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Omitidas

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O aborto inseguro em Maputo

Fernanda Machungo

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 7, Maio de 2004

 

O aborto inseguro é em Moçambique, tal como em outros países de baixo rendimento, particularmente em África, uma das principais causas de morte materna, sendo esta definida como a morte duma mulher durante a gravidez ou dentro de um período de 42 dias após o parto, independentemente da duração ou da localização da gravidez e devida a qualquer causa relacionada ou agravada pela gravidez ou por medidas tomadas em relação a ela. A magnitude da mortalidade materna não é conhecida no País estimando-se que se situe entre 500 a 1500 mortes por 100.000 nascimentos vivos. Do mesmo modo também não é conhecida a magnitude do aborto inseguro. Estudos realizados em Hospitais, nomeadamente no Departamento de Obstetrícia e Ginecologia do HCM, de 1990–2000, revelaram que 8 a 11% das mortes maternas ocorridas nesse período foram devidas a complicações do aborto inseguro. Temos, porém, a convicção de que estes números representam somente o cume do iceberg, uma vez que não incluem aquelas mulheres que não conheceram complicações graves imediatas que necessitassem de cuidados hospitalares ou que, por razões várias, não procuraram assistência no hospital, muitas das quais eventualmente morreram.

De acordo com a OMS, o aborto inseguro é definido como sendo a terminação de uma gravidez, quer por pessoas sem o conhecimento técnico necessário, quer num meio sem as mínimas condições de higiene ou ambos. Por outro lado o aborto seguro é aquele que é feito por pessoas qualificadas para tal e em instituições de saúde reconhecidas.

O aborto inseguro é um grave e preocupante problema de saúde pública, não só devido à morte materna que causa, mas também devido às suas complicações imediatas, bem como a médio e longo prazos. As complicações imediatas mais comuns do aborto inseguro são: lacerações do colo do útero, hemorragia, infecção grave (sepsis), perfuração uterina e peritonite (colecção de pus na cavidade abdominal). As complicações a médio e longo prazos incluem dor pélvica crónica, gravidez ectópica (gravidez fora do útero) e infertilidade. São também de destacar as consequências sociais tais como a destruição da família e várias formas de ostracismo a que a mulher muitas vezes é votada.

Ao longo da História da Humanidade, as mulheres com uma gravidez indesejada, independentemente do seu status socio-económico, têm procurado resolver esse seu problema pondo em risco a sua saúde, a sua fertilidade e aceitando até a possível consequência da sua própria morte. São, muitas vezes, as mulheres jovens e adolescentes as mais afectadas.

Em Moçambique, a legislação prevalecente contida no retrógrado Código Penal do século XIX, datado de 1886, estipula que o aborto é proibido em qualquer circunstância e penaliza a mulher e o abortador. Como consequência, as mulheres com gravidez indesejada são obrigadas a recorrer a abortadores clandestinos onde são submetidas a práticas abortivas em condições inseguras, isto é, sem as mínimas condições de higiene e segurança técnica. Até 1985, os obstetras trabalhando no HCM, viam e tratavam impotentes, muitas mulheres, particularmente jovens e adolescentes, com graves infecções, devidas ao aborto clandestino. As intervenções cirúrgicas a que tinham de ser submetidas para salvar a sua vida deixavam-nas, muitas vezes inférteis, sem poder ter filhos, quando não perdiam a vida. Todos nós estamos conscientes das consequências sociais que advêm da infertilidade duma mulher ou da sua morte. Se, por um lado, a mulher infértil pode ser abandonada pelo parceiro, por outro lado, a sua morte tem consequências nefastas na família, particularmente sobre os filhos.

Havia que tomar medidas para inverter ou pelo menos controlar esta situação. É assim, que respondendo a esta preocupação, o Ministério da Saúde emite orientações autorizando a interrupção da gravidez a mulheres cuja gravidez indesejada fosse devida a falha de medidas contraceptivas. Subsequentemente, devido à evidência crescente das altas taxas de morbi-mortalidade materna relacionada com o aborto inseguro, a interrupção da gravidez passou também a ser autorizada quando solicitada por causas socio-económicas. Como resultado, hoje, qualquer gravidez até às 12 semanas pode se interrompida, no Departamento de Obstetrícia e Ginecologia do HCM e em algumas outras Unidades Sanitárias, perante um pedido escrito feito pela mulher ou pelo casal. As adolescentes com idade igual ou inferior a 18 anos necessitam do consentimento de um parente adulto.

