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Os movimentos sociais e a violência contra a mulher em Moçambique: marcos de um percurso

Ana Maria Loforte

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 27, Junho de 2009

 
Nas últimas décadas em Moçambique têm sido crescentes os movimentos sociais que integram acções colectivas desenvolvidas por organizações não governamentais. Estes movimentos visam a mobilização de recursos materiais e simbólicos para a definição de estratégias transformadoras que tenham como objectivo o fortalecimento do poder das mulheres. Criadores de novos marcos de interpretação, os seus enfoques não se explicam só como respostas colectivas a tensões manifestas e desigualdades estruturais, senão que uma boa parte do sentido da sua acção se dirige a mostrar, a explicar e a tornar explícitos determinados conflitos para a opinião pública.

Este artigo, baseado na análise das intervenções de algumas ONGs, particularmente da WLSA Moçambique, pretende identificar o seu papel no processo de deslegitimação da violência contra as mulheres. As recentes campanhas e as respostas sociais, políticas e legais são, na realidade, o produto final, público e visível de um largo processo de redefinição da violência contra a mulher que deixou de qualificar-se como drama pessoal para conceptualizar-se como problema social.

Partindo de questionamento dos aspectos estruturais da sua subordinação, as denúncias para acabar com a violência procuram mostrar as manifestações mais brutais da mesma, aquelas que no plano simbólico representam o aspecto mais evidente de uma ordem de género profundamente opressiva e neste sentido inaceitável.

Os movimentos sociais e a acção colectiva

Como ponto de partida para esta análise tomamos como definição a proposta de que estes movimentos são uma forma de acção colectiva no sentido em que desenvolvem actividades comuns com o objectivo de atingir fins partilhados e que apelam à solidariedade para promover mudanças sociais. Mantemos a ideia segundo a qual as características sociais que podem levar a esta denominação (acção colectiva) se centram em:

  • Acções que envolvem simultaneamente um grupo de indivíduos ou grupos
  • Acções que implicam um campo de relações sociais
  • Atribuição de sentido às suas acções por parte das pessoas envolvidas (Melucci, 1987)

Partimos do pressuposto de que as ONGs definem como injusta e objecto de mudança social, uma situação que é geralmente legitimada pela tradição cultural e pelo costume. Assim, centramo-nos na identificação das formas de participação de actores colectivos no que tange à sua intervenção social. Buscamos inspiração em Goffman (1987: 149), que refere: “uma organização formal pode ser definida como um sistema de actividades intencionalmente coordenadas e destinadas a provocar alguns objectivos específicos e globais. O produto esperado pode ser: artefactos materiais, serviços, decisões e informações”.

Ao analisar esta definição vários elementos nos saltam à vista e permitem inferir sobre: (i) as práticas discursivas presentes nas organizações e que configuram os objectivos específicos e globais; (ii) as não discursivas que se materializam nas actividades intencionalmente coordenadas; (iii) um produto que proporciona o acesso a informação.

Práticas discursivas no processo de reconceptualização da violência

O fenómeno da violência excede os acontecimentos violentos e conduz a uma percepção da violência contra as mulheres como fenómeno social passível de uma análise discursiva. Assim, importa analisar os quadros teóricos subjacentes e quem intervêm na denúncia do problema.

Nos trabalhos publicados pela WLSA como resultado das pesquisas sobre Violência Contra as Mulheres, estão presentes marcos de referência, conceitos que conferem novos significados a velhos problemas, como os do exercício da violência doméstica. O conceito de género ganha proeminência e itinerários diversos, pois constitui a categoria de análise crucial para explicar as desigualdades estruturais. Na incorporação deste conceito, privilegia-se a dimensão social e simbólica das diferenças em detrimento de um modelo explicativo que coloca a centralidade nas diferenças biológicas entre homens e mulheres.

Mas discutir o género trouxe a necessidade de revisão e debate de outros conceitos que lhe são inerentes como o do poder e suas variáveis. Na situação da pesquisa, as relações de género são relações de poder que se exprimem através de mecanismos de ordem material e simbólica. Seguindo os argumentos de Connell (1997) refere-se que a violência é estruturada pelas relações de género por causa da desigualdade. Mais, trata-se de uma estrutura de desigualdade que envolve uma falta de recursos sociais continuada, que gera e organiza a violência (Osório e Temba, 2001: 44). Na explicação do fenómeno e suas causas sociais, a WLSA identifica ainda o papel importante que cabe à coacção num sistema patriarcal, tanto na forma de mera ameaça como na possibilidade latente, constituindo de qualquer modo uma intimidação constante.

