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Pesquisa sobre o abuso sexual de raparigas nas escolas moçambicanas. Principais resultados

Síntese

 

Publicado em Outras Vozes, nº 20, Agosto de 2007

 

Este texto é um resumo de alguns dos resultados de um estudo
dirigido pela organização Save The Children, no ano 2005.

Introdução

A declaração de Jomtien, que foi subscrita por Moçambique, aponta a educação para todos como um dos objectivos básicos até 2015. Para a realização destes objectivos vários factores concorrem e um deles é a criação de equidade no acesso à educação. Embora o governo moçambicano esteja a desenvolver políticas visando o aumento da participação da rapariga na escola, a equidade está muito aquém do desejável. O relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD (2001) demonstra esta situação. Revela, por exemplo, que da população total matriculada naquele ano, apenas 8,7% das raparigas é que completara os dois níveis do ensino básico (EP1 e EP2), comparativamente aos 17% dos rapazes.

Também, se se comparar a percentagem de ingressos da população feminina nos diferentes níveis de escolarização (EP1, EP2, ES1, ES2) certamente que se constatará que ao nível do EP1 a percentagem ronda acima de 80%, reduzindo drasticamente nos restantes níveis, no EP2 variando entre os 5 e 15%, no ES1 abaixo dos 5% (dados recolhidos do Departamento de Planificação do MINED, 2003).

Factores sócio-culturais têm sido tradicionalmente apontados como maiores causadores da desigualdade no acesso à educação formal, traduzidos no facto das famílias priorizarem a educação dos rapazes em detrimento das raparigas e, também, na ocorrência de casamentos prematuros ou gravidezes indesejadas, estando estes últimos, na maior parte das vezes, aliados ao abuso sexual.

De facto, em Moçambique, maior número de raparigas menores de 18 anos abandona a escola para iniciar uma vida adulta, seja de uma forma forçada ou não. De certo modo, parece que muitas famílias deste país ainda não estão bem consciencializadas relativamente à importância da educação formal da rapariga, reservando-lhe o papel de esposa e mãe. Infelizmente, ainda são em número reduzido as famílias que incentivam as raparigas a estudar e, nos casos em que isso acontece, ela acaba por encontrar barreiras na própria escola.

Alguns estudos desenvolvidos no país corroboram este facto. Revelam, por exemplo, que o baixo índice da rapariga na escola não só resulta de factores sócio-culturais, como também do facto de a escola não fornecer segurança para a progressão da rapariga. Bagnol (1997) refere que o assédio sexual e a violência sexual começam a surgir como barreiras para o acesso e a permanência da rapariga na escola.

Objectivos do estudo, metodologia e conceitos

O abuso sexual de menores é um fenómeno antigo mas mantido em silêncio, sendo considerado tabu, assunto intocável e que não se podia revelar. Deste modo, a criança tornava-se “involuntariamente” cúmplice, sendo obrigada a sofrer calada terríveis consequências físicas e psicológicas do abuso. Não podia contar com o apoio, fosse dos seus parentes ou outras entidades. Portanto, o abuso sexual socialmente não existia.

O presente estudo tem como objectivo geral caracterizar qualitativa e quantitativamente as formas, manifestações, percepções e atitudes para com o abuso sexual de raparigas nas escolas moçambicanas.

A população objecto de estudo foram alunas de algumas escolas moçambicanas, localizadas na cidade de Maputo e províncias de Maputo, Gaza, Inhambane, Sofala e Nampula, com a idade igual ou superior a 15 anos que constituíram o grupo-alvo primário, enquanto o grupo-alvo secundário incluía actores sociais que de uma forma directa ou indirecta lidam com os casos de abuso sexual, nomeadamente, pais e encarregados de educação, directores e professores de escola, educadores e trabalhadores sociais, líderes comunitários e autoridades policiais, concretamente Chefes do Gabinete de Atendimento à Mulheres e Crianças Vítimas de Violência.

