Identidades sociais/identidades sexuais: uma análise de género
Conceição Osório
Este artigo tem por base um estudo de caso realizado com jovens em duas escolas secundárias da cidade de Maputo, tendo como objectivo identificar a forma e os meios utilizados pelo modelo cultural, para distinguir e formatar a masculinidade e a feminilidade. Embora a dimensão sexualidade tenha sido a dimensão central da análise, são tidos em conta na pesquisa os elementos que, embora indirectamente relacionados com a sexualidade, nos podem fornecer uma chave para a explicação da permanência da desigualdade de género. Referimo-nos, por exemplo, à distribuição de trabalho na casa, às normas de convivência na família e na escola e aos mecanismos de exclusão das raparigas grávidas da frequência.
Conquanto sobre as identidades sociais intervenham um conjunto de elementos exógenos à dimensão sexual/biológica, esta aparece como referente, o que permite que a sua construção seja um processo que acompanha todo o ciclo de vida. Neste, os papéis e as funções que as pessoas foram assumindo/adquirindo e as componentes referentes à sexualidade são determinantes para a integração social dos actores. Esta integração realiza-se pela partilha e adesão aos valores que constituem o fundamento do modelo social. Sendo este organizado e estruturado pela diferença sexual é sobre esta que se elabora e naturaliza a desigualdade entre homens e mulheres. Como a história largamente o demonstra, embora a dominação masculina seja realizada através de múltiplos instrumentos e meios de referência, o corpo e as diferenças anatómicas entre os seres humanos são o texto de cultura que expressa, por excelência, o modelo que subalterniza as experiências e as vidas das mulheres (Foucault, 1987).
Os estudos de Foucault, ao centrarem a análise da sexualidade “nos saberes que sobre ela se elaboram, dos sistemas de poder que regulam a sua prática e das formas segundo as quais os indivíduos podem e devem reconhecer-se como sujeitos dessa sexualidade” (Foucault, 1986: 8), vão permitir, ao questionar a visão estática do fenómeno, a inauguração de uma linha de pesquisa que confere à sexualidade um papel central para compreensão das identidades. Esta abordagem, pondo a nu sistemas de dominação anteriormente ocultos pela concepção naturalista da organização social, nomeadamente da reprodução, não só relaciona campos tão diversos como o político, o cultural e o económico, como revoluciona as teorias do poder. Este passa a ser constitutivo dos espaços onde se elaboram normas e práticas de controle social que, visando a manutenção da ordem ou a apropriação positiva das desordens, tem na sexualidade uma dimensão central (Foucault, 1986).
No contexto actual da luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, é interessante destacar o aparecimento nas sociedades contemporâneas de novos mecanismos de controle da sexualidade feminina. Por exemplo, em Moçambique, se nas sociedades rurais é ainda clara a relação entre sexualidade e reprodução (a ausência de relações sexuais durante a amamentação pressupõe a negação da sexualidade da mulher como sujeito), nas zonas urbanas a função materna do corpo da mulher reveste-se de um grande valor simbólico: as mulheres, tendo mais possibilidades de domínio sobre o seu próprio corpo, seja através do controlo da natalidade, planeamento familiar ou aborto clandestino, podem teoricamente deixar de ser condicionadas pelo ciclo de vida que as constrange à maternidade; no entanto, esta continua a ser o atributo central da identidade feminina.
A questão da legitimação do exercício da sexualidade através da maternidade (que dá utilidade social ao corpo feminino) remete-nos mais uma vez para a importância material e simbólica da fertilidade como factor de reprodução social, reprodução social esta que se faz pelo poder exercido no e pelo corpo das mulheres: o silêncio sobre sexualidade revela, na realidade, um ruído ensurdecedor sobre a dominação de género. Por exemplo, no caso de Moçambique, a fertilidade/infertilidade são critérios que classificam não apenas uma situação de ordem biológica mas constituem um elemento fundamental do modo como o poder se exerce. Em torno deste binómio (fertilidade/infertilidade) produz-se um discurso de sanções e de permissões (as mulheres depois da menopausa podem falar/transmitir os saberes “sexuados”), reveladores de uma representação em que se nega às mulheres, fora do contexto permitido pelo modelo cultural, o exercício da sexualidade.
