Persistência da desigualdade: quando é que as mulheres poderão decidir por si mesmas?
Opinião
Misete Getessemane Cossa
Em Outubro de 2007, durante aproximadamente quatro semanas, participei numa pesquisa na província da Zambézia, nomeadamente na cidade de Quelimane e nos distritos de Morrumbala e Mocuba1. Durante a minha permanência nessa província vários aspectos me chamaram à atenção, como por exemplo, o rosto das mulheres e crianças, que constituíram as imagens que mais ressaltavam na paisagem da pobreza, dilacerados pela incerteza da vida e pela pequenez que lhes é atribuída. Mas também a poligamia, a banalidade da violência doméstica, o nível elevado de doenças de transmissão sexual e do HIV/SIDA por parte das mulheres e o seu fraco poder de decisão na vida conjugal. São estas questões sobre as quais me pretendo debruçar, sem outra pretensão que a de partilhar dilemas e lançar desafios.
Nas vilas visitadas o número de pessoas com rendimentos regulares é bastante irrisório, concentrando-se, muitas das vezes, nos professores, num e outro enfermeiro, e nos vendedores de mercado. Este grupo de indivíduos é o que mais atrai as raparigas que, com um nível de escolarização primário e sem grandes hipóteses de continuidade dos estudos, mas também por “destino”, vêem no casamento a finalidade última das suas vidas. Estas raparigas, vindas de um ensino não profissionalizante, não olham a agricultura de subsistência como uma actividade de rendimento. Muitas delas vêem o mercado informal como uma actividade mais honrosa e de prestígio. E é nesse circuito comercial que o dinheiro mais circula, e mais alicia.
É neste mesmo universo que o elevado índice de doenças de transmissão sexual é justificado como sendo da responsabilidade das mulheres, prova das suas transgressões. Dizem que as raparigas têm estado a ganhar outros hábitos fora de casa e que os novos vestuários, como as calças apertadas, as saias curtas, etc., é que as leva a um descontrole. Eles, os homens, foram unânimes em afirmar que são as grandes vítimas das mulheres.
Se ao nível das vilas o cenário se apresenta nebuloso, num meio mais rural as justificações ganham outros contornos, não fugindo porém da responsabilização da mulher. Das conversas que tive informalmente, e no âmbito da pesquisa, pude observar que a pandemia do século é recusada no quadro em que é normalmente descrito. Para eles as constantes mortes atribuídas ao HIV são, por exemplo, e em termos metafóricos, associadas ao Mbepo – ventania em língua sena. O Mbepo é um vento destruidor como os furacões. A doença é ligada ao Mbepo porque, segundo eles, as mulheres, no caso raparigas, praticam o aborto de forma desmedida, levando-as a disseminarem doenças mortais no seio dos homens e das mulheres. Esta visão de impureza vem na linha do que Douglas (1992) diz ser aquilo que “não se enquadra no sistema de classificação e⁄ou ordenação do mundo de uma cultura específica, ou naquilo que está no limite, ou na margem desse sistema, comummente visto como ameaçador e, portanto, impuro, sujo”.
Em resumo, apesar de alguma familiaridade com o tema das relações de género no país, fiquei chocada ao constatar a persistente culpabilização da mulher perante doenças/desgraças que afligem a sociedade, mesmo se os argumentos e as justificações diferem ligeiramente de local para local. Assim, a par de um papel secundário, também simbolicamente os aspectos negativos são sempre relacionados com as mulheres.
Esta questão faz-me lembrar a S. Ortner (2006) quando diz que as mulheres são associadas à natureza onde são tidas como perigosas e imprevisíveis, algo que não pode ser controlado. Para corroborar tal asserção a autora diz-nos que isto se deve, na visão dos homens, ao facto da mulher tirar leite, menstruar, o que é considerado como a prova inequívoca da sua “animalidade”. Pelo contrário, o homem é associado à cultura, a algo sujeito ao controlo, à racionalidade, ao previsível. Enquanto a mulher é vista do lado da natureza, da irracionalidade, da imprevisibilidade.