A metodologia utilizada para a sua realização foi a qualitativa e quantitativa. A abordagem quantitativa incluiu o processamento e análise de 1190 questionários utilizando estatísticas descritivas, tabelas e gráficos bem como técnicas de análise multivariada, que permitiram inferir sobre os indicadores e dimensões do abuso sexual.

A abordagem qualitativa consistiu na recolha, descrição e análise de 117 casos e entrevistas estruturadas, do grupo alvo primário e entrevistas do grupo-alvo secundário, portanto, dos actores sociais. O estudo destes casos permitiu a caracterização das formas, manifestações, percepções e atitudes relativas ao abuso sexual.

O problema do abuso sexual tem sido investigado pela South African Law Commission’s Project Commitee, a trabalhar com a revisão da lei sobre os cuidados infantis. Do seu trabalho resultou uma proposta de definição de abuso sexual muito ampla e abrangente1:

  • molestar ou atacar sexualmente uma criança ou permitir que uma criança seja sexualmente molestada ou atacada;
  • encorajar, induzir ou forçar uma criança a ser usada para satisfação sexual de outra pessoa;
  • usar uma criança ou deliberadamente expor uma criança a actividades sexuais ou pornografia; induzir ou permitir que se induza uma criança a exploração sexual comercial ou de alguma forma apoiar ou participar na exploração sexual comercial da criança.

Assim, consideramos que o abuso sexual é a intrusão física de natureza sexual, efectiva ou sob forma de ameaça, incluindo contactos físicos impróprios, com recurso à força ou sob condições de desigualdade ou coerção.

Os abusos sexuais são classificados em dois tipos: abuso sexual do tipo intrafamiliar e o abuso do tipo extra-familiar. O tipo intrafamiliar, também considerado incesto, é o tipo de abuso mais comum. Existe em todas as sociedades e é praticado por todos os extractos sociais e raças sem nenhuma distinção. Este tipo de abuso é definido, na literatura, como qualquer forma de actividade sexual envolvendo crianças e um membro da família (pai, mãe, irmão, irmã, tios, avós, padrastos e outros parentes substitutos).

O tipo de abuso extra-familiar é definido como qualquer forma de actividade sexual entre uma criança e uma pessoa adulta que não faz parte da família. Geralmente, na maioria dos casos, o adulto, pedófilo, é um conhecido da criança, como, por exemplo, vizinho, amigo da família, algumas vezes chega a ser até um desconhecido.

De realçar que o abuso sexual que ocorre dentro da família acarreta danos mais elevados para a vítima, pois não permite a formação de uma estrutura para o ajustamento psicossocial do indivíduo.

Descrição das características, formas e percepção social do fenómeno de abuso sexual nas escolas moçambicanas

Apresentam-se agora dados referentes às entrevistas de 117 informantes abusados. Os dados obtidos referem-se a aspectos relacionados com o perfil social dos abusados, as formas e conteúdo do abuso, as características do abusador, à percepção da vítima e da comunidade sobre o significado do abuso sexual, contrapondo a percepção social com o estabelecido na literatura e na lei. Apresentam-se também os resultados das entrevistas com vários actores sociais que interagem com as vítimas do abuso sexual. Descreve-se as atitudes e percepções dos seguintes actores sociais: agentes de lei e da ordem, os professores, directores de escola, líderes comunitários, educadores sociais.

Os dados recolhidos neste grupo, à semelhança com os dados das entrevistas sobre as abusadas, incluem também a caracterização sócio-económica das vítimas, as formas e traços do abuso, o perfil do abusador, a atitude e as medidas tomadas pelos vários actores face a casos concretos de abuso sexual.

As informações provenientes dos dois segmentos, nomeadamente as vítimas e os actores sociais, são comparadas de forma a que a interpretação e análise do fenómeno abuso sexual seja consistente com a realidade. Outro aspecto discutido com os vários actores sociais relaciona-se com a percepção destes sobre o significado social, cultural, jurídico e moral do conceito de abuso sexual.

