O problema do aborto inseguro
Momade Bay Ustá
“Toda a mulher grávida tem um pé no túmulo”, diz um velho adágio africano. Isto era verdadeiro no tempo das nossas avós, mas infelizmente ainda hoje continua actual. Este artigo procura questionar-se sobre a permanência do aborto inseguro, ao mesmo tempo que se discute a sua frequência, as consequências que dele resultam e alternativas para a sua erradicação.
O aborto inseguro continua a ser uma realidade no século XXI
Perante o crescente número de mortes por aborto inseguro e a enorme taxa de mortalidade materna, devemos fazer-nos algumas perguntas: será que isto deve ser assim em pleno século XXI, quando existem conhecimentos científicos e tecnologias para oferecer serviços de Saúde Reprodutiva completos e de qualidade, incluindo o aborto seguro? Como e quão cedo devemos trabalhar para melhorar esta situação?
Enquanto esperamos e não tomamos as medidas necessárias, todos os anos milhares de mulheres morrem no nosso continente porque não têm acesso aos serviços de aborto seguro. Esta situação está relacionada com vários factores, sendo o primeiro deles a falta de acesso a meios anticonceptivos eficazes. Para se ter uma ideia, veja-se que a taxa média de prevalência de anticonceptivos em África é de menos de 15%,[1] enquanto em Moçambique a taxa total de Prevalência de Contracepção aumentou para 17% em 2003, o que corresponde a 29% na área urbana e 12% na área rural.
Um segundo factor relacionado com a falta de acesso a serviços que providenciem o aborto inseguro tem a ver com o estigma e o silêncio à sua volta, não somente entre a população em geral, mas também entre os profissionais de saúde.
Um terceiro factor prende-se com as desigualdades do género porque, apesar das grandes mudanças sociais que se observam por todo o continente, as mulheres não têm voz em relação à sua Saúde Reprodutiva.
Um quarto factor é a ignorância entre os fazedores de políticas, legisladores, profissionais de saúde e infelizmente da própria mulher. Queremos com isto referirmo-nos a mitos e crenças que associam o aborto à devassidão dos costumes ou outros males, o que é reforçado pela hipocrisia, fundamentalismo, religião e dogma.
Até há muito pouco tempo, o quinto factor era a política dos Estados Unidos da América, que penalizavam os programas que lutavam pela despenalização do aborto, retirando-lhe fundos. Desta maneira, os EUA negavam às mulheres africanas o que as suas cidadãs têm como direito.
E finalmente, mas não menos importante, a existência de leis coloniais primitivas e arcaicas que datam do século XIX, como em Moçambique, ou outra legislação criminalizando o aborto.
É importante que todos saibamos o que quer dizer aborto inseguro e para tal a OMS (2003) definiu-o como sendo:
a interrupção de uma gravidez feita por alguém sem treino e habilidades adequados para tal ou quando feito num lugar sem o mínimo de condições médicas e de higiene ou ambos.
Infelizmente, no mundo, 98% dos abortos inseguros acontecem países em desenvolvimento.
De acordo com dados da OMS (2011), todos os anos 46 milhões de gravidezes acabam em aborto induzido. Estima-se que cerca de metade destes abortos, correspondendo a 1/10 de todas as gravidezes, são inseguros. A OMS também tem estimativas que apontam para que:
- 4,2 milhões de mulheres africanas passam por um aborto inseguro por ano.
- Muitos deles são induzidos pelas próprias mulheres. Alguns dos métodos mais comummente usados quer pelas mulheres quer pelos abortadores incluem: inserção de cateteres, paus ou raízes, agulhas de croché e outros tipos de objectos dentro do útero; ingestão de bebidas feitas com ervas, que muitas vezes são venenosas; substâncias cáusticas tais com javel ou mesmo cloroquina (Walker, 2008).
Muitos destes métodos não têm os efeitos desejados e estão frequentemente associados à morte das mulheres.
