma Lei que realmente garanta os direitos humanos das mulheres, para quem a igualdade tão prometida tarda muito a chegar.
A terminar, recordamos que o Conselho de Ministros aprovou em 2008 o Plano Nacional para a Prevenção e Combate à Violência Contra a Mulher. Todavia, a implementação efectiva deste Plano só será possível mediante a acção de uma Lei no mesmo âmbito, conforme as “Recomendações da Trigésima Oitava Sessão da Comissão para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres”, ao Relatório apresentado pelo Governo de Moçambique àquele órgão das Nações Unidas, em 2007.
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