Caracterização do perfil das vítimas de abuso

As variáveis em apreço na descrição do perfil da vítima incluem a idade, a escolaridade e a caracterização dos familiares e o local onde a vítima reside. Considera-se que a inserção familiar da criança é um factor crucial na reacção da criança perante uma situação de abuso. Alguns autores referem que crianças oriundas de ambientes familiares instáveis são propensas a serem vítimas de abuso.

Os dados apresentados na Tabela 1 apresentam o perfil da criança e a variação do perfil por província onde decorreu a pesquisa.

 

 

Tabela 1 – Perfil da criança/vítima
Total % Ma Ga In So Na
Idade da abusada 0-15 anos 38 32 9 7 11 8 3
> 15 anos 79 68 9 15 29 1 25
Escolaridade EP1 37 32 17 12 6 2
EP2 53 45 16 5 20 3 9
ES1 24 21 10 14
ES2 3 3 3
Com quem vive Pai e mãe 32 28 5 8 9 5 5
Pai 11 9 2 2 7
Mãe 31 27 6 5 5 3 12
Outros familiares 18 16 5 1 12
Marido 11 9 3 3 2 3
Internato 8 7 8
Outras 5 4 5
Zona Rural 57 49 9 17 25 6
Urbano 60 51 9 5 15 3 28

 

Nota: Ma – Maputo, Ga – Gaza, In – Inhambane, So – Sofala, Na – Nampula

Como se pode observar através da tabela, o perfil mais frequente da criança abusada é o seguinte: idade superior a 15 anos (68%), frequentando o EP2 (Ensino Primário do 2º Grau) (45%), não vivendo com o pai e mãe (72%), sendo sensivelmente a mesma proporção na zona rural e urbana.

Verifica-se, de certa forma, uma relação entre o nível de escolaridade e a frequência do abuso. Grande parte das abusadas encontra-se nos níveis básicos, EP1 e EP2, sendo mais rara a ocorrência do fenómeno no Ensino Secundário do 1º e 2º Graus respectivamente. A vulnerabilidade da rapariga nestes níveis poderá estar associada ao facto da sua personalidade e convicções estarem ainda em processo de desenvolvimento. Se se considerar que o sistema educativo é bastante selectivo, então, é de esperar que as raparigas que transitam para os níveis subsequentes tenham uma forte personalidade e uma projecção mais objectiva sobre o seu futuro, o que lhes permite melhor capacidade de defesa perante situações de abuso.

O grau de parentesco entre a vítima e as pessoas com as quais reside parece ser factor preponderante na propensão ao abuso. Setenta e dois por cento das abusadas provém de famílias separadas, umas não vivem com nenhum dos pais e algumas das abusadas vivem com os maridos. Para as que vivem com os maridos, se se considerar a sua idade, dir-se-ia que continuam numa situação de abuso por serem ainda menores de 18 anos.

As entrevistas revelam, também, que acima de 80% das abusadas são oriundas de famílias vivendo nas zonas suburbanas das cidades (pais deslocados devido à guerra) ou nas zonas rurais, economicamente pobres. O que revela que a vulnerabilidade económica é um factor que condiciona o abuso sexual. Como os dados nas tabelas posteriores indicam, o tipo de medidas para os casos de abuso reduz-se ao pagamento de multas pelo abusador, como forma de suprimir as necessidades básicas da família da abusada. Por exemplo, no distrito da Gorongoza, quase todas as abusadas em cujos casos se tomaram medidas, afirmam que o tipo de atitudes mais frequentes tomadas pela família variam entre o pagamento de uma multa ou a atribuição de uma mesada no caso em que uma das consequências do abuso é a gravidez.