Independentemente da situação legal ou de outros factores, os abortos acontecem em todo o mundo. A tragédia é que quase todos os abortos inseguros acontecem em países em desenvolvimento (e países “em transição”, tais como aqueles no Este Europeu e as ex-repúblicas Soviéticas). Certamente, quase não há abortos inseguros em países desenvolvidos, onde o aborto seguro, em geral, está legalmente disponível (OMS, 2003). Não existe um grupo “típico” de mulheres que fazem abortos, ocorrendo estes em todos os grupos de idade, numa grande variedade de mulheres e Moçambique não é excepção.
Baseado em estudos em 56 países, a mais alta proporção de abortos ocorrem entre mulheres com idade 20-24 e 25-29 (Bankhole et al., 1999). Entretanto, este modelo reflecte em grande parte a menor taxa de fertilidade entre mulheres mais jovens e mais velhas. Quando as mulheres dos grupos mais jovens e mais velhos ficam grávidas, elas provavelmente recorrerão a um aborto com maior frequência que as mulheres do grupo de meia-idade.
O impacto global do aborto inseguro é muito pesado. Calcula-se que:
- 200 mortes por dia em todo o mundo em resultado do aborto inseguro;
- 99,9% das complicações e mortes acontecem no mundo em desenvolvimento; cerca de 44% da Mortalidade Materna global devida ao aborto acontece em África – cerca de 90 mulheres africanas morrem por dia;
- Estas percentagens podem ser mais altas em algumas regiões e países; nalguns países africanos atinge os 50% (OMS, 1998).
Todas estas mortes são desnecessárias. O aborto seguro é um dos procedimentos médicos mais seguros no mundo.
Quais são as razões que levam as mulheres a decidir realizar um aborto? E que consequências podem resultar do aborto inseguro?
Um leque amplo de mulheres procura abortos; geralmente, o perfil tende a variar de região para região e depende de diversos factores, incluindo a média de idade no casamento, a prevalência da actividade sexual antes do matrimónio, o acesso à contracepção, expectativas sobre o tamanho ideal de família, entre outros. Há muitas razões que levam a que a mulher casada decida pela interrupção da gravidez (Bankhole et al., 1999).
As mulheres podem não querer estar grávidas por vários motivos (OMS, 2003), nomeadamente:
- Razões pessoais
- Razões de saúde
- Razões socioeconómicas
- Razões culturais
- Instabilidade na relação em que vive
- A vontade de não querer ter mais filhos ou espaçamento
- A gravidez pode não ser apoiada pelo parceiro, pela família ou pela comunidade.
As consequências, para quem realiza um aborto inseguro, para além morte, podem ser muito graves. O aborto inseguro pode levar a:
- Doença e lesão significantes a curto e longo prazo para a mulher;
- Infertilidade, que é um problema muito sério em África;
- Custos hospitalares altos no tratamento das complicações;
- Impactos negativos na mulher, famílias, crianças e comunidade;
- Maior probabilidade de morte entre as crianças cujas mães morreram.
As complicações mais comuns incluem perfuração uterina, hemorragia, infecções de vários níveis de severidade.
O aborto inseguro tem também um impacto económico muito sério no sistema de saúde, o que leva a consumir grandes verbas em prejuízo de programas de saúde importantes como é o caso dos programas de saúde reprodutiva e neonatal e até mesmo do HIV/SIDA.
O impacto negativo nas famílias também é enorme, a julgar pelas elevadas probabilidades de malnutrição, descontinuidade nas oportunidades de educação e diminuída capacidade das mães em contribuir para o sustento da família, entres as crianças cujas mães morreram ao tentarem um aborto.
A restrição legal do aborto não reduz necessariamente o número de abortos que acontecem num país. Leva simplesmente a que eles sejam feitos às escondidas e de forma insegura e as mulheres que recorrem a estes serviços pagam muito caro por eles, incluindo ao arriscar a sua própria vida! Onde o aborto é legal e existem serviços seguros, a morte e a incapacidade devidas ao aborto são consideravelmente reduzidas. Embora a liberalização do aborto não signifique necessariamente que as mulheres podem ter acesso ao aborto seguro, existe com frequência uma correlação entre as duas. O quadro seguinte mostra o exemplo da Roménia:
Na Roménia, o aborto sofreu restrições muito rígidas durante o tempo do ditador Ceausescu, entre 1966 a 1989. Depois que foi deposto, o aborto foi legalizado em Dezembro de 1989 e no início de 1990 pôde-se observar uma diminuição drástica da Mortalidade Materna, sendo que a mortalidade devida ao aborto inseguro era a principal razão para essa diminuição. O quadro mostra esse decréscimo a partir de 1989 (Scarlat, 2005).