E é deste ponto de vista, em que a sexualidade se articula com poder que se afirma que o corpo das mulheres é um espelho onde se inscrevem os elementos da dominação, mas também os da contra dominação, na medida em que “o corpo das mulheres é um corpo sujeito, porque se a subalternidade tem fundamento nos seus próprios corpos (corpo para o outro), é neles e na sua sexualidade onde reside o núcleo dos seus poderes” (Lagarde, 1997: 11).
Família(s): valores aprendidos e apropriados
Retomando os resultados da pesquisa a primeira questão que se nos coloca é que, no que respeita à socialização na família, não existe, como o senso comum (a respeito dos “valores familiares”) reconhece, saberes que permitam definir com clareza as expectativas dos pais relativamente ao “bom comportamento” dos jovens. Significa que há, como constatamos pela análise das entrevistas, a coabitação dos chamados valores tradicionais veiculados pelas/nas famílias com o aparecimento de novos atributos que simultaneamente classificam, orientam e controlam os jovens. Ficou evidente que, ao contrário do que pensávamos e outros estudos indiciavam (WLSA, 1998) os factores da modernidade, não apenas influenciaram a contracção das famílias (tanto do ponto de vista da organização material, como da representação simbólica), mas permitiram o surgimento de novas formas, como é o caso de famílias monoparentais ou constituídas por tios, cunhados e primos. Assim não podemos hoje falar nem de famílias alargadas (pois incluem uma variedade de laços e relações que escapam à lógica do agrupamento familiar tradicional) nem de famílias de pais e filhos. Desta situação podemos retirar duas consequências: a primeira é que a inexistência das hierarquizações fixas, que tem a sua correspondência nalguma precariedade das relações sociais no seio da família, vai permitir a erosão dos antigos modelos de referência. A segunda consequência é que esta instabilidade favorece, por um lado, a procura e a inserção dos jovens em outros meios de pertença e, por outro lado, caracteriza os processos de construção das identidades como uma “fugacidade da sedimentação identitária” (Laire, 2001:5).
A segunda questão tem a ver com a maneira como na instabilidade de valores e de aprendizagens, se organizam as relações sociais de género na família, isto é, se a estrutura de dominação masculina é também abalada pela desestruturação dos valores, quais as possibilidades de ruptura com os antigos mecanismos de subalternização das jovens, quais os elementos que permanecem ou ganham novos contornos e finalmente quais os que podem indiciar novos modelos de socialização. Portanto, e face à variedade das formas de família, e esta afirmação é válida para as jovens (mais novas e mais velhas) das duas escolas, quais são os mecanismos de socialização familiar e como se impõem e são apropriados pelas raparigas?
Tal como já se afirmou, neste trabalho, e considerando a impossibilidade de encontrar generalizações, tomámos como unidades a família e a escola e como dimensões a divisão do trabalho (e a “cultura de género” por ela revelada) e a construção da sexualidade. Através destas unidades e dimensões procurámos desvendar tanto nos meios materiais utilizados como nas suas implicações simbólicas, a construção de identidades orientadas pelo sexo e construídas pelo género.