Formas, contornos em que se manifesta o abuso sexual

Um outro aspecto importante nesta pesquisa diz respeito às formas e ao conteúdo do abuso, tendo-se em consideração, também, o local e as medidas tomadas na perspectiva do abusado, bem como a reincidência do mesmo. Considerou-se como aspectos de relevo o abuso sexual envolvendo uma relação sexual, o contacto físico sem relação sexual e a forma verbal. Esta análise permitiu identificar também a percepção do abusado sobre o significado do abuso.

A análise revela que, dos 117 casos de abuso, 64% envolvem a relação sexual e, no geral, não se tomam medidas contra o mesmo (75%) e não é frequente a reincidência (88%) (ver a Tabela 2). Os dados também ilustram que as formas verbais não são consideradas abuso, somente o contacto físico.

Este facto parece sugerir que as formas verbais do abuso são aceites tacitamente, o que se pode considerar o princípio de transição para outras formas de abuso que envolvam o contacto físico e a relação sexual. Possivelmente, a consciencialização social sobre a necessidade de reconhecer as formas verbais do abuso é um dos primeiros passos para o combate ao abuso sexual.

 

 

Tabela 2 – Formas, contornos em que se manifesta o abuso sexual
Total % Ma Ga In So Na
Envolvendo relação sexual 75 64 16 14 22 9 14
Não envolvendo relação sexual Verbal 0
Contacto físico 42 36 2 8 18 14
Local Escola 11 10 1 2 7 1
Internato 0
Mercado 1 1 1
Local de diversão 9 9 2 6 1
Casa do abusador 29 28 5 7 2 8 7
Casa da abusada 4 4 1 2 1
Rua 4 4
4
Outro 47 45 3 11 14 1 18
Medidas tomadas Sim 28 25 8 3 9 7 1
Não 83 75 9 19 26 2 27
Reincidência do abuso Sim 6 12 2 2 2
Não 43 88 14 22 7

 

Nota: Ma – Maputo, Ga – Gaza, In – Inhambane, So – Sofala, Na – Nampula

Comparando os resultados por província, verifica-se que os abusos envolvendo a relação sexual são mais frequentes na província de Inhambane e menos frequentes na de Sofala. O local do abuso é, no geral, a casa do abusador, com 28%, o que nos permite inferir que o abusador atrai, provavelmente, a vítima para a sua casa.

No geral, depois do abuso não são tomadas medidas, o que de certa maneira sugere várias interpretações: a abusada não informa os pais, nem as autoridades, com receio de ser estigmatizada no seio familiar e na sua comunidade, pois estes dois actores sociais, embora considerem o abuso um desvio às normas sociais, a vítima tem grande probabilidade de ser rejeitada. Por exemplo, uma menina da EPC 12 de Outubro, em Sofala, que foi violada pelo vizinho, disse que não havia informado aos pais porque estava com medo da sua reacção, tendo afirmado “não podem dizer aos meus pais porque senão vão bater-me”.

Em algumas situações, mesmo quando a vítima informa a sua família da ocorrência de abuso, esta prefere manter o caso dentro do sigilo. Por exemplo, na província de Sofala a menina A foi violada pelo empregado e os pais depois de tomarem conhecimento solicitaram a intervenção da polícia, contudo, exigiram que o caso não fosse encaminhado ao tribunal.

Este receio da rapariga e da família de expor o caso é reflexo de uma educação na perspectiva de que a rapariga existe para servir o homem, ela só é aceite na sociedade, caso seja casada ou viva maritalmente. Por conseguinte, a exposição social do abuso pode bloquear as suas aspirações.

Características, perfil social do abusador

Um conhecimento profundo sobre os traços característicos do abusador poderá permitir desencadear acções de educação e consciencialização das raparigas sobre os traços típicos do abusador, de forma a que estas possam se prevenir. As características do abusador, neste estudo, incluem a faixa etária, a profissão, o estado psíquico no momento do abuso e o nível de relacionamento entre a vítima e o mesmo.

Os dados sugerem que o abusador tem uma idade superior a 15 anos, é professor ou estudante (37%) e que no momento do abuso 80% encontra-se no estado normal.

