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Omitidas

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Contra a violência de género

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A sociedade civil manifestou-se na inauguração dos X Jogos Africanos

 

A propósito da discussão da proposta de lei contra a violência doméstica: de que vale ter um grande número de mulheres no parlamento?

Maria José Arthur

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 22, Fevereiro de 2008

 
Há duas legislaturas que Moçambique se destaca no panorama regional e até internacional, por ter uma grande percentagem de mulheres deputadas no parlamento nacional. Estes dados têm servido para mostrar o compromisso do governo com a democracia e com o avanço da igualdade de género. Assume-se que um maior número de mulheres ao nível do poder legislativo significa que as necessidades e os interesses das mulheres são tidos em conta, havendo espaço para afirmar uma agenda feminina.

Destoando deste tom triunfalista, algumas vozes, sobretudo ao nível das ONGs de luta pelos direitos humanos das mulheres, interrogam-se se esta correspondência será automática. Por outras palavras, será suficiente ser mulher, ter um útero, ovários e seios, para, de imediato, se estar sensível aos problemas das mulheres e às estruturas que as discriminam e oprimem? Quem são estas mulheres deputadas? Qual é o seu percurso? Como chegaram ao poder e que obstáculos enfrentam? Será que têm liberdade para votar em dissonância com a sua bancada, quando se trata de defender os interesses das mulheres, sempre e quando estes não constituam consenso? Enfim, o aumento do número de mulheres no Parlamento foi recebido com satisfação, mas também com alguma contenção, porque se entendia que se deveria esperar para ver qual seria a sua intervenção.

A constituição do Gabinete da Mulher Parlamentar, no ano de 2007, foi muito bem acolhida porque se pensava que seria uma plataforma que iria permitir a discussão de problemas específicos e com uma perspectiva de género, ao mesmo tempo que possibilitaria que as deputadas das duas bancadas pudessem juntar-se e encontrar linhas de acção conjuntas que ultrapassassem os antagonismos primários e grosseiros desta nossa democracia bipolar. Também, com este Gabinete, se pensava poder aprofundar o relacionamento com a sociedade civil, que deveria desempenhar um duplo papel, o primeiro dos quais seria o de levar até esta instância as preocupações dos eleitores, nomeadamente das eleitoras, perante quem as deputadas devem prestar contas. Tendo sido eleitas com base nas promessas feitas, têm que mostrar se estão a corresponder ao que foi prometido para o seu mandato. Atente-se na palavra mandato, que resume bem o sentido disto tudo: um deputado é um representante do seu eleitorado, em nome de quem é mandatado e a quem deve ouvir e prestar contas.

Um segundo papel que se pensava caber à sociedade civil no âmbito de uma cooperação com o Gabinete da Mulher Parlamentar era o de prestar assessoria técnica, sempre que necessário, para dotar as deputadas de competências para intervir nos debates, divulgando os conteúdos dos instrumentos legais internacionais ratificados pelo país e fornecendo dados sobre a situação nacional, de modo a empoderá-las, face aos deputados de sexo masculino, normalmente com maior formação e mais bem preparados para a função legislativa.

Entretanto, já na legislatura anterior, antes da constituição do referido Gabinete, houve indícios de que as mulheres das duas bancadas, não defendiam nem subscreviam os princípios básicos do respeito pelos direitos humanos das mulheres, o que concretamente se pôde atestar pelos pronunciamentos públicos e individuais aos órgãos de comunicação social, por ocasião da discussão da Lei de Família.

Já nesta legislatura, nada, a não ser uma esperança a todos os títulos infundada, nos autorizava a esperar uma conduta diferente. Isto ficou visível no último encontro que organizações de mulheres filiadas no Fórum Mulher tiveram com o Gabinete da Mulher Parlamentar, realizado a 29 de Novembro de 2007, e que deveria ser o culminar da discussão da proposta de lei contra a violência doméstica.

