Da agressão à denúncia: análise de percursos de mulheres
Maria José Arthur e Margarita Mejia
A partir das vivências e percepções das vítimas pretende-se discutir e analisar os percursos da violência de forma a tornar visível o que estas percebem como actos violentos por parte dos seus maridos ou parceiros, assim como identificar as diversas formas através das quais resistem e se protegem. Propomo-nos explorar a percepção das mulheres sobre os seus direitos, como esposas e mães, sobre os limites da autoridade dos seus maridos ou parceiros e sobre a violência doméstica de que são alvo.
Na pesquisa que serviu de base a este artigo, as vítimas foram entrevistadas em dois contextos diferentes, quando acorriam aos Gabinetes ou a outras instâncias locais de resolução de conflitos, como as estruturas dos bairros, a OMM ou as associações de vítimas. A observação dos atendimentos foi importante para as ver em situação de interacção com os agressores e os familiares de ambos os lados.
As vítimas entrevistadas nos Gabinetes ou acompanhadas durante os atendimentos são mulheres com idades compreendidas entre os 20 e os 55 anos, embora haja uma nítida predominância dentro da faixa etária dos 20 aos 30 anos (13 neste grupo e 9 as restantes). É de notar que estas mulheres que acorrem aos Gabinetes são mais novas do que as que buscam as instâncias locais, como a OMM ou os tribunais comunitários. No que respeita à escolaridade, a variação é entre as que são analfabetas (somente uma) e as que têm a 10ª classe (também apenas uma). A maior incidência verifica-se entre as que possuem a 5ª e a 8ª classes, o que mostra também um maior grau de instrução em relação às mulheres que procuram as instâncias locais de resolução de conflitos. A maioria destas mulheres é doméstica e só algumas possuem um emprego (embora sempre precário) e rendimentos independentes.
Antes de mais, há que ter em conta que todos os casos que chegam aos Gabinetes ou a outras instâncias de resolução de conflitos, por decisão das mulheres que são alvo de violência doméstica, revelam situações já à beira da ruptura (embora por vezes a iniciativa seja dos serviços de saúde). Ou seja, por motivos vários que procuraremos mais adiante analisar, estas mulheres buscam apoio para conter o que, para elas, já constitui “excesso” de poder por parte dos seus maridos ou companheiros. Na realidade, no momento da denúncia, todas as vítimas entrevistadas trazem atrás de si vários anos de coabitação com um marido ou parceiro que sistematicamente as violenta, tanto física como psicologicamente e ainda do ponto de vista económico. Por isso, estas vozes femininas, ouvidas em situação de conflito aberto, são críticas ao poder masculino na família, embora na maioria das vezes não se contestem as suas bases, mas aquilo que é percebido como “injusto” e desapropriado nesse contexto. Evidentemente que, para cada uma das mulheres entrevistadas, os limites para além dos quais o comportamento do marido ou companheiro é considerado “excessivo” varia, facto para o qual contribuem vários factores, entre os quais a sua situação profissional e os rendimentos, a situação familiar e o grau de instrução.
A perspectiva a partir da qual foram estudadas as vítimas considera que, tratando-se das experiências de mulheres (assim como a de qualquer outro agente social), é necessário ter em conta que elas são moldadas pelas estruturas que organizam a sociedade e dão sentido às práticas. Ou seja, as vidas das mulheres só são inteligíveis como resultado das maneiras de produzir sentido, disponíveis em determinado contexto histórico. O senso comum, i.e., os valores e as crenças partilhados pela sociedade, muitas vezes naturalizados, implanta-se através de um processo através do qual o grupo dominante se impõe. Assim, este discurso hegemónico e coerente que compreende o senso comum é forjado numa luta ideológica. É esta natureza da ideologia dominante, que, na verdade, representa a imposição de um grupo sobre outros, que faz com que nunca se consiga impor sem contradições, apresentando assim fracturas e fraquezas que podem ser expostas pelos discursos dos excluídos (Henessy, 1995). Partir da perspectiva dos grupos marginalizados cria a possibilidade de expor a maneira distorcida como os grupos dominantes conceptualizam as políticas, a resistência, as comunidades, etc. As vidas das mulheres e as suas experiências, sempre diversas, são assim o ponto de partida, embora seja um conhecimento socialmente situado. Num tema como o da violência doméstica, cuja natureza estrutural é constantemente ignorada, é importante esta perspectiva que realça as vozes das mulheres, sobretudo hoje em dia em que o discurso hegemónico e patriarcal necessita, de forma premente, de se legitimar, pela discrepância entre as promessas democráticas de igualdade e de justiça e a subordinação daquelas em todas as áreas da vida social.