Nas últimas duas décadas, 17 países no mundo fizeram uma revisão às suas leis de forma a torná-las menos restritivas. Quando isto é acompanhado por uma expansão de serviços seguros, tal como aconteceu na África do Sul, a legalização do aborto reduz consideravelmente as complicações e mortes devidas ao aborto. Na África do Sul a Lei mudou desde 1997 e as mortes relacionadas com o aborto reduziram-se em 91% (Jewkes et al., 2005).
Mas aborto inseguro não é só um problema de saúde. Ele é também um problema de injustiça social que requer acção por parte dos governantes, fazedores de politicas, doadores e comunidades. Tanto a gravidez não desejada como o aborto inseguro, constituem uma violação dos direitos humanos básicos das mulheres. As mulheres e os casais têm o direito de decidir quando querem ter filhos e o tamanho das suas famílias.
É também um problema de injustiça social porque afecta desproporcionalmente as mais pobres e consequentemente as mais vulneráveis. Em todo o mundo, mesmo naqueles países onde as leis são muito restritivas, as mulheres com boas condições económicas podem obter serviços de aborto seguro. As mulheres pobres, adolescentes, refugiadas e outro tipo de populações vulneráveis raramente têm essa opção. São essas mulheres que muitas vezes recorrem ao aborto inseguro, para o bem do seu futuro, das suas próprias famílias e dos seus filhos. Infelizmente são também elas que pagam o preço mais caro – problemas de saúde e até a morte.
Finalmente, é preciso repisar que o aborto inseguro não é “só um problema da mulher”, pois acarreta efeitos muto sérios para as famílias e para as comunidades.
Estudos independentes (Machungo et al., 1997) analisando a mortalidade materna no Hospital Central de Maputo (HCM) no período entre 1990 e 1999, mostraram que:
- 540 mortes maternas (11%) estavam relacionadas com o aborto inseguro (esta percentagem pode ser só a ponta do iceberg). Muitas são aquelas que acontecem em casa ou não são registadas como tal; a idade média foi de 23 anos; 63% das mulheres que recorriam ao aborto inseguro tinham um baixo nível de escolaridade; 75% eram solteiras; 29% eram provenientes de áreas suburbanas; 88% tinham um baixo nível sócio económico;
- 1 em cada 30 mulheres que se submeteram a um aborto inseguro, morreram;
- Nenhuma das mulheres que se submeteram ao aborto realizado dentro do hospital morreu;
- A maioria das mulheres que recorrem a abortos inseguros têm um conhecimento menor a respeito dos métodos anticonceptivos e utilizam-nos menos.
Que alternativas existem para erradicar o aborto inseguro?
Virtualmente todos os países DEVIAM oferecer serviços de aborto seguro. As legislações nacionais também variam muito, se bem que quase todos os países no mundo permitem algum espaço para o aborto em situações muito específicas:
- Para salvar a vida das mulheres – quase todos;
- Para preservar a saúde física e mental – 60% dos países;
- Em caso de violação, incesto e anomalias fetais – cerca de 40%.
No entanto, apesar disto, muitas mulheres não podem exercer o seu direito ao aborto seguro por várias razões, entre as quais se apontam:
- Falta de informação – os provedores, as mulheres e comunidades não conhecem a legislação – falta de divulgação;
- Custos – geralmente altos (por exemplo, os custos podem incluir o transporte até à unidade sanitária, despesas com consultas e hospedagem);
- Atitudes sociais – religião, estigma e cultura;
- Sistema de saúde – falta de pessoal treinado, equipamento e recursos;
- Questões políticas – barreiras administrativas, judiciais e regulamentação.