Estas medidas também permitiram que, pela primeira vez em África, fosse feito um estudo comparativo do aborto seguro (hospitalar) e do aborto clandestino (inseguro) em Maputo. Este estudo contribuiu para uma melhor compreensão do fenómeno do aborto inseguro. Foram assim estudados o perfil socio-económico, os custos individuais e hospitalares, bem como as características reprodutivas e as consequências para a saúde das mulheres que recorrem aos dois tipos de aborto.

Consequentemente, podemos dizer com base nos resultados destes estudos que as mulheres que recorrem ao aborto inseguro são significativamente mais jovens, sem uma relação estável e estão em desvantagem em relação à educação, habitação e agregado familiar. Em suma: pertencem ao estrato social mais baixo, são as mulheres mais desfavorecidas.

Para além disso, as mulheres com aborto inseguro tiveram a sua primeira relação sexual e a sua primeira gravidez numa idade muito jovem. O conhecimento de contraceptivos era maior nas mulheres que tiveram aborto seguro e mais de metade das mulheres com aborto inseguro nunca tinha usado contraceptivos. São elas que também estão em maior risco de graves complicações. Cerca de um quarto teve graves consequências que, para além de terem posto em risco a sua vida, poderão ter deixado graves ou potencialmente graves sequelas. A consequência mais grave do aborto inseguro foi a morte de 3% das mulheres. As graves sequelas do aborto inseguro estão também reflectidas nos extremamente altos custos hospitalares.

Os custos hospitalares foram mais elevados para o grupo de mulheres com aborto inseguro, tendo-se verificado o oposto em relação aos custos individuais. As implicações médicas e económicas do aborto inseguro também reflectem a capacidade profissional do provedor da intervenção – o abortador. É significante que, em 38% dos abortos clandestinos, estão envolvidos trabalhadores de saúde. Em somente um terço dos casos o aborto foi induzido numa unidade sanitária, indicando que os abortadores clandestinos fazem a intervenção em casa da mulher (58%) ou noutra casa (31%).

Oitenta por cento das mulheres com aborto inseguro não tinham conhecimento da possibilidade de acesso a um aborto seguro, enquanto que 16% das mulheres com aborto seguro souberam dessa possibilidade através de trabalhadores de saúde ou de amigos. Cerca de um quinto das mulheres com aborto inseguro, conhecendo a prática do aborto seguro no hospital, optam por um aborto inseguro devido à confidencialidade e à limitação da idade gestacional para a interrupção.

A gravidez indesejada é mais frequente nas adolescentes (de acordo com o último censo populacional, 17% das adolescentes entre os 15-19 anos tiveram já um filho), por um lado, porque a sociedade tradicional e os seus valores não são respeitados, particularmente nas áreas urbanas, e as adolescentes adoptam a cultura ocidental incluindo a prática de relações sexuais livres. Por outro lado a educação sexual nas escolas é ainda pobre ou não existe e visto que a sexualidade é um tabu, os pais não a discutem com os seus filhos adolescentes. O conhecimento acerca dos contraceptivos é também ainda muito limitado e mesmo, quando existe, muitos adolescentes têm as suas relações desprotegidas. Consequentemente a gravidez indesejada na mulher adolescente é frequente e muitas terminam-na recorrendo a um aborto inseguro.

Um aspecto que merece atenção é o efeito da gravidez indesejada nas raparigas que não conseguem interromper a sua gravidez. Elas são muitas vezes obrigadas a abandonar a escola, com consequências a longo termo para os esforços do País na luta pela igualdade de género, assim como para o bem-estar das crianças de uma mãe solteira e/ ou não instruída.

Direitos reprodutivos e aborto

A capacidade da mulher para exercer os seus direitos reprodutivos depende fundamentalmente, do meio em que se encontra, do seu status, bem como da sua qualidade de vida. As relações conjugal e familiar, o nível de educação, o acesso a recursos económicos e financeiros são também factores determinantes na capacidade da mulher fazer as suas opções acerca das suas necessidades de saúde reprodutiva e do seu acesso aos serviços de saúde. Por outro lado, particularmente nas sociedades patrilineares, o “domínio do homem” tem os seus próprios efeitos que vão do abuso sexual dentro da família a atitudes que facilitam a violação sexual e a ausência de apoio às vítimas da violação, incluindo a possibilidade de interromper a gravidez dela resultante. A violação sexual é a mais grave violação dos direitos sexuais e resulta muitas vezes em grande e possivelmente permanente traumatismo psicológico para a vítima, gravidez indesejada e disseminação de doenças sexualmente transmissíveis.