Esta ausência de responsabilização dos homens perante as doenças de transmissão sexual que afectam as famílias, como a pandemia da HIV⁄SIDA, mostra ainda a prevalência do poder patriarcal. Nos tempos que correm, em que a defesa de uma sociedade igualitária faz parte do discurso oficial e proclamado publicamente, estes aspectos devem ser tomados a sério pois não contribuem para o desenvolvimento da mesma.
Outra questão, relacionada igualmente com esse papel secundário e subordinado das mulheres, é o seu fraco poder de negociação ao nível conjugal. Notei que as mulheres não podem decidir quantos filhos pretendem ter, quando é que os devem ter, quando é que desejam ter ou não relações sexuais com o seu parceiro. Ou seja, em maior ou menor grau, o que depende das capacidades específicas de negociação de cada uma, é-lhes retirado o controlo sobre o seu próprio corpo. Uma das explicações para isto é que historicamente a mulher tem sido vista como objecto, e propriedade do homem (pai, marido, patrão…), e os seus direitos como pessoa e cidadã colocados em segundo plano. Sendo vista como objecto, o desejo da mulher não é respeitado e isto fica evidente, por exemplo, quando o marido se recusa a usar o preservativo, a fazer teste do HIV, ou quando proíbe a esposa de fazer o planeamento familiar.
O corpo feminino é usado para justificar as desigualdades sociais, onde a feminilidade é associada ao corpo, e onde o seu campo de acção acaba por ser a reprodução; a masculinidade é associada à mente, tendo os homens como campo de acção, o conhecimento e o saber. Nesta ordem de ideias, na sua obra “A Dominação Masculina”, Bourdieu (1999) faz uma análise sobre o controle do corpo e de como este controle se manifesta nas desigualdades de poder e de género, referindo que a dominação dos homens sobre as mulheres se efectiva porque as mulheres são educadas a interpretarem o mundo de acordo com os esquemas e as categorias incorporadas no pensamento masculino. Refere ainda que a inferioridade das mulheres está presente na nossa forma de pensar e de agir. O autor aponta também que a dominação masculina exercida sobre as mulheres é apoiada pela violência simbólica que é invisível para as suas próprias vítimas, o que implica que os dominados não se apercebem dessa relação de dominação, na medida que a pensam como algo natural e legítimo.
Não podemos esquecer que estas mulheres, para além de reflectirem algumas das facetas que caracterizam as nossas patriarcais sociedades, estão a servir de modelo às mulheres jovens. A manter-se este estado de coisas, muitas delas, previsivelmente, vão crescer com um desconhecimento total dos seus direitos humanos. Elas não saberão que pelas leis do seu país toda a pessoa tem o direito de decidir quantos filhos quer ter, quando os terá, e com que intervalo de tempo os deseja ter. Nunca as educarão para usufruir do direito de controlar o seu comportamento sexual, segundo a sua própria forma de ser e de pensar, sem medo ou vergonha.
Esta experiência, que foi de descoberta mas também de reforço das minhas posições em defesa dos direitos humanos das mulheres, leva-me a defender a necessidade de um maior empenhamento na luta pela igualdade. Urge definir políticas correctas e exequíveis no país real e profundo.
Nota:
- Pesquisa sobre formas de organização familiar e violência doméstica, dirigida pela WLSA Moçambique, e que teve como grupo alvo professores primários, camponeses e vendedores do mercado.
Referências:
BOURDIEU, Pierre (1999). A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand.
DOUGLAS, Mary (1992). Pureza e perigo. Lisboa: Edições 70.
ORTNER, S. (2006). “Entonces, ¿Es la mujer al hombre lo que la naturaleza a la cultura?“, Revista de Antropología Iberoamerica (1) 1. pp. 21-21
* * *