Maria, minha ou morta
Verena Stolcke
Publicado em “Outras Vozes”, nº 5, Novembro de 2003
Em Espanha, até esta altura do ano1, dez mulheres já foram assassinadas pelos seus maridos, ex-maridos ou companheiros. A percentagem de mulheres espanholas que se declararam vítimas de maus-tratos domésticos em 2002, registou uma descida insignificante. A violência de género tem lugar em todas as classes sociais e a Espanha não é diferente neste aspecto. Em quase todos os países do mundo a violência doméstica está entre as principais causas de lesões físicas das mulheres. Em alguns deles, inclusive, a maioria das visitas hospitalares de mulheres é devida a agressões sofridas no seio da família. As agressões físicas a mulheres costumam ser acompanhadas de intimidação e de ameaças verbais, abusos emocionais e castigos da parte do agressor, que culpa a própria vítima atribuindo-lhe condutas que desafiam a sua autoridade e controle. Por sua vez, estas agressões abalam a auto-estima e restringem a autonomia das mulheres.
Ao longo da história a violência doméstica tem sido típica de sociedades onde as mulheres têm estado subordinadas aos homens. Certas características estruturais e ideológicas de sociedades hierárquicas propiciam as agressões de género na família. A desigualdade social está associada à desigualdade de género. Em sistemas autoritários em que os homens controlam os recursos primordiais como o dinheiro, a alimentação, a habitação, a educação, eles também controlam o acesso das mulheres e dos(as) filhos(as) aos mesmos. Tais estruturas de domínio masculino são legitimadas mediante ideologias que opõem os homens, tidos como fortes, valentes e justos às mulheres, que por natureza são débeis e pouco de fiar. Portanto, elas dependem da “protecção”, leia-se controle, dos seus homens que as tratam como se fossem sua propriedade pessoal. Se elas se atrevem a contrariar o domínio dos seus homens, é justo que sejam castigadas, inclusive assassinadas.
No entanto, a violência doméstica não é um fenómeno universal. Dispomos de evidência de épocas e de sociedades em que as mulheres não estavam subordinadas aos homens. Em sociedades de caçadores-recolectores, por exemplo, as mulheres eram consideradas iguais aos homens. Estes povos viviam em pequenos grupos nómadas de tamanho variável. Prevalecia uma divisão sexual das tarefas mas esta diferença não implicava desigualdade de género. Como assinalou o antropólogo Marshall Sahlins, as suas escassas necessidades vitais eram satisfeitas com comodidade. O casamento não dotava o marido de autoridade especial e as mulheres podiam dissolvê-lo em caso de desavenças. A autoridade não dependia do sexo mas era atribuída pelo grupo de acordo com as habilidades pessoais e a idade. Mulheres e homens participavam na tomada de decisões em pé de igualdade. Os conflitos eram resolvidos pelo grupo cuja sobrevivência exigia que se evitassem episódios de violência física.
Estas sociedades igualitárias foram vítimas da expansão colonial europeia e da implantação global de uma economia regida pelo capital, com as múltiplas desigualdades que isso implica. Não obstante, estes exemplos etnográficos servem-nos como prova de que o nosso modo de vida competitivo e violento não é inevitável. Se é certo de que graças ao movimento feminista a violência doméstica deixou de ser um problema oculto, também há indícios de que a progressiva emancipação das mulheres intensificou, em certas épocas, a agressividade dos homens.
Nota:
- Escrito em Abril de 2003