Relativamente à divisão de trabalho no espaço doméstico foram encontradas três tendências: uma, minoritária, que corresponde a uma realidade urbana num contexto de escolas públicas mais prestigiadas, onde sendo possível encontrar famílias com maior capacidade económica, assalariados substituem os membros da família no trabalho doméstico. Uma segunda em que a divisão de trabalho é partilhada, em certas condições, pelos dois sexos e uma terceira (raparigas mais velhas da 8ª e 10ª classes) em que cabe às raparigas a realização das principais actividades domésticas. Nesta tendência, a naturalização da divisão de trabalho por parte das meninas é suportada por um discurso paterno que ao mesmo tempo que veicula uma representação tradicional dos papéis de homem e de mulher, retira às raparigas a responsabilidade da sua vida e o controle das decisões. Isto é demonstrado nas diferenças de concepção de liberdade para as filhas e para os filhos. Para a maioria das famílias, embora utilizando argumentos de sinal contrário, as raparigas continuam a protagonizar uma fragilidade que não vem apenas da sua vulnerabilidade física mas principalmente de uma representação das mulheres como mais descontroladas e disponíveis às influências externas. Esta situação é agravada quando as raparigas presenciam ou presenciaram actos de violência exercidos sistematicamente sobre as suas mães. Em casos destes, sem terem estratégias de defesa psicológica, as meninas sofrem pelas mães, sofrem porque não compreendem, sofrem por impotência, num jogo em que aprendem a revolta, mas também a vergonha e a ”inevitabilidade” da sua condição: “a minha mãe estava a fazer um exame, na sala de exame, o meu pai chega e não a deixou acabar o exame, foi muito triste, ele foi à sala de exame. (…) Não sei porquê. (…) Ele também batia, batia muito à noite, chutava e eu, eu ouvia” (8ª classe, 12 anos).
No contexto em que todos trabalham na casa, as percepções sobre as tarefas domésticas realizadas pelos rapazes é variada. Se para algumas é normal a divisão igual do trabalho, para outras a partilha do trabalho é muitas vezes objecto de culpabilização por parte das jovens que entendem como ajuda e favor o trabalho doméstico realizado pelos rapazes. A eficácia deste modelo é tanto mais surpreendente se tivermos em conta que estamos a referir-nos a jovens que frequentam o segundo ciclo de ensino secundário, expostas a uma série de valores transmitidos pelas mais diversas fontes e sendo de supor a valorização pelas famílias, do progresso escolar das raparigas.
A divisão sexual do trabalho em casa não é apenas um meio de socialização em desigualdade de rapazes e raparigas, mas também, configura, e desde muito cedo, os papéis sociais de mulheres e homens, “organizando” formas de discriminação mais vastas e profundas, que vão desde ao que se come (“a perna de frango”) até ao que se permite. A carga simbólica que a divisão de trabalho comporta é inter-geracional e projecta na realidade um sentido identitário para rapazes e raparigas. Num processo de imitação das mães, tias e avós, as raparigas aprendem, por um lado, a responder às expectativas mas, por outro lado, a exposição e a inclusão em outros meios de pertença e referência permite-lhes renovar as identidades. A este fenómeno não é alheio o contexto da modernidade que leva os adultos a projectarem sobre si próprios uma imagem mais permissiva. Se a fluidez na construção das identidades dos jovens é comum a raparigas e rapazes, é certo que são infinitamente grandes os conflitos vividos pelas jovens entre estruturas e modelos de socialização.
No que respeita à aprendizagem sobre o corpo, tomámos como ponto de partida que a sexualidade não apenas informa sobre as relações sociais, como é ela própria resultado de uma estruturação social orientada por uma desigual distribuição do poder entre mulheres e homens. Por esta razão o género é o sexo social, quer dizer, é o sexo na sua relação consigo e com os outros. No estudo que realizamos constatámos que durante os primeiros anos de vida e até à adolescência o(s) processo(s) de socialização vão “sexuando” o corpo, no sentido em que o valor que lhe é atribuído e o controle que sobre ele é exercido são realizados em função de um normativo conforme ao modelo social. É a situação, por exemplo, da divisão do trabalho doméstico e da construção da domesticidade já anteriormente analisadas.
