Não reconhecimento da União de Facto: uma forma de discriminação contra as mulheres
Ana Cristina Monteiro
Os antecedentes
No passado dia 29 de Julho, no canal televisivo STV, a cidade de Maputo foi colhida de surpresa perante um caso que, embora não sendo uma ocorrência rara, normalmente não é falado nem divulgado nos media nacionais. Trata-se do sucedido a Catarina, de 30 anos, que vivia numa união de facto há doze anos. Com efeito, a decisão de coabitar foi resultado de uma gravidez que também a afastou dos estudos. Durante todo o tempo em que moraram juntos, o seu companheiro prometeu e garantiu a ela e à família que se casaria assim que as condições financeiras o permitissem.
Nos primeiros anos de casada, devido ao desemprego do companheiro e tendo que sustentar a família que entretanto crescia ainda mais (actualmente tem três filhos desta união), desenvolveu pequenas actividades lucrativas no sector informal. Viajava por vezes de comboio durante longas horas para a África do Sul, a fim de trazer de lá pequenas quantidades de produtos alimentares para revender.
Por volta de 2004 o companheiro da Catarina finalmente conseguiu ter um emprego e desde então a vida do casal mudou bastante, tendo podido arrendar uma casa maior, adquirido vários bens e inclusive iniciado uma obra no bairro Patrice Lumumba, no município da Matola.
Perante o evidente aumento dos rendimentos, Catarina esperava que finalmente se pudessem casar mas, quando indagado sobre o assunto, o companheiro respondia que estava a organizar-se. Enquanto esperava ela engravidou pela terceira vez, o que foi mais um pretexto acrescido: “agora não porque estás grávida!”
Finalmente no dia vinte e oito de Junho, conforme conta Catarina, o companheiro chegou bastante cedo a casa e depois do jantar pediu-lhe que o abraçasse com muita força e sussurrou-lhe ao ouvido: “Eu sempre te vou amar”! Ela ficou feliz e pensou que o dia do casamento estivesse para breve. No dia seguinte o companheiro saiu logo pela manhã para o trabalho e a Catarina recebeu uma visita que a informou que aquele homem que lhe prometera casamento havia 12 anos e com o qual teve três filhos, ia contrair matrimónio com outra mulher. Apesar de ter ido à Conservatória tentar impedir o casamento não teve sucesso nesta diligência, pois o reconhecimento das uniões de facto na nova Lei de Família tem um alcance limitado e não se prevê que possa constituir impeditivo de casamento.
Infelizmente, o caso da Catarina não está isolado. A lei não está a proteger a forma de união mais comum no país.
O processo de elaboração da Lei de Família
A revisão e aprovação da lei da família em 2004, surge na sequência de pressões pela sociedade civil porque a lei então em vigor continha alguns dispositivos discriminatórios contra as mulheres, estatuindo por exemplo, que o homem era o chefe da família, que cabia a ele administrar os bens do casal, incluindo os dotais. Estes e outros artigos da lei chocavam com os princípios da igualdade de direitos e de tratamento entre mulheres e homens preconizados na Constituição da República, assim como nos diversos instrumentos internacionais ratificados pelo governo de Moçambique.
Outro aspecto importante que impulsionou a revisão desta lei foi sem dúvida o não reconhecimento legal das relações entre pessoas não unidas por via do matrimónio, mesmo vivendo longos anos. Para esta lei, não havendo matrimónio, e chegada a hora da dissolução da relação, não era possível fazer-se partilha de bens, embora estes tivessem sido adquiridos por duas pessoas, o que por sua vez dificultava o exercício de uma justiça equitativa e a favor do cidadão.
Paralelamente, as estatísticas mostravam e mostram até hoje que a maioria das nossas famílias com ou sem instrução, nas zonas urbanas ou rurais, não se constituía somente através do matrimónio, mas sim de outras formas, ainda que não registadas ou legalmente reconhecidas.