Apesar de se constatarem casos de abuso cujo abusador é familiar da vítima, a maioria destes não fazem parte da família mas são por ela conhecidos. O facto de o abusador ser na maioria das vezes conhecido da vítima, leva a pensar que o abuso é premeditado, o abusador provavelmente alicia a vítima, criando um clima de confiança. Os exemplos abaixo ilustram este facto.

Caso 1 – Província de Sofala

O abusador encontra uma menina na rua, vinda do mercado, inicia uma conversa, compra-lhe bananas e doces e convida-a a apanhar o chapa. Dentro do chapa a menina apercebe-se que está sendo desviada do caminho para a sua casa e começa a chorar e uma das passageiras perguntou o que se estava a passar e a rapariga diz que foi enganada pelo homem que estava ao seu lado e este, por sua vez, responde dizendo que ela é filha do irmão. Como o abusador parecesse um homem do bem a sua resposta não despertou suspeitas.

Caso 2 – Província de Sofala

Neste caso, o abusador é um professor, que convida a aluna a acompanhá-lo a sua casa para a mostrar as notas, porque ainda não tinha terminado de corrigir as provas. Chegado a casa deste, ele pediu a rapariga que entrasse; depois de ela entrar fechou a porta e abusou dela sexualmente. Depois da ocorrência, pediu-lhe que não informasse as pessoas porque ele não a abandonaria e que na devida altura apresentar-se-ia à família, o que não veio a acontecer.

A tabela seguinte sintetiza o perfil do agressor:

 

 

Tabela 3 – Características do abusador
Total % Ma Ga In So Na
Idade 0-15 anos 1 3
1
15-20 anos 19 54
7 9 3
21-30 anos 13 37
4 5 4
> 30 anos 2 6 1 1
Profissão Professor 18 19 1 5 5 1 6
Estudante 18 19 5 4 4 2 3
Desempregado 4 4 3 1
Empregado 10 10 3 2 3 2
Outros 47 48 11 19 17
Estado psíquico no momento do abuso Bêbado 15 13 3 1 9 2
Drogado 0
Normal 93 80 13 21 26 7 26
Doente mental 2 2
1 1
Perverso 6 5 1 4 1
Conhecido da vítima Sim; família 11 9 1 2 5 1 2
Sim; não é família 87 75 14 16 29 7 21
Não 18 16 2 4 6 1 5

 

Nota: Ma – Maputo, Ga – Gaza, In – Inhambane, So – Sofala, Na – Nampula

Percepção social sobre o conceito de abuso sexual

Na análise da percepção social sobre o abuso, teve-se em conta a percepção da vítima, dos pais e da escola. Numa primeira fase foram considerados estes três actores por parecerem os primeiros níveis de reacção em casos de abuso. Os dados sugerem que na perspectiva do abusado, o abuso, por um lado, é um problema não grave e com solução na família e, por outro, não constitui problema. Esta percepção é de certa maneira compatível com a situação de não tomada de medidas e na Tabela 4 pode-se constatar que este problema não é visto como um acto criminal.

Assim, o abuso sexual não é encarado no contexto de violação dos direitos humanos da mulher, mas sim da ruptura destas expectativas, relacionadas com o papel social atribuído à mulher nas relações de género, onde na educação tradicional está prevista a sua transacção (lobolo) como objecto. Daí que, para a maior parte das famílias, nos casos em que ocorre a violação, estas obriguem o abusador ao pagamento de uma multa, como forma de compensação.

O facto de as abusadas não considerarem o abuso como crime poderá estar aliado a uma educação tradicional que condiciona a mulher à subserviência perante o homem. Consequentemente, ela poderá estar a acreditar que o acontecido, apesar de ser um desvio das regras sociais pré-estabelecidas, não tem a dimensão de problema, pois é destino dela servir o homem.