Esta proposta de lei, elaborada pela sociedade civil, começou a ser discutida a partir de 2005, tendo sempre, e em todas as ocasiões, as deputadas como um dos grupos-alvo preferenciais. Em 2006, num seminário com representantes de todo o país foi aprovada a proposta final da lei que depois se depositou no Parlamento, através do Gabinete da Mulher Parlamentar.

A 27 de Novembro de 2007, assinalando o início da Campanha Internacional dos 16 Dias de Activismo Contra a Violência de Género (25 de Novembro a 10 de Dezembro), o “Movimento Pela Aprovação da Lei Contra a Violência Doméstica” organizou uma marcha para entregar ao Parlamento um Manifesto, onde se apelava à aprovação da proposta de lei, na íntegra, para salvaguardar o seu conteúdo (veja o Manifesto). Por outras palavras, pretendia-se afirmar que não nos interessa uma lei só para dizer que a temos, mas que se quer um instrumento legal justo e eficaz para combater a violência doméstica (veja o Comunicado difundido em Dezembro de 2007). Uma delegação do Parlamento e representantes do Gabinete da Mulher Parlamentar estiveram presentes e receberam uma cópia do Manifesto.

Na continuidade deste processo, o Fórum Mulher organizou um encontro no Centro de Conferências Joaquim Chissano, em Maputo, no dia 29 de Novembro de 2007, para que uma equipa técnica (composta por juristas, juízas e cientistas sociais de algumas ONGs, membros do Fórum Mulher, num total de oito) apresentasse às deputadas das duas bancadas as justificativas e os conteúdos da proposta de lei, preparando-as para o debate no Parlamento, quando, finalmente, este tema fosse agendado.

A maneira como a reunião decorreu revelou a impossibilidade de se poder contar com as mulheres deputadas para a defesa de uma agenda feminina em consonância com a Constituição da República e com os instrumentos legais internacionais ratificados. As referências que guiam a maioria das deputadas presente ao encontro é a “cultura moçambicana”, designação que ninguém aprofundou e que certamente quer dizer uma variedade de instituições e com sentidos diferentes entre elas. Nesta ocasião, ficou também patente que existe a concepção de que as/os deputadas/os estão acima de todos, não devendo prestar contas a ninguém e que muito menos se admite que a sociedade civil lhes “exija” o que quer que seja.

Mas vamos por partes, socorrendo-nos da síntese que foi elaborada na altura.

A reunião começou com uma intervenção de boas vindas por parte da Ministra da Mulher e Acção Social, Sra. Virgínia Matabele, sendo seguida pela da Directora Executiva do Fórum Mulher, Sra. Graça Samo. Na continuidade interveio a Presidente do Gabinete da Mulher Parlamentar, explicando os objectivos do seminário e lamentando a ausência da direcção do Fórum, além de afirmar não terem gostado do tom peremptório do Manifesto apresentado pelo Movimento, aquando da marcha do dia 27 de Novembro, que reclamava que a proposta de lei fosse aprovada na íntegra. Atente-se que onde se dizia “apelamos” foi entendido como “exigimos“, o que mesmo assim não seria nada de extraordinário, uma vez que nós, eleitores/as, temos o direito de fazer exigências àqueles/as que elegemos.

Na segunda parte interveio a equipa técnica cuja apresentação focou os seguintes pontos:

  • Discussão dos instrumentos internacionais, regionais e nacionais relativos aos direitos humanos das mulheres.
  • Breve reflexão sobre o princípio de igualdade substantiva (princípio de não discriminação, princípio de responsabilidade estatal e princípio de igualdade perante a Lei) expresso no espírito e letra da CEDAW.
  • Fundamentos desta proposta de Lei; o processo adoptado para a elaboração da referida proposta – pesquisa, seminários, entrevistas, contactos, etc.
  • Os objectivos e o conteúdo da proposta de Lei (já apresentado numa sessão anterior).
  • As questões polémicas que originaram um forte debate durante vários encontros e como as mesmas foram integradas na proposta.