Segundo a maioria das jovens entrevistadas, a sexualidade enquanto representação e prática, está presente na família através dos silêncios, dos rumores sugestivos, das vozes que se calam repentinamente e dos media que invadem e por vezes perturbam os silêncios. Pertencendo ao campo do não falado, o sexo com os seus atributos de ordem cultural e social, transforma-se desde as primeiras verbalizações infantis, em dispositivos que normalizam o pensamento e os comportamentos. Significa que a sexualidade não sendo a única dimensão da identidade, é a que melhor permite compreender os mecanismos que transformam machos e fêmeas em homens e mulheres.
No caso da nossa pesquisa, o desconhecimento e o medo revelado por muitas jovens (particularmente as mais velhas) na primeira menstruação, podem explicar-se pela ausência de articulação dos saberes transmitidos na escola (lembramos que estamos a falar de jovens entre o 8º e o 10º nível de escolaridade) sobre a anatomia e a fisiologia do corpo, com a realidade e as experiências das jovens. Esta situação denuncia não apenas ignorância, mas também e principalmente uma concepção de que a ignorância é um valor, um requisito e um atributo das raparigas exemplares. Uma jovem que sabe demais e sabe demais sobre o núcleo central da sua identidade constitui uma ameaça para a ordem e para os agentes encarregados de a controlar. É neste sentido que se explicam os estereótipos construídos sobre o comportamento sexual das raparigas hoje em Moçambique e são desenvolvidas, pelas raparigas, estratégias de ocultação dos seus afectos e desejos. A normatividade da sexualidade, é suportada por crenças (“não comer ovos”, “não beber no mesmo copo com os rapazes”, “não deixar bater nas costas”) que visam submeter a sexualidade feminina: a exclusão da convivência das conversas “sérias” entre raparigas que já viveram o rito de passagem para a idade adulta mostra a construção de uma moral sexual assente na preservação (enquanto guardiã) da rapariga para o outro. Isto significa que a sexualidade feminina não existindo em si, é, no entanto o campo onde se disputa, se manipula e se legitima a dominação social. Os conselhos transmitidos por algumas mães (“ter cuidado com as mulheres que ainda não menstruaram porque elas vão dizer você está pronta (…) é melhor afastar” – 10ª classe, 17 anos) chancelam, na realidade, a maternidade (no sentido mais amplo de serviço) como destino feminino. Ligado a este aspecto, está a noção de virgindade, que embora pouco comentada na pesquisa, aparece também como subjacente à construção da feminilidade.
O que fica evidente quando se analisa a construção da sexualidade feminina na família é, em primeiro lugar, a impossibilidade de fazer generalizações. Se era comum na geração anterior (devido à situação económica dos pais ou às distâncias entre os locais de origem e as escolas secundárias), a inclusão, nas famílias da cidade de Maputo, de jovens parentes, este facto não assumia os actuais contornos de violência, tanto para as famílias de origem, como para as novas (e principalmente para os jovens), dado que os padrões de comportamento estavam suficientemente definidos e clarificados. Hoje as famílias sofrem um processo de recomposição e estruturação, que vem da constituição de novas formas de união e de trocas/reciprocidades entre as pessoas, levando a que a apropriação e a construção das identidades juvenis seja feita num processo de permanentes rupturas e confrontos entre a exposição a valores e práticas muito conflituais.
Se projectarmos esta reflexão para a sexualidade, ficam evidentes as dificuldades de identificar as mudanças havidas, os factores e a natureza dessas mudanças e o seu efeito sobre a construção de novas sexualidades. O que procuramos mostrar é que o surgimento de indícios de alteração das identidades juvenis combina-se, muitas vezes de forma aparentemente incoerente, com os mecanismos de controlo sobre o corpo provindos do modelo anterior. Se quisermos utilizar a terminologia da teoria do conhecimento kuhniana, diríamos que estamos no campo do “extraordinário”, no sentido em que o antigo permanecendo como paradigma dominante, se vê confrontado com novas propostas de olhar e viver o mundo1.
A escola como lugar de desordem?
