Proposta de lei contra a violência doméstica: ponto de situação
Publicado em “Outras Vozes”, nº 24-25, Fevereiro de 2009
A proposta de lei contra a violência doméstica, elaborada pela sociedade civil e que se encontra desde 2006 no Parlamento, ainda não foi aprovada. Entretanto, o Parlamento decidiu aprofundar mais o assunto, tendo já realizado pelo menos um seminário interno para discussão da proposta e está a pensar em efectuar visitas às províncias para auscultação sobre a mesma, junto a vários sectores da sociedade. Entretanto, foi já produzida uma contraproposta de lei, que se divulgou entre as organizações que fazem parte do Movimento Pela Aprovação da Lei Contra a Violência Doméstica. Face a esta situação, gostaríamos de discutir alguns aspectos.
Em primeiro lugar, e desde que em 2007 as organizações da sociedade civil envolvidas na elaboração da proposta de lei contra a violência doméstica a apresentaram simbolicamente ao Parlamento (a entrega formal ocorreu em 2006), após uma marcha que assinalou o início da Campanha dos 16 Dias de Activismo contra a Violência de Género, deputadas/os das duas bancadas têm-se mostrado descontentes (e em alguns casos quase ultrajadas/os) pela ousadia que representa: i) ser a sociedade civil a propor uma lei directamente ao Parlamento, sem passar pelo governo; ii) o manifesto em que se “exigia” que a proposta de lei fosse aprovada na íntegra.
Se considerarmos que a possibilidade de propor uma lei directamente ao Parlamento é uma prorrogativa garantida pela Constituição e que, como eleitoras/es, temos todo o direito de exigir às/aos deputadas/os eleitas/os que ao legislarem respeitem os princípios legais do país e os interesses e as necessidades das mulheres, a indignação e os obstáculos criados em relação a esta iniciativa da sociedade civil é reveladora de que não chega constituir instituições democráticas, mas que é preciso criar também uma cultura democrática que restitua as/os deputadas/os ao seu papel de servidores do povo e valorize a possibilidade de expressão da diversidade de interesses na sociedade como central à democracia.
Em segundo lugar, sentimos que por parte dos deputadas/os há uma atitude de desvalorização de toda a preparação, que levou anos, das organizações da sociedade civil que propuseram a proposta de lei. Inclusivamente, todos os trabalhos de pesquisa que se realizaram nos últimos 8 a 10 anos são menosprezados.
Por outro lado, questionamo-nos também se as/os deputadas/os pretendem legislar somente a partir dos costumes das populações. Afinal, as leis devem limitar-se a transcrever o que já existe como norma informal? Ou não será que as leis reflectem ideais de convivência e de respeito pelos direitos humanos de todas/os, independentemente da sua origem, sexo, religião e raça, entre outros? O que acontecerá se a “consulta popular” (leia-se: “consulta de chefes locais, todos homens”) resultar no sentido inverso aos princípios da Constituição, principal fonte de direito, o que tem toda a probabilidade de suceder? E o que fazer, relativamente aos compromissos que resultam da ratificação de convenções internacionais e que são vinculativas?
Em terceiro lugar, se nos debruçarmos sobre a contraproposta já existente, vemos que as principais alterações transformam radicalmente o conteúdo da proposta original. Estas mudanças dizem respeito a:
- Contesta-se que a lei se dirija especificamente para as mulheres, e propõe-se que abranja todos os que vivem no espaço doméstico, incluindo mulheres, homens, idosos e crianças.
- Retiram-se todas as obrigações do Estado relativamente à protecção das vítimas de violência.
- Retiram-se da lei as definições que a ajudam a interpretar e que reconhecem que o fenómeno da violência doméstica resulta de desequilíbrios de poder entre mulheres e homens na família.
- Questiona-se a classificação da violência doméstica como crime público.
Em ocasiões anteriores já tivemos a oportunidade de comentar as posições acima apresentadas, concretamente no comunicado “O que é que uma lei contra a Violência Doméstica deve garantir“, que pode ser consultado no site da WLSA Moçambique. Mesmo correndo o risco de repetição, resumamos os argumentos então apresentados:
- A violência doméstica contra as mulheres só é possível porque existe um modelo de dominação patriarcal que garante a dominação masculina e a subordinação feminina.
- Uma Lei Contra a Violência Doméstica deve restringir-se à violência que ocorre no âmbito do casamento e das relações de conjugalidade, que são estruturadas na desigualdade e que influenciam todas as outras relações sociais ao nível da família. Outras formas de violência devem merecer instrumentos legais específicos.
- Uma Lei Contra a Violência Doméstica deve proteger especificamente as mulheres, não só porque são elas as principais vítimas, mas também porque se encontram em situação de grande desigualdade em relação aos homens.
- Reconhecendo que as mulheres que denunciam sofrem de ameaças e de uma escalada nas agressões que tanto pode provir do agressor como dos familiares deste, a violência doméstica, na lei, deve passar a ser crime público.
Perante o exposto, apresentam-se três cenários:
- A proposta de lei é aprovada na íntegra ou pelo menos respeitando o espírito que norteou a sua elaboração.
- A proposta de lei não é aprovada.
- Aprova-se uma lei contra a violência doméstica, mantendo-se a designação inicial, mas alterando radicalmente o seu conteúdo.
Pela maneira como a situação se apresenta o terceiro cenário é o mais provável. Neste caso, a nossa posição é de total demarcação: se não se respeitarem os princípios da Constituição e das Convenções Internacionais ratificadas, se não se reconhecer que a violência doméstica atinge sobretudo as mulheres e resulta do modelo patriarcal que as subordina na família e na sociedade, então poder-se-á ter qualquer outra coisa, mas não se estará a atacar o verdadeiro problema.
A suceder isto, estarão defraudadas as expectativas de todos e todas que trabalham nesta área e que pretendiam um instrumento legal capaz de ser mais justo, mais solidário e mais pronto na resolução dos enormes problemas que resultam da violência doméstica. Mais grave ainda, será uma traição às mulheres de Moçambique, para quem a igualdade de direitos está a tardar muito a chegar.
Terminamos apelando para que nem os “argumentos culturais”, nem os interesses pessoais, interfiram com a nobre acção de legislar, para que todas e todos tenham acesso à justiça e ao pleno exercício dos seus direitos de cidadania.