Feminismo e direitos humanos das mulheres1
Isabel Casimiro
Movimentos Feministas e Organizações de Mulheres em Moçambique
Em Moçambique crescem as vozes que reagem contra a agudização das desigualdades sociais, a polarização dos rendimentos, as guerras, a corrupção e a falta de transparência, a crise ecológica, a discriminação com base no sexo, na cor da pele, na religião, na etnia, em suma, contra o futuro ameaçado para as novas gerações.
A questão da integração social – mais justiça e igualdade, mais bem-estar material, mais liberdades democráticas, mais informação, maior igualdade de oportunidades e de direitos para todas e todos – é sentida também em Moçambique. Não se iludam os que pensam que não, só porque não a vêem expressa. Integração social deve entender-se como solidariedade, interdependência, respeito pela diversidade cultural, tolerância pelos estilos de vida diferentes, valorização dos sistemas democráticos e participativos.
Investigadores e intervenientes dos tempos actuais, ao questionarem as alternativas ao nosso quotidiano, apontam como potencialmente emancipatórios, os feitos não realizados e as alternativas silenciadas do Sul, em relação ao projecto universalizante de desenvolvimento. Corinne Kumar-D’Souza fala no “Sul como as visões das mulheres; o Sul como a descoberta de novos paradigmas… procurando uma nova linguagem para descrever o que se percebe… o Sul como a recuperação de outras cosmologias, como a descoberta de outros conhecimentos que foram escondidos, submersos, silenciados. O Sul como uma ‘insurreição dos conhecimentos subjugados’ em qualquer parte onde possam existir”. Este olhar sobre o não deixado existir, seria no sentido de completar um dos pilares fundamentais da modernidade, o da libertação, preterido, desde o séc. XVI, pelo da modernização tecnológica.
A perspectiva de lutar pela libertação da mulher tem estado presente em épocas diferentes e distintas da história da humanidade. Como movimento social, o Feminismo surge em finais do século XIX, revelando uma vontade colectiva de lutar contra a opressão específica experimentada pelas mulheres. Partilhando duma mesma vontade de lutar contra a opressão e discriminação das mulheres, os Movimentos Feministas espalharam-se pelo mundo e foram desenvolvendo tendências diversas, mas com um mesmo objectivo – lutar contra a opressão específica vivida pelas mulheres, apenas pelo facto de serem mulheres.
Também em Moçambique se luta pelo direito a uma existência humana e digna cuja base são melhores condições de vida. Nesta região de África, o individualismo do projecto neo-liberal ainda não corroeu totalmente as relações individuais e colectivas entre os cidadãos. Persistem ainda formas de solidariedade, de ajuda mútua, de resistência passiva. Formas, muitas vezes, e silenciosamente, guardadas e preservadas pelas mulheres.
Desde finais dos anos 80, mas, sobretudo a partir dos anos 90, o nosso país conheceu uma explosão de associações voluntárias não governamentais. A sua criação, especialmente depois da aprovação da segunda Constituição em Novembro de 1990, que consagra o direito à associação, no seu artigo 76, e da aprovação da Lei 8/91 sobre a liberdade de associação, está relacionada com vários aspectos da história que têm caracterizado Moçambique, sobretudo no decurso das últimas quatro décadas. Mas também com o conjunto de mudanças sócio-económicas que ocorreram com o triunfo das políticas neo-liberais no Ocidente e a sua imposição aos países da periferia do sistema-mundo, muitas vezes via transições democráticas e programas de ajustamento estrutural, que tentavam e continuam a tentar debilitar o Estado, apresentando o Mercado como um novo Deus.
As organizações de mulheres de tipo voluntário, fora das redes domésticas ou familiares (ainda que persistam relações entre umas e outras), são das primeiras a surgir, a partir de finais da década de 80: AMODEFA (Associação Moçambicana para a Defesa da Família), 1989; ACTIVA (Associação das Mulheres Empresárias e Executivas), 1990; AMRU (Associação da Mulher Rural), 1991; ADOCA (Associação das Donas de Casa), 1992; MULEIDE (Mulher, Lei e Desenvolvimento), 1991; e Fórum Mulher – Coordenação para Mulher no Desenvolvimento, 1993.
A MULEIDE foi a primeira organização de direitos humanos das mulheres criada em Moçambique. Seguiram-se o Fórum Mulher, a Associação das Mulheres de Carreira Jurídica, a Associação Moçambicana Mulher e Educação, entre muitas outras.
Analisemos esta primeira organização para os direitos humanos das mulheres, a MULEIDE, cuja criação resultou de esforços nacionais e regionais combinados, a partir de inícios da década de 90, envolvendo juristas dos diversos sectores da administração da justiça e cientistas sociais ligados ao Departamento de Estudos da Mulher e Género, do Centro de Estudos Africanos da UEM.