No que diz respeito às compatibilizações com a aprendizagem na escola, partimos do pressuposto de que a escola ao mesmo tempo que reproduz a ordem social, é produtora de valores e normas que, actuando sobre cada um dos seus membros, transmite novos padrões de socialização. A aprendizagem não apenas se distingue devido ao seu conteúdo, rituais e disciplina e formas de hierarquização específicas, mas projecta conflitos sobre os outros meios de pertença, como a família. Isto é, na escola os mecanismos que preparam a criança para a vida adulta são orientados por códigos culturais que lhes moldam as identidades. Face à família a escola reflecte mas também constrói a realidade numa lógica de complementaridade, mas também de confronto, em que novos elementos de coesão social substituem ou coexistem com os transmitidos por outros meios.
Neste trabalho, procurámos analisar a apropriação feita pelas alunas dos códigos culturais escolares, nomeadamente, a construção de novas percepções sobre a sexualidade, através da informação/conhecimento aprendido, na sala de aula, nos grupos de amigos e nas associações juvenis a actuar nas escolas. A violência produzida no meio escolar, e as representações da culpa e das sanções mereceram também particular atenção, por aquilo que pode revelar, de anomia social, por um lado, ou/e de novas formas de configurar o poder masculino, por outro.
Gostaríamos de referir em primeiro lugar, que embora aparentemente a idade e o sucesso escolar não se tenham comportado como variáveis importantes para a construção dos discursos das raparigas sobre as aprendizagens transmitidas nas famílias, há, entre as mais jovens (12 anos, que frequentam a 8ª classe), uma maior contestação aos valores familiares e uma maior procura de inserção, pelo menos através dos seus discursos, nos grupos formados na escola ou fora dela: “eu falo com as minhas amigas sobre como evitar a gravidez e mesmo na igreja falam. (…) Não dizem só para não andar com homens” (9ª classe, 13 anos). O diálogo “sobre todos os assuntos” com alguns professores e principalmente com jovens do mesmo grupo etário contribui para a formação de novos elementos de coesão, que se reflectem nos gostos pelas mesmas roupas, músicas e linguagem. No entanto, a aprendizagem sobre sexualidade que se faz, aparentemente com mais liberdade, continua a ser orientada pelas disposições que integram os papéis das mulheres, tendo ficado claro, por exemplo, a utilização do preservativo apenas com o objectivo de evitar a gravidez. Poucas referências são feitas (e assumidas) à utilização do preservativo nas relações sexuais, como forma de manter um saudável exercício da sexualidade, o que pode significar uma representação negativa das raparigas que ousam falar sobre sexo, sem o reduzir ao papel reprodutivo. As referências à utilização ou não do preservativo são quase sempre associadas ao acordo com os parceiros e às relações não permanentes, sendo que em qualquer dos casos, poucas raparigas afirmam ter capacidade e, principalmente (querer ter) capacidade de negociação. Por outro lado, o conhecimento sobre anticoncepção que poderia ser ensinado nas aulas sobre reprodução humana na disciplina de Biologia, é completamente silenciada. Os professores referem-se à reprodução da fauna e da flora mas relativamente ao corpo humano, limitam-se a transmitir um conhecimento técnico e árido.
Isto significa que se a escola é para a todas as jovens um lugar de oportunidades para ser “alguém”, ter uma profissão e um trabalho, em termos de conteúdos curriculares e de relação professor-aluno, a sua acção sobre as identidades é muito ambígua. Se o conteúdo, as formas de hierarquização escolar e os rituais questionam por si só as formas de organização dos papéis na família, os saberes transmitidos e os agentes da aprendizagem escolar não se constituem como mediadores da mudança identitária. Esta situação deve-se em parte à precariedade da situação do professor, mas principalmente ao facto de viverem em conflito diferentes formas de socialização. O vazio e as tensões provocadas pela coabitação entre contraditórias finalidades e funções dos vários meios de pertença, conduz a uma certa anomia, que tanto pode exprimir-se em acções autoritárias dos professores como em indiferença pela aprendizagem e educação dos jovens.