Esta era mais uma forma de discriminação contra as mulheres, acompanhada de uma continuidade da violência. Esta era praticamente legitimada pelo poder legislativo uma vez que elas eram obrigadas a suportar as situações mais complicadas de violação dos seus direitos humanos, pois, em caso de separação, não se falava em divisão de bens e eram obrigadas a ir-se embora sem absolutamente nada para recomeçar com uma nova vida, mesmo que, como em alguns casos, tivessem tido vinte anos de vida em comum.
Para contornar esta situação que perpetuava a exclusão das mulheres do acesso aos recursos, as organizações femininas de defesa dos direitos humanos das mulheres, a bem de uma cultura jurídica em Moçambique, no âmbito da assistência jurídica e patrocínio judiciário, socorriam-se do instituto da co-propriedade (artigo 1403° e seguintes do Código Civil, versão anterior à aprovação da Lei de Família), interpondo acção de divisão de coisa comum segundo o artigo 1052° e seguintes do Código de Processo Civil, fazendo valer que determinado bem móvel ou imóvel era da pertença de duas pessoas, neste caso a mulher e o homem. Porém, este pretexto não era visto com bons olhos pelo juiz cível, imbuído de valores culturais e tradicionais, segundo os quais a mulher que não tem um emprego formal em nada contribui para as despesas do lar e por conseguinte a partilha de bens não faz sentido, pois estes pertencem ao homem.
As grandes alterações que se propuseram centravam-se fundamentalmente na definição de família, nas modalidades do casamento e seus efeitos quanto à chefia, ao nome, à representação e à administração dos bens do casal, entre outras. O que importa frisar é que a sociedade civil necessitava de encontrar um enquadramento legal para as famílias não constituídas por via do matrimónio, de modo a que em caso de dissolução a divisão de bens fosse feita por igual, por um lado, e por outro que esta união tivesse os mesmos efeitos que um casamento civil, constituindo, por exemplo, impedimento para a celebração de um outro casamento. Esta posição constituía a protecção absoluta para os direitos das mulheres já que este tipo de união é maioritária1 e porque a decisão de registar ou não o casamento não depende delas. Em muitos casos, as mulheres vivem durante anos sem poder persuadir os companheiros a contrair matrimónio.
Várias ideias foram surgindo no processo de discussão e para uns, sendo o casamento um acto voluntário, as partes deviam decidir sobre o destino a dar à sua relação, vivendo não unido por matrimónio quem assim o pretendesse, por conta e risco próprio. Nesta ordem de ideias, defendia-se que a sociedade devia compreender que a forma “normal” de estar era na situação de casamento, sendo penalizadas as pessoas que vivessem em condição diferente. Esta linha de raciocínio penaliza directamente as mulheres que, como vimos, não têm o poder de negociar a sua condição, a sua posição social, cabendo sempre ao homem decidir quando e com quem pretende contrair matrimónio. A mulher contrai matrimónio porque o homem assim o quer ou porque a Igreja que ambos frequentam assim o definiu, mas quase nunca por sua decisão, mesmo sabendo que esta é a única forma de estar que lhe garante segurança jurídica.
Foi considerando estas situações que as organizações de defesa dos direitos das mulheres se posicionaram a favor de uma lei que previsse um instituto para regulamentar as formas de estar que não fosse simplesmente o casamento, mas com os mesmos efeitos que este, de modo a dar maior protecção jurídica às mulheres.
A União de Facto na lei e os seus efeitos
Finalmente, no ano 2004, a Lei da Família foi aprovada, prevendo no seu artigo 202° a união de facto e os seus efeitos no artigo 203°, que estatuem o seguinte:
Artigo 7° – Noção de casamento
O casamento é a união voluntária entre um homem e uma mulher, com o propósito de constituir família, mediante comunhão plena de vida.
Artigo 202° – União de facto – noção
1. A União de facto é a ligação singular existente entre um homem e uma mulher, com carácter estável e duradouro, que sendo legalmente aptos para contrair casamento não o tenham celebrado.
