Mitos sobre violência doméstica e a proposta de lei
Maria José Arthur
Nos últimos meses tem sido levada a cabo, em todo o país, a discussão do anteprojecto de Lei Contra Actos de Violência Doméstica, uma iniciativa de um conjunto de organizações filiadas no Fórum Mulher. Motivadas pela crescente incidência deste tipo de violência e tendo como base a experiência da campanha Todos Contra a Violência – TCV (1998-2001), o objectivo é de fazer aprovar um instrumento legal que possa ser eficaz no combate a todas as formas de violência que ocorrem no âmbito doméstico, mas sobretudo contra a que é cometida contra as mulheres. Neste momento em que já está finalizada a primeira proposta, pretende-se colher contribuições não só da sociedade civil, mas igualmente dos que trabalham em instituições que têm que lidar com este problema.
O que pretendemos discutir neste artigo é uma das posições em relação ao Ante-Projecto da Lei que tem sido mais comum durante os debates, que defende que a lei, para ser justa, tem que considerar que a violência em casa é exercida tanto pelo homem contra a sua parceira/esposa, como pela mulher contra o marido/parceiro. Questiona-se a perspectiva incorporada no ante-projecto, que assume que a violência doméstica se exerce sobretudo contra as mulheres, estando implícita uma acusação de parcialidade e de recusa em ver a totalidade do problema.
Este tipo de intervenções, protagonizadas tanto por homens como por mulheres, tem por objectivo demonstrar que o ante-projecto é radical porque só toma em consideração uma parte do problema, que é o mesmo que dizer que se quer fazer passar uma lei injusta. Quanto a nós, defendemos que se tratam de discursos sociais que tentam silenciar esta forma de violência que ganha cada vez mais proporções assustadoras e que resulta em agressões, violações, assédio, exploração e femicídio de um número significativo de mulheres. São afirmações que tentam negar a existência de relações de poder desiguais entre homens e mulheres na sociedade e na família. São estas as questões que pretendemos explorar como contribuição para o debate.
Os mitos sobre a violência contra as mulheres
A violência contra as mulheres é estrutural, o que significa que está inscrita nas instituições, nas normas e pautas culturais que nos passam a ideia de que os homens por natureza têm mais dificuldade em controlar-se, enquanto que as mulheres são naturalmente propensas para a passividade e a submissão. Neste enunciado se encontram patentes os argumentos que desculpabilizam os agressores e que fundamentam a tolerância social em relação a esta forma de violência.
O carácter estrutural da violência contra as mulheres significa que homens e mulheres incorporaram nas suas identidades, na maneira como se vêm a si, nas suas expectativas e modelos de conduta, de que ela é legítima. Por isso é que não se trata de um tipo de violência como os outros, interfere com o mais profundo de cada um de nós e modela a maneira como as instituições responsáveis a gerem. Assim, a denúncia da violência contra as mulheres e particularmente da violência doméstica, requer que se descontruam os mecanismos de poder e o modelo patriarcal que impõe uma masculinidade e feminilidade hegemónicas que incorporam esses valores.
No entanto, hoje em dia, apesar de não ser mais possível ignorar que a violência contra as mulheres, e mais concretamente a violência doméstica, é um problema sério, mercê do trabalho que tem sido feito para a expor e denunciar, é comum encontrar uma série de mitos que tendem a camuflar o problema ou então a minimizá-lo. Estes mitos são ideias ou rumores que, como refere Sporenda (2001), não procuram explicar as condições em que surge a violência, sendo de facto construídos para ocultar os fundamentos sociais e culturais que estão na sua origem, servindo para negar a amplitude do fenómeno. Para além disso, ao propor falsas explicações ao problema, impedem que se ataquem as causas reais e se possa assim operar a mudança.
Alguns destes mitos sobre a violência contra as mulheres e a violência doméstica são bem conhecidos, por exemplo, quando se diz que as mulheres gostam de “apanhar” porque isso é uma prova de amor ou que se há agressão é porque houve provocação. No primeiro caso invoca-se o consentimento das vítimas, enquanto no segundo se estabelece a sua culpa. Por isso, quando estes mitos são usados como contra-argumentos, não trazem novos elementos para a compreensão do problema mas, pelo contrário, tenta-se travar a denúncia crescente das mulheres contra as violências que sofrem por parte dos homens.
É esse o papel que tem um outro mito que se tem difundido ultimamente com alguma regularidade, que diz que a violência no âmbito doméstico tanto ocorre num sentido como noutro, isto é, tanto é perpetuada por homens como por mulheres, caso em que seriam exagerados os esforços que algumas organizações de mulheres têm desenvolvido para denunciar e expor esta forma de violência como um atentado aos direitos humanos das mulheres. Apresenta-se como prova disso os poucos homens que recorrem aos Gabinetes de Atendimento da Mulher e da Criança nas esquadras de polícia.