A complacência por parte da instituição escolar com o assédio sexual e a chantagem sobre as alunas pode ser vista como um exemplo da perda de sentido da escola como instituição que cumpre uma ordem social, mas também deve ser analisada como desregulamento social ao conferir de forma extraordinariamente violenta e anómica, “utilidade” ao corpo das raparigas. Constata-se, contudo, que algumas associações juvenis constituídas por estudantes e professores fazem um esforço para introduzir, embora sem muito êxito face à indiferença das direcções das escolas, um debate sobre as relações sociais entre jovens, a sexualidade e o envolvimento dos jovens na vida da escola. A eficácia destas acções, reconhecidas como positivas pelas entrevistadas, tem sido limitada pela ausência de planificação e financiamento. Pelo trabalho realizado nas duas escolas secundárias da cidade de Maputo, constatou-se que as autoridades responsáveis consideram estas actividades como extracurriculares, não apenas no sentido do tempo e dos espaços da sua realização, mas apenas como ocupação dos tempos livres. Isto provoca uma hierarquização dos saberes e dos comportamentos apenas em função das normas estritamente instrutoras, não contribuindo claramente para a formação para a vida.
Relativamente à violência produzida na escola, as alunas identificam como principais formas de violência, a violência sexual e os insultos dirigidos à sua condição de mulheres: “vaca é um insulto grande porque vaca é aquela rapariga que cede aos namorados, faz coisas diferentes” (8ª classe, 12 anos). A violência física entre namorados é, de algum modo, justificada por ciúmes ou porque a rapariga tem vários parceiros, ou porque não quer ter relações sexuais, responsabilizando-se implicitamente as jovens por esta situação. O acordo implícito com a violência evidencia uma certa conformação, por parte das alunas, com os papéis sociais que conformam a mulher como “propriedade” masculina e com a noção de uma virilidade masculina descontrolada. Nesta ordem de ideias um número importante de jovens associa a violação das jovens à sua maneira de vestir: “elas usam roupas curtas. (…) Elas também provocam, os homens não são de ferro” (9ª classe 14 anos) e: “agora está mais na moda as calças txuma baybe2, saínhas e blusinhas, então os homens ficam com mais desejo de agarrar as pessoas” (8ª classe, 13 anos). Estes mesmos argumentos são utilizados quando se questionou as entrevistadas sobre a violação sexual entre namorados: “eu penso que uma mulher só é violada quando quer. (…) Quando está a ser forçada, há outras que deixam. (…) Mas então elas chama de violação, mas ela é parte dessa violação. (…) Devia ser como na África do Sul que quando uma mulher está mal vestida e ela é violada ela é que tem culpa” (9ª classe, 14 anos). A questão da moda foi objecto de muita discussão por parte das jovens, sendo que a maior parte opina que embora não se deva classificar as pessoas pelo que vestem, deve haver limites impostos pelos lugares e pelas pessoas que as acompanham. É interessante constatar que a maneira de vestir (“quase sem roupa”) sendo claramente uma forma de identificação com as “novas tribos” (Maffesoli, 1995), é também representada pelas jovens, porventura devido à censura social, como uma transgressão.