2. A União de facto pressupõe a comunhão plena de vida pelo período de tempo superior a um ano sem interrupção.
Da leitura destas definições podemos concluir que os requisitos da união de facto são a idade igual ou superior a 18 anos, a coabitação por mais de um ano e que esta relação seja singular e de domínio público.
Os requisitos do casamento são igualmente a idade igual ou superior a 18 anos e que não conste nenhum dos impedimentos preconizados pela lei como:
A demência notória, a interdição ou inabilitação por anomalia psíquica, o casamento anterior não dissolvido, o parentesco na linha recta, o parentesco no segundo grau da linha colateral, a afinidade na linha recta, a condenação de um dos nubentes, o prazo internupcial, o parentesco até ao quarto grau da linha colateral, o vínculo da tutela, curatela ou administração legal de bens, o vínculo que liga o acolhido aos cônjuges da família de acolhimento, pronúncia do nubente pelo crime de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o cônjuge do outro, enquanto não houver despronúncia ou absolvição por decisão passada em julgado e a falta de consentimento dos pais ou tutor do nubente menor.
É importante constatar que o casamento anterior não dissolvido constitui impedimento para a celebração de outro, mas a união de facto já não consta da lista dos impedimentos ao casamento. Por outras palavras, pode dizer-se que se A e B vivem em união de facto há 20 anos, nada impede que A contraia matrimónio com C, o que não poderá acontecer no caso de A ser casado com B, pois o vínculo matrimonial vai constituir impedimento.
Significa então que os efeitos do casamento são diferentes dos efeitos da união de facto, embora os dois institutos, a nosso ver, concorram para a constituição da família, ou seja, constituem fonte das relações de família. Vejamos o que diz a lei:
Artigo 203° – Efeitos da União de Facto
1. A União de Facto releva para efeitos de presunção de maternidade e paternidade, nos termos do disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 225 e na alínea c) do nº 2 do artigo 277.
2. Para efeitos patrimoniais, a união de facto aplica-se o regime da comunhão de adquiridos.
Artigo 413° – Pessoas obrigadas a alimentos
b) O que se encontre em união de facto.
Artigo 424° – Apanágio em caso de união de facto ou comunhão de vida
1. Em caso de união de facto ou de comunhão de vida por mais de 5 anos, sempre que se mostrar necessário para a subsistência, o companheiro sobrevivo tem direito a ser alimentado pelo correspondente a um oitavo dos rendimentos deixados pelo autor da sucessão.
Artigo 93° – Efeitos do casamento quanto às pessoas dos cônjuges
Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, confiança, solidariedade, assistência, coabitação e fidelidade.
Efeitos do casamento quanto aos bens
Quando se fala dos efeitos do casamento quanto aos bens está-se a referir aos regimes de bens no casamento e sua implicação na partilha aquando da dissolução do mesmo. Frise-se que não existe um regime obrigatório, cabendo às partes escolher livremente o regime que lhes aprouver, de entre os seguintes:
- Regime da comunhão de adquiridos
- Regime da comunhão geral de bens
- Regime da separação
Como nos referimos anteriormente, o casamento e a união de facto diferem principalmente quanto aos efeitos, pois segundo o artigo 203°, números 1 e 2, a união de facto importa para efeitos de paternidade e maternidade, assim como para a partilha de bens. Por outras palavras, equivale a dizer que nenhuma das partes pode recorrer à justiça para evocar todos os pressupostos previstos no artigo 93°. Significará então que quem vive em união de facto pode faltar com a confiança, o respeito, fidelidade e a solidariedade?
Continuando, é de assinalar que na união de facto o regime da comunhão de adquiridos tem carácter imperativo, sendo que as partes não têm o direito à livre escolha. De igual maneira, na união de facto, o direito a alimentos cessa após o término da mesma e o companheiro que deles careça não tem o direito a reclamá-la, diferentemente do que acontece entre pessoas unidas pelo vínculo matrimonial.