 

 

Tabela 4 – Percepção social sobre o conceito de abuso
Total % Ma Ga In So Na
Percepção da abusada Problema não grave com solução na família 44 38 8 3 12 4 17
Problema grave que envolve autoridades 13 11 5 2 3 3
Problema grave com solução na família 0
Problema grave com solução na escola 4 3 1 1 2
Problema grave que não deve envolver a família nem a autoridade 12 10 4 8
Não é problema 44 38 1 21 9 2 11
Percepção dos pais (na óptica da abusada) Problema não grave com solução na família 44 59 6 3 13 5 17
Problema grave que envolve autoridades 14 19 5 3 4 2
Não é problema 16 22 6 8 2
Papel da escola Passivo 6 5 1 3 2
Activo/reactivo 11 9 4 5 2
A escola não teve conhecimento 102 86 14 21 37 4 26

 

Nota: Ma – Maputo, Ga – Gaza, In – Inhambane, So – Sofala, Na – Nampula

Relativamente aos pais, a percepção destes coincide com a das abusadas2, como se pode observar na tabela acima: 59% dos pais considera o abuso como um problema não grave, com solução na família. O que leva a inferir que a percepção das raparigas advém de uma socialização na família, em que de facto o abuso não é crime. Os poucos casos que chegam às autoridades ou às escola são os que não se consegue um acordo entre a família da vítima e o abusado sobre os termos da compensação.

Caso 3 – Província de Maputo

Uma rapariga de 15 anos namorava com um enfermeiro, e este uma vez, depois de a embebedar, levou-a à sala de aulas de uma determinada escola, onde a violou. A violação teve consequências físicas, ela teve hemorragias. Durante a violação eles foram vistos e o caso chegou até aos pais. Estes encaminharam o caso à polícia, tendo sido resolvido apenas com o pagamento da multa e a responsabilização do abusador pelo tratamento hospitalar.

De um modo geral, a escola não tem conhecimento sobre os casos de abuso (86%). Nos poucos casos que a escola teve conhecimento, o abuso envolvia um aluno da escola. Os casos de abuso que envolvam professores são, na sua maioria, resolvidos por estes directamente com os familiares da vítima, quando há gravidez. O professor negoceia com os pais, prometendo a estes pagamento de multa ou casamento com a vítima, de modo que estes não levem o caso a outras instâncias.

Caso 4 – Província Sofala

Uma rapariga de 16 anos que vivia com uma das professoras nos arredores da escola foi abusada sexualmente por um dos professores da escola e a professora com quem vivia depois de ter conhecimento informou os pais da rapariga. Estes exigiram uma multa de 8.000.000,00 MT (antiga família) ao professor e o caso nem chegou à polícia. A escola também teve conhecimento mas nenhuma acção foi movida contra o professor.

O papel passivo da escola nem sempre significa o não conhecimento de casos de abuso envolvendo professores, mas sim, uma atitude cúmplice entre os professores. E estes casos ocorrem na sua maioria em escolas onde o director é do sexo masculino. Embora existam, em algumas escolas, professoras com o papel de educadoras sociais, o desempenho destas é praticamente nulo nos aspectos de advocacia da problemática do abuso sexual no seio da escola, isto porque elas não se sentem protegidas pela direcção da escola quando denunciam casos de abuso e esses casos não chegam a ser resolvidos.

Efeitos do abuso sobre a abusada

Na análise dos efeitos sobre os abusados teve-se em consideração as possíveis consequências do abuso para as vítimas. Deste modo, incluíram-se os efeitos psicológicos e físicos. Os dados da Tabela 5 ilustram que grande parte dos abusados (46%) consideram-se não afectados. Este facto corrobora com a informação constante da Tabela 2, de que o abuso não é problema. Consequentemente, não sendo problema, não afecta a vítima. Isto demonstra a falta de consciência sobre a real dimensão do problema. Das vítimas que têm consciência do seu estado psicológico, 42% referem que sentem-se culpadas, deprimidas, com complexo de inferioridade. Quanto aos afectados fisicamente, estes referiram que tiveram problemas relacionados com inflamação nos órgãos genitais, dores abdominais, DTS, e gravidez indesejada.