A violência sexual exercida pelos professores e expressa no assédio e na violação, tem a ver com a invisibilidade social da sexualidade feminina que permite a culpabilização e o silenciamento pelas e das vítimas e a impunidade dos abusadores. Dando inúmeros exemplos as jovens entrevistadas dizem conhecer casos de alunas que foram sujeitas a assédio sexual, algumas delas tendo engravidado. É interessante constatar, por um lado, o “desconhecimento” das famílias e dos professores das situações de assédio sexual (quando não há gravidez) e, por outro lado, a existência de um discurso prolixo em detalhes sobre situações de violência sexual: “há um professor que disse logo que eu não quero dinheiro. Eu quero outra coisa que tu tens” (8ª classe, 13 anos). Do mesmo modo, as jovens identificaram casos de tentativas mal sucedidas de assédio, que depois de denunciadas na direcção das escolas continuam encobertos, permitindo a continuação da impunidade. Mas a maioria das jovens não ousa apresentar queixa, por medo e porque o assédio é um processo longo, contínuo e em si muito violento. Face à quantidade de casos de assédio dos professores, muitas vezes acompanhados de perseguição fora da escola e de violência física e violação, a acção das autoridades da educação é demasiada tímida e complacente. Colocando a ênfase no combate à corrupção com dinheiro, o sector desclassifica, mesmo que só simbolicamente, a chantagem sexual e a violência de género. A não intervenção das instituições na punição dos prevaricadores persegue a ideia de normalidade do assédio dos homens sobre as mulheres e mais uma vez reforça e configura o poder masculino. A argumentação de que são precisas denúncias para actuar significa na realidade conivência com o abuso perpetrado e encoraja a permanência de discriminação, reforçando a concepção da escola como um lugar de “perigo”para as mulheres, não porque ensina os saberes da igualdade, mas porque lhes marca o destino de submissão.
É possível falar em mudança?
Finalmente, gostaríamos de referir alguns elementos de mudança na construção das identidades juvenis. A complexidade cultural que se expressa hoje, em Moçambique, na multiplicação de referências contraditórias, não permite a identificação explícita da adesão dos jovens a conjuntos coesos de valores e práticas. Os discursos expressam as contradições entre meios e agentes de socialização, variando entre a conformação com a educação que tradicionalmente é veiculada nas famílias e a revolta e contestação reveladas nos discursos entre pares (em termos de idade e de condição). Se este é um processo desde sempre marcado pela fluidez própria à construção das identidades juvenis, a ocorrência de novos fenómenos na modernidade permite que ao falarmos da transição para a idade adulta, a relação entre os novos e os antigos padrões (modelos de referência) assumam perante os jovens um carácter muito mais difuso.
No que se refere ao futuro as raparigas, na sua maioria, representam-se como independentes, trabalhadoras e corajosas, projectando-se a maioria pela negação das figuras familiares. As jovens, mesmo quando afirmam identificarem-se com as mães, é sempre no sentido de superar as dificuldades por elas vividas, nomeadamente a violência conjugal e a dependência económica. Por outro lado, grande parte das entrevistadas embora vejam na maternidade o culminar de um percurso de sucesso, rejeitam o actual modelo de família, propondo-se a partilha do trabalho e das responsabilidades com o parceiro. A relação com os filhos constitui no entanto a estrutura da mudança: o diálogo e a troca de experiências surgem como a chave da família ideal, em contraponto ao autoritarismo, a quem responsabilizam pela “vulnerabilidade” ao abuso e violência sexual perpetrados na escola.
As mudanças na estrutura e nos elementos de coesão familiar, nomeadamente na divisão de trabalho, na possibilidade de escolha e na maior liberdade, têm contribuído, por um lado, para diminuir os níveis de conflitualidade e, por outro, para sedimentar a auto-estima e aumentar a capacidade de apropriar, sem violentas rupturas, os mecanismos de adesão aos novos grupos. Por outro lado, a importância conferida por alguns pais à continuação dos estudos, manifesta na preocupação com os resultados escolares e com o tempo disponível para tal (em desfavor do trabalho doméstico), é associada pelas raparigas menos a direitos do que à bondade dos adultos. Uma das razões encontradas para esta situação continua ser a ambiguidade existente entre socializações diferenciadas e uma representação dominante da mulher como não sujeito.