No que diz respeito ao direito sucessório, também o companheiro sobrevivo não tem direito à herança, havendo necessidade de regulamentação na revisão que decorre sobre a lei das sucessões; o mesmo já não acontece no casamento, onde o sobrevivo é meeiro.
As outras formas de união também não estão protegidas
Embora a Lei de Família, no seu preâmbulo, refira que tem como princípio o respeito pela diversidade cultural do país, os chamados casamentos tradicionais ou religiosos só são plenamente reconhecidos após a sua transcrição. Portanto, o reconhecimento destas formas de união depende da transcrição, uma decisão que pouco provavelmente as pessoas que não tiverem escolhido o casamento civil tomarão. Neste contexto, se não forem transcritos, os casamentos tradicional e religioso têm o mesmo efeito da união de facto. Ou seja, em termos práticos, não se verifica o respeito e a dignificação que a lei pretende atribuir a estas formas de casamento.
Conclusões
Está claro que há necessidade de regulamentar a união de facto ou outro instituto que regule as relações entre pessoas não unidas por matrimónio. O ideal seria que este instituto tivesse os mesmos efeitos jurídicos que o casamento civil, tanto ao nível das pessoas envolvidas como ao nível de bens, a bem de uma justiça equitativa.
O argumento de que se deve dar às pessoas que não pretendam contrair matrimónio a oportunidade de viver em união de facto não é aceitável, se tivermos em conta que, como dissemos anteriormente, a maior parte das mulheres na nossa sociedade não tem capacidade de negociar a sua condição social, sujeitando-se à vontade do parceiro. Olhando para os efeitos da união de facto (Artigo 203° da Lei de Família), constatamos que o n° 1, sobre a presunção de maternidade e paternidade, embora resolva o problema imediato do registo dos menores e a consequente pensão de alimentos, pode ser sanado através da impugnação da maternidade e da paternidade (artigos 214° e 231° in fine), o que significa que se trata de uma solução apenas aparente (vide artigo 204° e seguintes sobre a filiação).
Quanto aos efeitos patrimoniais da união de facto (artigo 203°, n° 2), encontramos sim uma verdadeira revolução e de aplicação mais prática em relação à co-propriedade pois, para esta, as partes tem de ser simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa, enquanto que na união de facto não importa a titularidade da coisa, desde que tenha sido adquirida na constância da união. O problema que surge então é em relação à prova da união. Haverá ou não necessidade de registo da mesma e quem tem competência para tal? O registo, o notário ou apenas o bairro onde residem as partes? Certamente o legislador estaria a obrigar o registo de toda a relação e talvez se colocasse o problema da vontade das partes.
Seja como for, julgamos que estas questões merecem muita atenção e reflexão sob pena de continuarmos a discriminar as mulheres. Constata-se ainda que a diferença de tratamento resultante da própria lei traduz-se por sua vez na desigualdade de direitos entre os cidadãos (principalmente do sexo feminino), uma vez que só no casamento existe a segurança absoluta em termos legais.
Portanto, a lei continua a tratar o casamento civil como um privilégio e as pessoas casadas civilmente são privilegiadas em relação às que vivem em união de facto, uma vez que a própria Lei da Família (2°, n° 2) estabelece que a união singular, estável livre e notória entre um homem e uma mulher é apenas reconhecida para efeitos patrimoniais.
No nosso entender esta situação abre espaço para o desrespeito para com as mulheres em particular e para com a sociedade em geral. Por último, gostaríamos de fazer notar em resumo que com a união de facto o problema do nosso grupo alvo continua, havendo necessidade de garantir a este grupo maior dignidade e o desfrute dos seus direitos humanos.
- Segundo o Inquérito Demográfico e de Saúde (INE), 2003 (p. 32), 54,8% das mulheres inquiridas declararam viver em união de facto, contra 30,8% dos homens.