Em primeiro lugar, deixem os números falar por si: um levantamento dos dados registados nos Gabinetes de Atendimento nas províncias de Maputo e Sofala, que cobriu o período entre Janeiro de 2000 a Novembro de 2003, mostrou que para um total de 2 541 vítimas do sexo feminino, contam-se 846 do sexo masculino (WLSA Moçambique, 2004, resultados de pesquisa publicados no Outras Vozes nº 7). Na verdade, este último número é ainda menor, pois muitas das queixas referiam-se a agressões perpetradas por outros homens, amigos, vizinhos ou até desconhecidos. Portanto, parece difícil de negar que as principais vítimas de violência doméstica são mulheres.
Em segundo lugar, ao analisar as queixas, constata-se que normalmente uma mulher leva em média muitos anos até reunir coragem para denunciar o marido ou o companheiro que a agride. É quando realmente ela já não consegue suportar o crescendo de violência em casa que enfrenta todas as sanções sociais que daí advêm e procura ajuda junto à polícia. Por essa razão, é que se sabe que a maioria das mulheres que sofrem de violência não vêm a público denunciá-la. Com os homens a situação é diferente, a maioria dos processos reportam que sofreram um único incidente que envolveu agressão física antes de procurarem a polícia.
Finalmente, em muitos casos em que as mulheres agridem os seus companheiros fazem-no como autodefesa, em resposta aos maus-tratos que recebem. Ou seja, são normalmente vítimas de violência doméstica que acabam por reagir, e que, em virtude da denúncia, são apresentadas como agressoras.
Há também que ter em conta que a tolerância social em relação aos homens que agridem as suas mulheres não se aplica no caso contrário, do que resulta que a maioria dos casos denunciados por homens são encaminhados para tribunal e posterior aplicação da pena, enquanto que o mesmo não acontece com as denúncias apresentadas por mulheres, que muitas vezes são classificadas como “casos sociais” e não seguem adiante.
Outros argumentam que as mulheres exercem sobretudo violência psicológica e que “fazem a vida negra” aos maridos ou companheiros quando estes chegam a casa depois do serviço. Supõe-se, a partir desta afirmação, que as mulheres, essas, ficaram em casa sem trabalhar e não estão cansadas e que deveriam por isso respeitar quem sai para ganhar o pão que alimenta a família. Em relação a esta posição duas questões se levantam, sendo a primeira de que o homem como “provedor” da família é em si mesmo um outro mito, pois as estatísticas mostram, por exemplo, que são as mulheres a principal força de trabalho da agricultura familiar, o que é o mesmo que dizer que são elas quem alimenta o país. A segunda questão tem a ver com o facto de que a violência psicológica só pode ser exercida por quem tem poder, pois a vítima fica indefesa e sem possibilidade de reagir. Ora, na nossa sociedade em que as relações de género estão construídas de maneira a colocar os homens no pólo dominante, dificilmente se acredita que estes fiquem passivos a aceitar que as suas mulheres ou companheiras os insultem, os humilhem perante os amigos, os controlem, lhe diminuam a auto-estima, etc. O contrário, sim, é real, pois a violência psicológica é o pano de fundo em que ocorrem as agressões físicas contra as mulheres no ambiente doméstico.
Por isso, repetimos, querer defender que a violência doméstica se exerce nos dois sentidos tem por objectivo desqualificar os esforços que se têm feito para a conter, negando que ela constitua um dos mais graves atentados aos direitos humanos das mulheres. É uma tentativa para tentar ocultar que essa forma de violência só é possível porque as mulheres continuam a ser cidadãs de segunda categoria em casa e na sociedade, sem poder para decidirem sobre as suas vidas e sem acesso aos recursos.
Por que é que é preciso uma lei contra actos de violência doméstica
Durante os anos em que decorreu o TCV, as organizações de mulheres implicadas apontaram por várias vezes a necessidade de ter um instrumento legal específico que permitisse criminalizar o agressor, dissuadir outros potenciais agressores e proteger as vítimas de violência. As suas reivindicações fundamentavam-se no reconhecimento de que até aí se tinha menosprezado a real amplitude do fenómeno, que chegava a pôr em perigo a vida de muitas mulheres, mas também na constatação prática de que o actual Código Penal, embora contendo disposições que podem ser úteis, não era suficiente para dar conta das especificidades deste fenómeno.
É este vazio que se espera preencher com a Lei Contra Actos de Violência Doméstica, que significará também um reconhecimento de que a violência doméstica é um problema público, de que o Estado tem responsabilidades sua contenção e, não menos importante, de que se estão a combater as relações de poder desiguais entre homens e mulheres.
A ser aprovada, esta Lei significará a aceitação, na prática, do princípio de que o Estado tem o dever de intervir sempre que houver exclusão e injustiça. E a violência que actualmente se exerce contra as mulheres é um dos factores que mais atentam contra as suas possibilidades de exercício da cidadania e contra o inalienável direito à integridade física.
Referência:
Sporenda, 2001, Mythes justificatifs de la violence masculine, In: Chiennes de garde