Um grupo multi-sectorial de trabalho legitimado pelo Conselho de Ministros foi formado em 2005 com os seguintes objectivos:
- Estudar as condições em que o aborto devia ser despenalizado;
- Produzir uma proposta de lei dentro do contexto geral da reforma legal em curso no país;
- Conduzir um debate aberto e inclusivo para colher as sensibilidades políticas, religiosas e da sociedade civil.
Depois do debate em todo o país o grupo produziu um documento que reflectiu o consenso relacionado com a futura lei do aborto:
- A maioria era a favor de uma liberdade total para o aborto feito em unidades seleccionadas;
- A permissão para o aborto seria para as seguintes situações: salvar a vida da mãe, incesto, violação, razões económicas.
Os fazedores de políticas deveriam clarificar os aspectos legais sobre oferta de aborto seguro para remover as barreiras administrativas e de regulamentação.
As Metas de Desenvolvimento do Milénio (MDM) foram desenvolvidas após a adopção da Declaração do Milénio por 189 líderes mundiais reunidos numa Assembleia Geral Especial das Nações Unidas, realizada em Setembro de 2000. Baseado em várias Conferências Internacionais realizadas nos anos de 1990, os MDM obrigam os estados membros e a comunidade internacional a lutar contra a pobreza e a promover o desenvolvimento humano.
A quinta e oitava meta apelam aos governantes mundiais para reduzir a taxa de mortalidade materna em três-quartos entre 1990 e 2015.
Entre as diversas causas directas e indirectas de mortes maternas que incluem a obstrução do parto, sépsis, hemorragia, e condições tais como malária que podem piorar durante a gravidez, o aborto inseguro é provavelmente a causa tecnicamente mais fácil de corrigir em alguns lugares. Em alguns países, estima-se que o aborto inseguro chegue a causar metade das mortes maternas. Nesses casos, MDM não poderão ser atingidas a menos que se atenda ao problema do aborto inseguro (ONU, 2000).
“As mulheres não estão a morrer de doenças que não possamos tratar. Elas estão sim a morrer porque a sociedade ainda está por tomar a decisão de que vale a pena salvar as suas vidas.”
Dr. Mahmoud Fathalla
Referências:
- Bankole, A.; S. Singh; T. Haas (1999), “Characteristics of Women Who Obtain Induced Abortion: A Worldwide Review”. In: International Family Planning Perspectives, 25 (https://www.guttmacher.org/pubs/journals/2506899.html)
- Jewkes, R.; Rees, H.; Dickson, K.; Brown, H.; Levin, J. (2005). “The impact of age on the epidemiology of incomplete abortions in South Africa after legislative change”. In: BJOG 112 (3). pp. 355–9
- Machungo, F.; Zanconato, G.; Bergstrom, S. (1997), Reproductive characteristics and post-abortion health consequences in women undergoing illegal and legal abortion in Maputo. In: Soc Sci Med, 45 (11). pp. 1607-13
- OMS (1998). Unsafe abortion. Global and regional estimates of incidence of and mortality due to unsafe abortion with a listing of available country data. Third edition. Geneva: World Health.
- OMS (2003), Safe Abortion: Technical and Policy Guidance for Health Systems. In: http://www.who.int/reproductivehealth/publications/unsafe_abortion/9789241548434/en/. (2nd ed.; 2012)
- OMS (2011). “Preventing unsafe abortion” (World Health Organization 2011): In: http://www.who.int/reproductivehealth/publications/unsafe_abortion/en/, acedido a 7 de Abril de 2013.
- ONU (2000), United Nations Millennium Declaration, Millennium Assembly of the United Nations, Sept. 6-8, 2000 (New York: United Nations, 2000).
- Scarlat, S. (2005), “‘Decreţei’: produsele unei epoci care a îmbolnăvit România” (“‘Scions of the Decree’: Products of an Era that Sickened Romania”). In: Evenimentul Zilei, May 17
- Walker, Andrew (2008), “Saving Nigerians from risky abortions“. BBC News, acedido a 31/05/2009
- Population Reference Bureau (PRB) (2002), Family planning worldwide. Washington, DC.
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