O surgimento em 1990, em Harare, da WILDAF (Women in Law for the Development in Africa), uma organização Africana para a defesa dos direitos das mulheres e da WLSA (Women and Law in Southern Africa Research Trust), um projecto de investigação regional e comparativo, envolvendo inicialmente seis países da região austral de África2, foram factores que impulsionaram mais tarde a criação da MULEIDE. Juristas e cientistas sociais moçambicanas, preocupadas com os direitos humanos das mulheres, participaram nas duas organizações Africanas desde a sua criação. O Projecto WLSA e outros projectos de pesquisa em Moçambique desencadearam, na década de 90, uma série de actividades de investigação participativa, que propiciaram debates sobre os direitos humanos das mulheres, sobre as dinâmicas sociais e as relações de género, sobre os movimentos feministas e de mulheres e também sobre a produção de conhecimento nacional. Este processo acabou igualmente por originar o surgimento de outras associações de mulheres, grande parte delas hoje parte integrante da rede de organizações Fórum Mulher.
Violência Doméstica como violação dos Direitos Humanos das Mulheres
As actividades da MULEIDE iniciaram na cidade de Maputo, no bairro Benfica, Distrito Urbano V, com a formação e actuação de activistas e assistentes sociais, na área de prevenção das DTS e HIV/SIDA, Educação Legal, Educação sobre Direitos Humanos e aconselhamento e acompanhamento das vítimas de violência doméstica. O Bairro Benfica foi, desde 1990, uma das áreas de estudo do projecto de pesquisa WLSA. Esta aproximação entre a WLSA – Projecto de pesquisa académica – e a MULEIDE – associação da sociedade civil – está desde o início na base do sucesso de ambas as organizações.
A combinação investigação/acção permitiu identificar os obstáculos, ou simples dificuldades, das mulheres no exercício dos seus direitos e na realização de acções, a nível local e das instituições da administração da justiça. As primeiras actividades da MULEIDE, com base nos resultados da investigação do projecto WLSA, foram o registo de nascimentos e de casamentos em conjunto com instituições da justiça, com o objectivo de garantir, quando necessário, o Direito a Alimentos e o Direito de Sucessão e Herança3.
A participação da MULEIDE no Grupo “Todos Contra a Violência”, surgido após a Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, em Beijing 1995, o seu trabalho conjunto com associações congéneres na divulgação dos direitos das mulheres, na assistência jurídica aos mais desfavorecidos e na participação da revogação e elaboração de novas leis, tem permitido colocar em evidência as questões legais que afectam os diferentes grupos de mulheres e tem sido um indicador para a realização de diversas acções com vista à sua resolução.
De realçar a sua participação, ao nível do Fórum Mulher, na discussão da “Declaração de Princípios contra os Actos de Violência Doméstica”, apresentada publicamente a 4 de Outubro de 2000, em Maputo, aquando da Marcha Mundial das Mulheres contra a Pobreza e a Violência; num grupo de trabalho para a elaboração duma lei contra os actos de violência doméstica; e na discussão da Lei de Família, recentemente aprovada, na generalidade, pela Assembleia da República, depois de anos de espera.
É importante continuar “a subir a corda”
Para quem teve o privilégio de participar na criação do Departamento de Estudos da Mulher e Género, do Projecto de Pesquisa WLSA, da MULEIDE e do Fórum Mulher, no início da década de 90, os desafios eram enormes, até porque poucas de nós acreditávamos nestas alternativas. Mas valeu a pena!
Passados mais de 10 anos, produziu-se conhecimento nacional com base na investigação realizada, dialogou-se com diversos quadrantes da sociedade, trabalhou-se no melhoramento das condições de vida das pessoas, desenvolveram-se novas problemáticas, enfrentaram-se tabus…
E se uma década é muito pouco na vida duma organização, o que parece importante reter é que, durante este breve tempo, foram surgindo expressões de solidariedade, possibilidades e espaços de trabalho, de estudo e reflexão, de diálogo entre sensibilidades diversas, de produção de conhecimento nacional e “… uma nova linguagem para descrever o que se percebe”. Mas, sobretudo, uma nova consciência e novas práticas sociais que, no final, são expressões de cidadania interventiva postas à disposição das mulheres moçambicanas.
É importante continuar “a subir a corda”, engendrando novos caminhos, melhorando a nossa participação crítica, solidária e voluntária, tornando visíveis as lutas antes silenciosas.
As mulheres começam cada vez mais a deixar de ter medo de ser subversivas. E assim, vão construindo alternativas em relação aos padrões políticos de exclusão e afirmando que também têm direito à cidadania.
- Elaborado com base num texto anterior intitulado “As mulheres são cidadãs?”, para a Revista Agora, Nº 8, Fevereiro 2001, pp. 36-37, Maputo.
- Hoje a WLSA envolve 7 países da África Austral – Botswana, Lesotho, Malawi, Moçambique, Swazilândia, Zâmbia e Zimbabwe – sendo o Malawi o último a integrar-se.
- Que foram os primeiros tópicos de investigação da WLSA entre 1990-1994.
Referências:
CASIMIRO, Isabel (1999).- ‘Paz na Terra Guerra em Casa’. Feminismo e Organizações de Mulheres em Moçambique.- Tese de Mestrado. Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra.-
DE OLIVEIRA, Rosiska Darcy (1991).- Elogio da Diferença. O Feminino Emergente.- S. Paulo: Editora Brasiliense.- (2ª Ed.)
SANTOS, Boaventura S. (1989).- Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade.- In: Direito e Sociedade, Coimbra, pp. 3-12.