 

 

Tabela 5 – Efeitos do abuso sobre a abusada
Total % Ma Ga In So Na
Afectados psicologicamente 52 42 17 4 21 9 1
Afectados fisicamente 15 12 8 2 2 3
Não afectados 57 46 16 15 26

 

Nota: Ma – Maputo, Ga – Gaza, In – Inhambane, So – Sofala, Na – Nampula

Atitudes, percepções e acções dos diferentes actores sociais relativamente ao abuso sexual

A presente amostra inclui 61 professores, 64 pais e encarregados de educação, 20 directores de escola, 27 educadores sociais, 24 polícias e 24 autoridades.

As áreas sobre as quais as entrevistas aos actores sociais incidiram incluem as formas de abuso, as características do abusador, a percepção dos entrevistados sobre as formas e dimensões do abuso, e as acções levadas a cabo por estes face à situação de abuso sexual.

Os resultados das entrevistas dos actores sociais indicam que grande parte de abuso envolve relação sexual (65%), em geral, o professor é o abusador, 25%, o estado psíquico do abusador na altura do abuso é normal, 80%, o abusador, na maior parte dos casos, é conhecido da vítima mas não é membro da sua família, 66%.

A comparação das respostas dos diferentes actores com as das abusadas permite afirmar que as opiniões das abusadas são consistentes com as dos outros actores sociais.

É de destacar o facto dos actores sociais, com a excepção de educadoras sociais e alguns chefes do Gabinete de Atendimento à Mulher e Criança vítimas de violência, não reconhecerem a forma verbal de abuso como sendo grave. Este problema poderá estar relacionado com alguns aspectos sócio-culturais. Considerando que os actores sociais reflectem o contexto sócio-cultural da sociedade onde vivem e que de certa maneira o lideram, conclui-se que a atitude das abusadas de não reconhecerem o abuso na sua forma verbal é consequência do seu meio de socialização. Embora a forma de abuso verbal seja considerado crime pela legislação vigente, esta não está sendo absorvida como tal pelos diferentes actores sociais, possivelmente pelo facto de estar em conflito com o quadro sócio-cultural que regula as diferentes formas de interacção entre os indivíduos. Por exemplo, entre indivíduos de sexos opostos são permissíveis algumas formas verbais que juridicamente constituem crime, enquanto que socialmente, dependendo do nível de aproximação entre os interlocutores, poderão passar despercebidas, ignoradas ou como simples ofensas.

As características e o perfil social do abusador na perspectiva dos diferentes actores sociais, incluindo dados relativos à idade, profissão, estado psíquico no momento do abuso, existência ou não de parentesco com a vítima, corroboram os apresentados pelas vítimas: de um modo geral, a idade do abusador varia entre os 21 e 30 anos, 45%, na sua maioria são professores, no momento do abuso estão no seu estado normal, 80% e 66% são conhecidos das vítimas mas não familiares.

O facto de o abusador estar no estado normal ilustra a carácter premeditado do abuso, e deste estar consciente da tolerância social e judicial ao abuso. Embora 45% dos actores sociais considerem que o abuso sexual é crime e, consequentemente, este deve envolver autoridades, na prática o processo de resolução destes casos envolve um tipo de medidas que são pouco eficazes na dissuasão. Como foi referido atrás, as medidas mais frequentes para este crime incluem negociações entre a família da abusada e o abusador, e as autoridades são envolvidas só em casos de existência de dificuldades na negociação, por exemplo, quando o acusado não se disponibiliza a pagar a multa.