A ideologia patriarcal está tão firmemente interiorizada e as suas formas de socialização são tão perfeitas e subtis, que a coacção estrutural que se desenvolve conduz a que “o medo dos que são susceptíveis de serem vítimas de violência, só por si, actua como um poderoso mecanismo de controlo. Basta ver como é frequente as mulheres auto-controlarem os seus comportamentos e até as suas deslocações, para evitarem ficar “em situação de risco” (Arthur e Mejia, 2005).

Trazem assim ao de cima, o facto de a violência ser uma estratégia de dominação masculina por meio do temor que infunde às mulheres. Todavia, é a sua naturalização que faz com que não necessite de se justificar constantemente. Mas, numa perspectiva foucaultiana, sublinham que não há uma fixação da oposição entre dominadores e dominadas e que as resistências se configuram como produtoras do mesmo mecanismo: as mulheres não são vítimas passivas da violência. Assim, em Reconstruindo Vidas: estratégias de sobrevivência das mulheres vítimas de violência “dá-se destaque às formas de resistência e à multiplicidade de estratégias empregues para evitar a violência, para preservar a dignidade, para proteger os filhos, enfim, para recomeçar as vidas” (Arthur e Mejia, 2006).

Nesta obra, que pretende retratar a experiência social de algumas mulheres, fica patente a luta desenvolvida para reduzir as formas de exploração e opressão que vivem no quotidiano, o almejar de um mundo onde há relacionamentos menos desiguais, nos quais o feminino adquire, em condições específicas e dentro de estruturas e cosmovisões particulares, um espaço próprio e destacado.

Na verdade, como afirma Ponce (1995), “os processos socializadores proporcionam às mulheres elementos versáteis que permitem a manipulação da realidade de acordo com as suas próprias condições de existência, fornecendo-lhes as ferramentas para maximizar as suas capacidades de sobrevivência e para transitar dentro do marco social, da subordinação à igualdade”.

Por outro lado, os discursos presentes nos relatórios da pesquisa subvertem o código cultural ancestral e dominante que explica de forma recorrente a violência contra a mulher como produto de uma enfermidade do perpetrador ao afirmarem que “o exercício da violência contra a mulher não é do foro da patologia do indivíduo, trata-se sim de um “efeito da estrutura” como designa Echène (2003). Esta percepção é bem explicada por um agressor que afirma, “Eu sou muito normal, não fiz nada de mal” (Arthur e Mejia, 2005).

Mas conferir visibilidade ao fenómeno da violência contra as mulheres foi exigindo formas de articulação e coordenação.

As actividades intencionalmente coordenadas

Num primeiro momento foi importante se definir a situação da violência como problemática e ilegítima, num segundo momento é marcante denunciar as causas da situação sejam elas culturais, económicas ou políticas. Mas tem sido crucial propor soluções alternativas: não basta anunciar que uma situação é injusta senão que torna-se imperioso difundir a ideia de que é possível mudar a situação, o que passa pelo respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos. Assim, a necessidade da observância e valorização dos direitos humanos das mulheres tem sido uma componente fundamental e indispensável no apelo para erradicar práticas discriminatórias.

Com efeito, o “modelo androcrático, orientando o direito dos Direitos Humanos, tidos como neutrais, universais e eficazes, tem como resultado a impunidade na violação dos direitos das mulheres e a legitimação da sua subalternidade” (Andrade et al., 2000: 40).

O engajamento das ONGs levou à formação de espaços de discussão, interacção e interlocução que integram actores sociais que se identificam com esta causa. Alguns deles desenvolveram-se em torno da necessária articulação entre a academia, a pesquisa e a política, como possibilidade de empoderamento dos grupos cujas vozes e acções, por vezes, são silenciadas. Estas têm sido instrumentais em trazer a questão da violência contra as mulheres para a agenda do dia, através de actividades de advocacia e lobby.

As suas intervenções encontraram o respaldo ideal no Programa Quinquenal do Governo que refere à necessidade de se protegerem os direitos humanos das mulheres com vista à elevação da sua consciência bem como da comunidade sobre os direitos que a assistem, no concernente ao direito à não-violência1.