Relativamente às relações com os rapazes, algumas raparigas (particularmente aquelas que militam em associações de saúde sexual e reprodutiva) questionaram o poder de decisão dos namorados sobre o seu corpo e a contrapartida em bens, isto é, começa a surgir uma posição que, embora ainda de forma muito minoritária, defende a conquista da igualdade pelas próprias jovens, impondo regras de jogo, que vão desde a não aceitação de prendas em troca de favores sexuais até à negação da relação sexual, independentemente da utilização do preservativo. Interessante que a questão das ofertas dos namorados (mesmo de idades aproximadas) aparece recorrentemente em todos os discursos, sendo (embora prática aceite por uns e por outras) sempre negativamente representada. Curiosamente e associada à adesão à moda juvenil (que é um mecanismo de inclusão no grupo de jovens) surge uma concepção de que o uso de roupas “indecentes” é uma estratégia de sedução feminina fundada na representação de negociação do corpo como objecto.
O casamento, embora constituindo-se como meta desejável e aparecendo como resultado de uma certa recompensa social para o “bom” comportamento das raparigas (com o seu cortejo de filhos, casa e bens), é também objecto de uma nova concepção: “eu quero ser independente. (…) Eu quero casar mas quero ser diferente. (…) A minha tia agora ganha muito dinheiro mas ela manda no marido. (…) Ela sustenta a casa e manda. (…) Eu não, eu quero que o meu marido faça parte da casa. (…) Mas eu também não quero depender dele” (8ª classe, 16 anos). É curioso constatar que esta nova percepção do casamento corresponde a um ideal de vida que tem a independência económica como elemento central, em oposição à situação das mulheres das famílias das jovens, onde quase sempre a falta de acesso aos bens é determinante na organização do poder familiar. Por influência da escola que as individualiza (mesmo que de forma violenta) e possivelmente também devido às novelas televisivas (cujas personagens são classificadas em função da sua capacidade de agir sobre realidades adversas), as jovens incorporam nas suas identidades novos elementos de coesão. Nesta ordem de valores e também por contraste com realidade familiar e a vivida nos grupos de amigas, a fidelidade no casamento é ancorada no diálogo, na honestidade e no reconhecimento do parceiro como pessoa: “eu quero amor. (…) Mas para mim amor é respeito. (…) Se uma coisa não agradar, a pessoa deve dizer. (…) Eu acho que o sentimento não se divide” (8ª classe, 15 anos).
A circulação entre espaços, entre meios e entre agentes tem a sua correspondência na flutuação entre valores e práticas, isto é, a adesão aos grupos é efémera e transitória, fornecendo cada um deles representações e normas que se vão constantemente renovando. A apropriação pelos jovens dos novos elementos em conflito ou não com os antigos factores de coesão provoca a coexistência de discursos contraditórios que revelam interpretações e reinterpretações diferenciadas da vida e do mundo.
Relativamente às relações sociais de género, a exposição a permanentes oposições produzidas nos meios de pertença, incluindo o confronto entre individualização fornecida pela escola e a colectivização pela família, pode potenciar o questionamento da dominação masculina. O que se constata neste trabalho é que a mudança na linguagem, que exprime na realidade a rejeição dos modelos tradicionais de organização familiar (o trabalho, o valor do estudo), não permite ainda que se identifique um padrão normativo que altere o sentido profundo da subalternidade feminina e deixou em aberto uma série de questões, que permitam conhecer melhor a identificação das componentes e dos mecanismos de agregação nos vários espaços (família, amigos, associações, escolas e outros), destacando-se os elementos de ruptura que possam constituir novas tendências.
- Para mais informação da obra de Thomas Kuhn destaca-se entre outras “A estrutura das Revoluções Científicas”.
- Txuma baybe são calças jeans, de cintura baixa, muito apertadas e de baixo preço. Txuma significa tornar as raparigas irresistíveis.
Referências Bibliográficas:
FOUCAULT, Michel (1986), História da Sexualidade, vol. I. Rio de Janeiro: Graal.
FOUCAULT, Michel (1987), História da Sexualidade, vol. II. Lisboa: Gradiva.
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LARGADE, Marcela (1997), La sexualidad in Los cautiverios de las mujeres: madreposas, monjas, putas, presas y locas.- México, UNAM. pp. 177-211
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