Na terceira parte intervieram exclusivamente as deputadas, só dando espaço para que a equipa técnica se pronunciasse no final. E foi a partir daqui que as parlamentares exprimiram um repúdio que não se limitou à proposta de lei contra a violência doméstica, mas que se estendeu às próprias ONGs proponentes e que revela a maneira como encaram a sua própria função em tanto que legisladoras. Vejamos algumas das questões levantadas e das opiniões emitidas pelas deputadas sobre as mesmas:

A proposta de lei, a cultura e a estabilidade da família

1.  A proposta de lei vai contra a cultura, o que não é admissível; foi argumentado, por exemplo, que se deve defender novamente a poligamia porque há mais mulheres que homens neste país e muitas são sexualmente activas (“O que elas vão fazer sem homens? Por isso elas têm que ter marido. Além disso, perante o HIV/SIDA, elas estão assim protegidas”).

2.  Dentro desta defesa da cultura, falou-se ainda contra a condenação expressa na proposta de lei em relação a todas as práticas culturais prejudiciais, em consonância com o CEDAW. Algumas das intervenções afirmaram a importância de continuar a praticar o “puxa-puxa” (referência ao alongamento dos pequenos lábios, prática que as Nações Unidas classificou como uma forma de mutilação genital) porque isso servia de “travão” para o homem durante o acto sexual. Estas falas foram profusamente acompanhadas de gestos obscenos que queriam significar a entrada do sexo masculino na vagina (“Em Tete e em Manica isto é largamente utilizado: puxa, puxa, aquece e trava; puxa, puxa, aquece e trava”).

3.  A proposta de lei pode vir a ter o efeito nefasto de desestabilizar as famílias (“Esta Lei pode vir a acabar com os nossos lares da forma como está colocada. Por exemplo, quando o homem chega a casa depois de oito anos na cadeia, que vai ser dessa família daí em diante?”).

A proposta de lei não terá efeito e está desfasada da realidade

4.  A proposta de lei não serve de muito porque as situações de violência doméstica não serão reportadas, porque sempre foi assim e seguirá sendo (“Não estou a ver como uma lei como esta se pode aplicar na prática, por isso, rejeito”). Dentro desta ordem de ideias, afirma-se que uma lei contra a violência doméstica não terá muito peso e que o importante é empoderar economicamente as mulheres.

5.  Em vez de fazer uma lei destas, devia-se investir na mudança de mentalidades entre os jovens (“nossos filhos”).

6.  A proposta de lei não está fundamentada na realidade moçambicana mas é uma importação do exterior (“Por quE forçar uma lei só porque noutros países existe? Não vejo porque é que nós devemos seguir esta proposta. Cada país tem o seu ritmo, devemos seguir apenas o nosso ritmo”). Ou então que a proposta de lei não está baseada na realidade de todo o povo, sendo por isso não representativa dos interesses globais (“Este anteprojecto, desta forma, é para intelectuais, universitários. Mas deve ser para todos”).

Sobre os organizações proponentes da lei e filiadas no Fórum Mulher

7.  A direcção do Gabinete e as próprias deputadas manifestaram sentir-se insultadas por a direcção do Fórum Mulher não ter estado presente, o que, para elas, significava falta de respeito, transmitindo a ideia de que os membros da equipa técnica não tinham o estatuto requerido para se lhes dirigir.

8.  Foi endereçada uma crítica dura ao tom do Manifesto lido por ocasião da marcha do dia 27 de Novembro, por se declarar que se “exigia” a aprovação da proposta de lei na íntegra (“Somos nós quem decide!”).

9.  As ONGs presentes foram consideradas não representativas do povo, ao contrário das deputadas que dizem representar o país inteiro, deixando-se implícito que não eram reconhecidas com legitimidade para proporem uma lei e ainda para mais pretenderem ir “preparar” as parlamentares (Onde está a sociedade civil? As mulheres da sociedade civil não fazem nada. Afinal, qual é o trabalho que fazem? Nós aqui estamos todas, representando todo o país. Aqui há camponesas, domésticas, letradas, professoras, etc. Aqui está todo o país representado. Nós poderíamos ter feito este seminário entre nós. Não era necessário vir aqui. Onde está a sociedade civil?).