Alguns exemplos de medidas tomadas pelos diferentes actores sociais:

a) Autoridades locais

Convoca-se o abusador, fala-se com ele e com a família da abusada, até chegarem a um consenso. Se o homem for solteiro, obriga-se este a casar-se com a rapariga. Se o homem for casado, este deve pagar a multa estipulada pelos familiares directos da rapariga vítima.

b) Professores

Normalmente, convocam-se os pais da rapariga para junto deles saber-se se têm conhecimento do estado da rapariga, nos casos em que a mesma se encontre grávida. Quando o abusador é estudante da escola, os pais às vezes preferem que ambos (a rapariga e o rapaz) sejam retirados da escola, mas as normas existentes aconselhem que se passe a rapariga para o curso nocturno e é o que os professores têm recomendado aos pais.

c) Encarregados de educação

Tentam resolver o problema com a vítima, depois contactam o abusador e nos casos em que o abusador é colega da escola, contactam a escola para junto da escola resolverem o caso. Algumas vezes as raparigas passam para o curso nocturno e outras deixam de estudar por não conseguirem conciliar a vida de estudante com o seu estado de gravidez ou de mãe.

d) Polícia

Prendem o acusado de abusador, abre-se um processo e manda-se à Procuradoria, mandam pagar uma multa e o tratamento da vítima. Nos casos em que o abusador é familiar da vítima retira-se o acusado de perto da vítima ou retira-se a vítima para um lugar distante.

O tipo de medidas tomadas reflecte uma certa ambivalência entre a norma costumeira e o quadro jurídico-legal oficial. O tipo de medidas parece sugerir que o carácter jurídico-legal deste tipo de crime não entra na equação para resolução deste tipo de casos por grande parte dos actores sociais.

Percepção do conceito de abuso sexual pelos actores sociais

A maioria dos actores sociais (acima de 85%) considera como sendo um problema grave as formas do abuso sexual que envolvem relação sexual ou o contacto físico. Quanto às formas de resolução dos problemas que advêm do abuso, os actores sociais não são unânimes; por exemplo, para o abuso envolvendo relação sexual, 45% acha que a resolução deve envolver as autoridades do sistema de justiça, para 9% e 18%, a resolução deste tipo de casos deve-se circunscrever à família e à escola, respectivamente.

Embora a maioria dos actores sociais considerem que o abuso sexual é crime, a prática de resolução dos casos contradiz esta posição, pois, grande parte dos casos são resolvidos através de negociações entre o abusado e a família, como atrás nos referimos. O que mais uma vez ilustra uma percepção de que o abuso sexual não é encarado no contexto de violação dos direitos da criança, mas sim, na ruptura das expectativas relativas ao papel social que lhe é atribuída nas relações de género, onde na educação tradicional está prevista a sua transacção (lobolo) como objecto.

Pode-se inferir que estes actores sociais vivem uma ambivalência constituída por dois quadros; o primeiro, em que o abuso sexual é crime, estando portanto sujeito às normas jurídico-legais e o segundo, em que o abuso sexual é um desvio das regras socialmente/ tradicionalmente estabelecidas. Este desvio não tem a dimensão da violação do quadro jurídico-legal. Consequentemente, uma simples multa repõe as normas socialmente estabelecidas.

A advocacia do abuso sexual como crime deve, em primeira instância, envolver os actores sociais que intervêm directamente no processo de socialização das crianças, nomeadamente, professores e os educadores sociais, pois estes poderão ter um papel preponderante na prevenção do abuso sexual, actuando na educação da rapariga, podendo esta ser um vector de transmissão da mensagem no seio familiar e na comunidade, de um modo geral, o que pode levar a uma paulatina mudança de atitudes.

 

Notas:

  1. Capítulo 1 da versão preliminar da Children’s Bill, publicada na Government Gazette n.º 5346, de 13 de Agosto de 2003.
  2. A percepção dos pais inferiu-se a partir da entrevista com as abusadas. Pergunta dirigida à abusada referia-se a reacção ou acções dos pais ou encarregados de educação face à situação do abuso.

Referência:

Bagnol, Brigitte (1997). Diagnóstico do Abuso Sexual e Exploração Comercial Sexual de Crianças em Maputo e Nampula. Embaixada do Reino dos Países Baixos, Maputo, Moçambique.

 

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