Em 1998, agruparam-se em torno da campanha Todos Contra a Violência (TCV), alguns actores até então distanciados, mas que se coligaram para advogar e desenvolver medidas estratégicas a serem empreendidas. Esta campanha de Todos Contra a Violência compreendeu quatro vertentes:

  • Apoio directo às vítimas da violência doméstica, mulheres e homens
  • Educação pública e aconselhamento a vários grupos sociais
  • Acções de formação e educação sobre direitos humanos e desigualdades de género
  • Pesquisas sobre a temática referente à violência doméstica contra a mulher

Mais tarde, um momento marcante deste processo foi a elaboração do Anteprojecto de Lei relativo à Violência Contra as Mulheres. Esta proposta, profundamente inspirada na Constituição da República e nos instrumentos internacionais ratificados por Moçambique, designadamente o CEDAW, subscreve a ideia de que só é possível combater a violência doméstica se se reconhecer o seu carácter estrutural, decorrente das desigualdades de género na família.

Várias actividades concernentes ao controlo e prevenção da violência foram realizadas paralelamente à continuação das campanhas de informação, sensibilização e educação da população em colaboração com diversos sectores governamentais. Nomeadamente, foi lançada uma Campanha Nacional contra o Tráfico e Abuso Sexual de Menores onde se pôde notar a liderança da Sociedade Civil, foi melhorado a atendimento às vítimas de violência doméstica e facilitou-se o seu encaminhamento para a rede de serviços existentes tais como a assistência legal, médica, e psicológica, envolvendo diferentes ONGs e ministérios de tutela.

Em 2007 foi criado o Movimento pela Aprovação da Proposta de Lei Contra a Violência Doméstica, cujo manifesto apela, entre outros aspectos:

  • Que a proposta de Lei Contra a Violência Doméstica seja aprovada
  • Que a violência doméstica, em particular a violência contra a Mulher, faça parte da agenda dos governantes, legisladores e aplicadores da lei em Moçambique.

Impulsionando a acção colectiva, as ONGs coligadas alertam para a gravidade da situação, contribuindo para a sua “dramatização”, termo que se utiliza aqui no sentido que lhe dá Goffman (1974), o de despertar da consciência de um conjunto de pessoas para a partilha de uma mesma opinião sobre uma questão controversa.

Pugnar pelo reconhecimento dos direitos das mulheres torna-se um imperativo. Insta-se assim o governo a instituir mecanismos eficazes de prestação de contas sobre a igualdade de género e a cumprir, entre outras, as recomendações do CEDAW, no sentido de adoptar medidas para combater a discriminação da mulher a todos níveis da sociedade e modificar leis ou práticas culturais e sociais que constituam obstáculos a esta igualdade (artigo 2º. do CEDAW).

Deste modo, várias ONGs que trabalham na área dos direitos humanos das mulheres elaboraram o Relatório Sombra, que emerge como uma visão alternativa ao primeiro informe governamental sobre o cumprimento do CEDAW2. Desempenharam, deste modo, um papel de “vigia” das acções do governo ao sublinharem os progressos e constrangimentos no tocante às acções tendentes à igualdade de género e erradicação de práticas discriminatórias. Formularam um conjunto de recomendações bastante persuasivas e úteis para a intervenção no sentido de remover todas as leis, normas e práticas institucionais que atentam contra os direitos das mulheres.

Particularmente em relação à violência defende-se nas recomendações que “é importante aprovar a proposta de lei de forma a colmatar lacunas legais no combate a um dos problemas que mais prejudica o exercício dos direitos humanos pelas mulheres.”

Por outro lado, e a nível mais geral, defende-se que “o governo deve garantir que na revisão do Código Penal e Lei das Sucessões se garanta o princípio da não discriminação contra as mulheres não só pela eliminação das disposições que abertamente discriminam, mas pela eliminação de todos preconceitos e valores sexistas que estão implícitos nas referidas leis”.

Os seus pronunciamentos contribuíram para que o Comité de Eliminação da Discriminação Contra a Mulher convidasse o estado moçambicano, entre outros aspectos, a assegurar e acelerar que as provisões da Convenção sejam sustentadas e aplicadas, dando prioridade a qualquer outro conflito com a provisão da Lei3.

O acesso à informação

No tocante ao acesso e difusão da informação, uma atenção particular despertaram em nós os cartazes. O seu conteúdo informa de forma explícita que:

  • “A violência doméstica é um atentado aos direitos humanos das mulheres”
  • “A violação contra mulheres e crianças é uma violação dos direitos humanos”
  • “As mulheres tem direito a: garantia da sua integridade física e controlo do seu próprio corpo”
  • “A violência doméstica é uma tortura contra as mulheres e pode matar”
  • “No Código Penal, é preciso criminalizar a violação conjugal”.