Recusa em reconhecer o trabalho de preparação que levou à aprovação de uma proposta de lei contra a violência doméstica

10.  Acusação de falta de conhecimento da realidade ao elaborar a proposta de lei (apesar de se saber que desde o ano 1999 a WLSA Moçambique tem vindo a pesquisar este tema sobre o qual já publicou 5 livros).1

11.  Faz-se tábua rasa de todo o processo de consulta, que durou dois anos, e põe-se como condição a realização de novas auscultações “na base”.

Outras intervenções

12.  Discordância em relação ao proposto, de transformar a violência doméstica em crime público.

13.  Desacordo em que a lei enquadre somente a violência doméstica ao nível do casal, deixando de lado a “violência contra os homens e as crianças”.

No final destas intervenções, quando finalmente a equipa se pôde pronunciar, as principais questões levantadas diziam respeito ao carácter estrutural da violência doméstica no âmbito da desigualdade de género, ao Protocolo sobre os direitos humanos das mulheres na Carta Africana e a outros instrumentos legais reconhecidos. Para além disso, destacou-se novamente todo o processo que conduziu à elaboração da proposta de lei.

Com esta reunião criaram-se enormes obstáculos para se prosseguir com o trabalho, que apenas começava, com as senhoras deputadas, através do Gabinete da Mulher Parlamentar. Ficou claramente demonstrado que as deputadas presentes na reunião (não surgiu nem uma voz discordante), pela arrogância e grosseria demonstrada, não se vêem como representantes e servidoras dos seus eleitores. Aliás, dizem-se representantes de “todo o país” mas em seguida não reconhecem os deveres que cabem a quem representa. Veja-se que aparentemente vinham para a reunião já desagradadas com o Manifesto do Movimento, por se ter ousado exigir algo a parlamentares, uma vez que se auto-representam como alguém que exerce o poder de legislar de forma separada e distanciada dos interesses do público.

As dúvidas e desacordos em relação à proposta de lei contra a violência doméstica (e já agora, em relação a qualquer assunto) não podem traduzir-se em insultos e atitudes de prepotência, como se o cargo de deputadas as colocasse num pedestal de onde tudo é possível e permitido. Nós, activistas pelos direitos humanos das mulheres, pelo simples facto de sermos cidadãs, temos o direito de exigir respeito por parte de qualquer cidadã/ão ou instância, o que nos é consagrado pela Constituição e que ninguém nos pode retirar.

Retomando as considerações iniciais e perante este triste episódio, perguntamo-nos: de que nos serve ter 38% de representação feminina no parlamento? Ficou claro que tem de haver empenhamento e sensibilidade pela causa dos direitos humanos das mulheres para se estar em condições de defender a igualdade e a justiça de género. É caso para se dizer que “um útero não substitui uma consciência”.2

 

Notas:

1. Nomeadamente: OSÓRIO, Conceição; ANDRADE, Ximena; TEMBA, Eulália. 2000. A ilusão da transparência na administração da justiça. Maputo: WLSA Moçambique; OSÓRIO, Conceição et al. 2002. Poder e Violência. Homicídio e Femicídio em Moçambique. Maputo: WLSA Moçambique; MEJIA, Margarita et al. 2004. Não sofrer caladas. Violência Contra Mulheres e Crianças: denúncia e gestão de conflitos. Maputo: WLSA Moçambique; ARTHUR, Maria José; MEJIA, Margarita. 2006. Coragem e impunidade. Denúncia e tratamento da violência doméstica contra as mulheres em Moçambique. Maputo: WLSA Moçambique; ARTHUR, Maria José; MEJIA, Margarita. 2006. Reconstruindo vidas. Mulheres sobreviventes de violência doméstica. Maputo: WLSA Moçambique.
2. Esta expressão foi tomada de empréstimo a Barbara Ehrenreich, que, ao tomar conhecimento de que um dos principais algozes da prisão de Abu-Graib no Iraque era uma mulher, desabafou: “A uterus is no substitute for a conscience” (21 de Maio de 2004, Znet)