O contexto social e cultural, incluindo a religião, é um dos importantes factores que influenciam o planeamento familiar e a interrupção voluntária da gravidez. A maternidade precoce associada à pobreza impede a elevação do nível educacional e económico de muitas raparigas, e consequentemente, a criação de uma massa crítica de mulheres capazes de mobilizar e contribuir na luta pela igualdade de género, pelos seus direitos em geral e direitos reprodutivos em particular.

Em Moçambique, onde o nível de educação é baixo, particularmente entre as mulheres, onde a sociedade tradicional e as crenças culturais reforçam a dependência e a ausência de poder da mulher, onde as mulheres são pobres, é claro que são muito poucas as que podem exercer os seus direitos reprodutivos e sexuais. As raparigas adolescentes são, nestas circunstâncias, as mais vulneráveis, sendo mais susceptíveis à gravidez indesejada tornando-se esposas e mães numa idade muito precoce. O casamento prematuro, que afecta negativamente o desenvolvimento integral das raparigas, sobretudo em termos de educação e autonomia económica e também da sua saúde física e psicológica, constitui uma violação dos seus direitos. A falta de acesso aos métodos contraceptivos conduz à gravidez indesejada, que termina, na maior parte das vezes, num aborto inseguro com todas as suas consequências sociais e na saúde das adolescentes.

O aborto inseguro, uma das mais importantes causas de morte materna, sendo uma das mais facilmente evitáveis, é um dos mais negligenciados problemas dos direitos humanos e de saúde no Mundo e em Moçambique. Somente em 1994, no Cairo na Conferência Internacional sobre desenvolvimento e população se reconheceu o aborto como um problema de saúde que deve ser abordado em todos os seus aspectos.

Em Maputo, mesmo antes da CIDP, algumas mulheres começaram a ter acesso ao aborto seguro. São predominantemente mulheres jovens, pobres e com baixo nível de instrução as que recorrem com maior frequência ao aborto inseguro, acrescentando deste modo uma outra violação à sua já longa lista de direitos não concedidos. Neste grupo de mulheres em particular, a gravidez indesejada reflecte, por si só, um outro direito não concedido, o direito à contracepção.

Os direitos reprodutivos são particularmente difíceis de abordar. Primeiro, porque há uma carga emocional grande envolvendo diferentes conceitos de moralidade e princípios religiosos e ainda profundos preconceitos em relação à mulher, enraizados na cultura. Segundo, porque a promoção efectiva destes direitos está intimamente ligada ao estádio de desenvolvimento de um País. É óbvio que o empenho na efectivação dos direitos reprodutivos é mais substancial nos países desenvolvidos.

É fácil dizer que o empoderamento da mulher é uma condição para o exercício dos direitos reprodutivos. O que isto significa, na prática, é um longo e lento processo multissectorial ao longo de gerações, que inclui entre outros aspectos, a mudança de atitudes, a educação, o progresso socio-económico e o desenvolvimento do poder financeiro e político das mulheres.

O progresso requer esforços de muitas forças e grupos sociais e sectores. Entre outros aspectos, há que promover maior educação pública sobre os problemas da saúde reprodutiva das mulheres, as suas causas e efeitos, promover a educação sexual nas escolas e promover maior e mais fácil acesso à contracepção e facilidades de aborto seguro nos casos de gravidez indesejada. Esforços nestas áreas podem começar a produzir resultados positivos a curto ou médio prazos.

 

Referências:

  • Rosenfield A. (1994), Abortion and women’s reproductive health. Int J Gynecol Obstet 46 pp. 173-179.
  • Machungo F, Zanconato G, Bergstrom S. (1997a), Socio-economic background, individual cost and hospital care expenditures in cases of illegal and legal abortion in Maputo. Health and Social Care in the Community; 5 pp. 71-76.
  • Machungo F, Zanconato G, Bergstrom S. (1997b), Reproductive characteristics and post abortion health consequences in women undergoing illegal and legal abortion in Maputo. Soc Sci Med.; 45 pp. 1607-1613.
  • Women of the World Laws and Policies affecting their reproductive lives: Latin America and the Caribbean. First edition. November 1997 ed. 120 Wall Street New York. NY 10005 USA: Centre for reproductive Law and Policy.
  • CRLP. Sexual Violence and Adolescents. The Center for Reproductive Law and Policy, 120 Wall Street, New York. NY 10005 USA, February 1999: 15.
  • CRLP. Early Marriage. The Center for Reproductive Law and Policy, 120 Wall Street, New York. NY 10005 USA, February 1999: 7.
  • Correa S. Petchesky R. Reproductive and Sexual Rights: A Feminist Perspective. In: Sen G. Germain A. Chen LC editors. Population Policies reconsidered. Health, Empowerment, and Rights. New York: Harvard Series on Population and International Health; 1994. p. 107-12.

 

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