Ao centrarem as suas mensagens, de novo, nos direitos humanos, as organizações consolidaram a ideia de que a solução do problema não reside somente nas mulheres. A responsabilidade é muito mais lata e complexa, envolvendo a actuação do próprio estado no sentido da salvaguarda dos direitos humanos das mulheres.

Ao especificarem os meios e os fins a que a violência contra as mulheres se propõe, as ONGs sublinham que a mesma visa manter a subalternidade nas relações de género, mas que as mulheres têm capacidade de decisão e devem ser dotadas de autonomia e capacidade de ser e agir.

Conclusão

Ao passarmos em revista o quadro de interpretação do fenómeno da violência doméstica contra as mulheres por parte dos movimentos sociais, com maior enfoque sobre a WLSA, constatámos que a sua contribuição teórica tem como fim conceptualizar adequadamente como conflito e produto de relações de género desiguais, eixos que se consideram, por vezes, naturais, imutáveis e determinados pela tradição. No processo de deslegitimação sublinha-se que a violência é o resultado de uma discriminação normativa de comportamentos inscritos nas relações de poder, sendo assim uma área determinante na luta pelos direitos humanos das mulheres.

Ao tornarem-se visíveis as acções colectivas das ONGs, ao ampliarem o seu campo de sujeitos sociais, elas não buscaram apenas a denúncia de situações anómalas, mas sim tornar públicos os maus tratos que adquirem o estatuto de problema social pelo aumento vertiginoso de casos. Neste período, acabaram por aceder a espaços de encontro com outros e outras, verdadeiros espaços de diferenciação e de procura de desnaturalização da violência. Todo este processo conduziu a uma nova significação do fenómeno.

Estas iniciativas transformadoras das ONGs, que visam responder às necessidades estratégicas de género, foram também potenciadas pela necessidade de dar seguimento a orientações constantes nos instrumentos internacionais ratificados. Por outro lado, ao mesmo tempo que se avança no sentido de reprovar socialmente a violência doméstica contra as mulheres e de denunciar a ordem patriarcal vigente, a identidade hegemónica dos perpetradores tem sido destabilizada. As ONGs que integram os movimentos sociais vêm-se situando, nos últimos anos, no centro da cooperação material e simbólica sob o lema “Violência Contra a Mulher não é Amor. Basta”.

Notas:

  1. Moçambique (2005). Programa do Governo para 2005-2009. Maputo
  2. Relatório sombra sobre o estágio de implementação do CEDAW em Moçambique, por referência ao relatório do governo: “1º Relatório Nacional Sobre a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres – CEDAW, 2003”, submetido ao Comité do CEDAW, na sua 38ª Sessão, Maio – Junho de 2007. Maputo
  3. Committee on the Elimination of Discrimination against Women, Concluding comments of the Committee on the Elimination of Discrimination against Women: Mozambique, Thirty-eighth session, 14 May -1 June 2007.

Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Ximena; OSÓRIO, Conceição; TRINDADE, João Carlos (2000), Direitos humanos das mulheres em quatro tópicos. Maputo: WLSA Moçambique.
ARTHUR, Maria José; MEJIA, Margarita (2005), Violência doméstica: a fala dos agressores. In: Outras Vozes, nº 11.
ARTHUR, Maria José; MEJIA, Margarita (2006), Reconstruindo vidas. Mulheres sobreviventes de violência doméstica. Maputo: WLSA Moçambique.
CONNELL, Robert (1997), La organización social de la masculinidad. In: Teresa Valdes y José Olavarria (eds), Masculinidades: Poder y crisis. Santiago. Ediciones de las Mujeres n.24. Isis Internacional.
ECHÈNE, Agnès (2003), Violence et conjugalité. In: Les Pénélopes. (http://ladivecie.free.fr/article.php3?id_article=36)
GOFFMAN, Erving (1974), Frame analysis. An essay on the organization of experience. Cambridge: Cambridge University Press.
GOFFMAN, Erving (1987), Manicómios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva.
MELUCCI, Alberto (1994), Qué hay de nuevo en los movimientos sociais. In: E. Larana y J. Gusfieled (eds), Los nuevos movimientos sociales. Madrid: CIS
OSÓRIO, Conceição; ANDRADE, Ximena; TEMBA, Eulália; CRISTIANO JOSÉ, André; LEVI, Benvinda (2001), Poder e Violência. Homicídio e Femicídio em Moçambique. Maputo: WLSA Moçambique.
PONCE, Martha (1995), Trabalho, poder e sexualidade: história e valores femininos. In: Cadernos Pagu, nº 5.

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