Manifesto Contra a Violência Doméstica em Moçambique

Apresentado ao Parlamento no final da Marcha de 27 de Novembro de 2007, que marcava o início das actividades da Campanha dos 16 Dias de Activismo contra a Violência de Género

Nós, organizações da sociedade civil que lutam em prol dos direitos humanos das mulheres em Moçambique, envolvidas na Campanha Nacional para a Aprovação da Proposta de Lei Contra a Violência Doméstica;

Reconhecendo que a violência doméstica está vinculada ao desequilíbrio nas relações de poder entre mulheres e homens no âmbito das relações familiares, nas dimensões do social, do económico, do religioso e do político, apesar de todos os esforços das legislações a favor da igualdade;

Considerando que a violência doméstica constitui um atentado contra o direito à vida, à segurança, à liberdade, à dignidade e à integridade física e psíquica da pessoa, traduzindo-se num obstáculo para desenvolvimento de uma sociedade democrática e solidária;

Sabendo que a violência doméstica assume várias formas e que há uma elevada incidência no seio da sociedade moçambicana e que as afectadas por esta violência estão entre os membros discriminados pelas relações sociais  de género (mulheres de todas as idades);

Reconhecendo a família como um espaço social, sinónimo de segurança, protecção e afecto e também uma rede intricada e complexa de relações de poder, é doloroso constatar que, particularmente para as mulheres, se tem convertido cada vez mais num espaço social de risco;

Tendo em conta que no nosso país não existe nenhum dispositivo legal que penalize como crime tipificado a violência doméstica e que o problema se apresenta com características de gravidade e de forma crescente;

Apelamos:

  • Que a proposta de Lei Contra a Violência Doméstica ora depositada no Parlamento moçambicano, seja discutida, aprovada e promulgada no decurso desta Sessão;
  • Que a proposta de Lei Contra a Violência Doméstica ora depositada não sofra consideráveis alterações de conteúdo, ou seja, que se respeite o espírito do proponente;
  • Que a Violência Doméstica, em particular a Violência Contra a Mulher, faça parte da agenda dos governantes, legisladores e aplicadores da Lei em Moçambique.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NÃO É AMOR. BASTA!

O que é que uma lei contra a Violência Doméstica deve garantir

Comunicado publicado no jornal Savana, no mês de Dezembro de 2007

Antes de mais, recordemo-nos para que é que servem as leis. Desde sempre, ao longo dos tempos, a história das leis é também a história dos direitos humanos, porque a função de uma lei é exactamente de garantir direitos. E os processos através dos quais se outorgam direitos são protagonizados por grupos de pessoas que se consideram excluídos e que lutam para verem reconhecidas as suas reivindicações. Por outro lado, as leis definem regras de convivência, que têm por base não somente as práticas sociais, mas ideais de convivialidade, fundamentados nos princípios civilizacionais vigentes, como o princípio da igualdade e da não discriminação, do diálogo e do respeito mútuo.

Assim, quando se propõe uma Lei contra a Violência Doméstica que afecta as mulheres, estamos a falar da defesa de que direitos? Fundamentalmente do direito à integridade física, à dignidade e ao usufruto dos direitos de cidadania em geral. Não chega ter uma lei mãe, a Constituição da República, que reconhece que mulheres e homens têm os mesmos direitos. Para que na prática as mulheres possam usufruir desses direitos nas mesmas condições que os homens, é preciso ter em conta que homens e mulheres ocupam diferentes posições na sociedade, portanto é necessário ter outras leis mais específicas que traduzam esse princípio de igualdade em vários contextos e situações. Já temos uma Lei de Família que consagra esse mesmo princípio ao nível das relações familiares, mas é preciso atacar os mecanismos que produzem e reproduzem a desigualdade de género e que são socialmente tolerados. Por isso, uma lei contra a violência doméstica visa propiciar as condições para que a igualdade de género defendida pela lei moçambicana se possa concretizar a todos os níveis, através da garantia de que as mulheres, no casamento, ao nível das relações de conjugalidade, estão protegidas contra agressões de ordem física, sexual, económica ou psicológica.

Para ser eficaz, quais são os requisitos básicos que deve ter uma Lei Contra a Violência Doméstica?

1 – Em primeiro lugar, e sem ambiguidades, deve ser reconhecido que a violência doméstica contra as mulheres só é possível porque existe um modelo de dominação patriarcal que garante a dominação masculina e a subordinação feminina. Esta forma de violência (ou a sua possibilidade) ajuda a estruturar na desigualdade as relações de homens e mulheres no casamento, mantendo estas dentro dos limites que lhes são fixados. Só porque estruturalmente estão afastadas dos níveis de decisão e dos recursos na família, é que se pode compreender que muitas mulheres vivam situações que pareceriam intoleráveis à maioria dos homens e que são realidades extremas quanto ao que toca os direitos humanos.

2 – Em segundo lugar, uma Lei Contra a Violência Doméstica deve restringir-se à violência que ocorre no âmbito do casamento e das relações de conjugalidade, que são estruturadas na desigualdade e que influenciam todas as outras relações sociais ao nível da família. A violência contra as crianças e a violência contra o idoso devem merecer leis específicas (uma já existe e outra está em forma de proposta) que regulem estes fenómenos que sociologicamente são diferentes.

3 – A Lei Contra a Violência Doméstica deve proteger especificamente as mulheres, não só porque são elas as principais vítimas, mas também porque se encontram em situação de grande desigualdade em relação aos homens, por exemplo, no que respeita a aspectos de ordem política, económica e religiosa. Quando estamos perante situações de desigualdades históricas (como, por exemplo, a população negra na Africa do Sul, afastada pelo apartheid do acesso à terra, das oportunidades de investimento ou do poder político), é preciso garantir que esse grupo seja alvo de medidas temporárias visando corrigir as assimetrias existentes, para que possam usufruir dos seus direitos de cidadania em condições de igualdade com todos os outros cidadãos.

4 – Em quarto lugar e reconhecendo que as mulheres que denunciam sofrem de ameaças e de uma escalada nas agressões que tanto pode provir do agressor como dos familiares deste, a violência doméstica, na lei, deve passar a ser crime público. Deste modo se protegerão as vítimas e se garantirá a possibilidade de intervir em caso de urgência e para salvar vidas, fazendo com que os muros das casas, ao delimitar um “espaço privado”, não mais sejam barreiras intransponíveis.

5 – E porque a mudança é urgente e necessária, uma Lei Contra a Violência Doméstica tem que tornar obrigatória a inclusão, nos currículos escolares, de conteúdos que defendam a igualdade de género e promovam um novo ideal de convivência ao nível do casal, baseado na igualdade e na solidariedade.

Estes são os requisitos mínimos que uma Lei Contra a Violência Doméstica deve garantir. Se não se reconhecerem estes aspectos, então poder-se-á ter qualquer outra coisa, como, por exemplo, uma lei contra a violência em geral ou intra-familiar, mas não se estará a atacar o verdadeiro problema, que é o das mulheres que estão a ser violentadas e até mortas nos seus lares.

Os vários estudos sobre a violência doméstica que desde 1998 se têm realizado no país mostram uma alta incidência deste fenómeno e que um grande número de mulheres vivem em infernos “privados” sem que o Estado as proteja, chegando muitas inclusivamente a perder a vida. As auscultações nacionais que se têm realizado desde 2005, revelam também que as mulheres, embora receosas de serem mal-vistas e de sofrerem agressões, estão fartas de lares violentos e reclamam o direito de se sentirem seguras e valorizadas nas suas próprias casas.

Pelo direito à igualdade!

Pelo direito a uma vida livre de violência!

Assinam, pelo “Movimento Pela Aprovação da Lei Contra a Violência Doméstica”: Action Aid, ADEC – Sofala, AMCS, AMMCJ, AMUDEIA, ASSOMUDE, AVVD, FDC, Fórum Mulher, Fundação Apoio Amigo – Tete, LEMUSICA, MULEIDE, N´weti, Rede CAME, TCV – Nampula e WLSA Moçambique

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