A partir da análise da informação e tendo em conta a nossa problemática, centramos a discussão em dois aspectos, nomeadamente, i) as formas concretas que assume a violência doméstica e como é que ela é percebida pelas vítimas; ii) como se configura a resistência.
Violência doméstica e percepções por parte das vítimas
Pelas condições específicas em que as mulheres, vítimas de violência doméstica, foram entrevistadas, ou seja, em situação de denúncia, todas elas se pronunciaram declarando a sem-razão dessa mesma violência, a ausência de motivos válidos e o comportamento incoerente por parte dos maridos ou parceiros. Reconhecem não existir causas reais para o excessivo controlo realizado pelos seus maridos e, em alguns casos, o sentimento é de perplexidade. O juízo de valor sobre o comportamento dos seus parceiros violentos, não contesta propriamente a prorrogativa marital do uso de violência para resolver conflitos domésticos ou para “corrigir” a esposa, mas sim a falta de motivos, visto que nenhuma delas admite ter dado razões para tal. Com efeito, analisando o conjunto dos depoimentos, encontramos que, embora com limites variáveis, não se põe em causa o direito dos maridos ou parceiros de usarem de violência contra as suas esposas, sempre que estas o mereçam, ou seja, sempre que uma mulher não se atenha ao comportamento esperado e aos papéis que lhe são atribuídos. Segundo este raciocínio, a agressão é vista como legítima, quando a esposa ou companheira de alguém não cumpre com as tarefas que lhe cabem enquanto tal e não se comporte conforme o esperado. É assim que as mulheres que denunciaram os seus maridos por agressões consideram não terem falhado com os seus deveres e por isso acham-nas injustas. Se tratam bem da casa e dos filhos, se se comportam da maneira que é devida, porque é que são punidas? Paralelamente, aponta-se quase sempre o marido ou parceiro como não cumprindo com as suas obrigações, sobretudo a de contribuir para o sustento da casa e dos filhos. A acusação de que ele tem amantes ou outras parceiras sexuais não constitui, em si mesma, motivo da denúncia, mas serve para explicar o abandono do lar, a suspensão da mensalidade e, por vezes, o roubo de bens do casal que são desviados para a sua nova residência.
É este o modelo segundo o qual são, na generalidade, apresentados os casos de violência doméstica: uma queixa só tem legitimidade quando a mulher agredida é cumpridora dos seus deveres, respeitadora do marido e da família, não havendo necessidade nem motivo para receber correctivos. Por outro lado, é esta também a base para avaliação do problema pelos actores sociais nas várias instâncias de resolução de conflitos, para decidir quando é que uma agressão é injusta. Com efeito, a observação dos depoimentos das vítimas nos Gabinetes permitiu constatar que as queixas apresentadas se centram mais em assuntos socialmente aceites, como o direito a alimentos, a exigência da devolução das crianças à mãe, ou a reclamação do direito à partilha de bens materiais do casal. Contudo, a oportunidade de aprofundamento destes depoimentos, a partir das entrevistas, revelou um ambiente de contínua violência física e psicológica.
A partir da fala dos vários agentes, é possível constatar que se consideram menos legítimas as denúncias de mulheres que não se coadunem com os papéis femininos tradicionais, “dando” ao marido ou parceiro o motivo para a agressão: seja porque chegam tarde a casa, i.e., fora das horas consideradas razoáveis pelo marido, seja porque não o tratam da maneira que ele julga merecer, por não cozinharem ou não cozinharem a horas, ou por terem um amante. O que se observa é uma aceitação da hierarquia familiar e da prorrogativa masculina de uso da violência, embora dentro de certos limites.
Das opiniões registadas, raras foram as que contestaram o modelo e se perguntaram se não haveria outras formas possíveis de relacionamento no casal. Temos, por um lado, as que, embora subscrevendo a tradicional hierarquia de género e a desigualdade de posições entre homens e mulheres, mesmo assim controlam os limites e exigem aos seus maridos ou parceiros um comportamento coerente com o seu papel como homem. Revoltam-se contra o que acham ser actos de violência gratuitos e injustos. Por outro lado, em minoria, encontramos as que exigem igualdade de tratamento na família e falam mesmo em “direitos”, negando a prorrogativa conjugal masculina de controlar as vidas das esposas ou parceiras e o poder unilateral de decisão.
A luta contra a violência doméstica tem de passar pela divulgação dos direitos humanos, no geral, e dos direitos das mulheres, em particular. Numa sociedade patriarcal, construída com base na dominação masculina, o trabalho ideológico de legitimação converte as vítimas em culpadas da violência a que são sujeitas e constrói nelas um sentimento de culpabilidade, o que impede a sua reacção. A resistência das mulheres contra actos de violência, sobretudo os perpetrados pelos maridos ou parceiros, vai depender da percepção que elas têm desses actos como violentos e do reconhecimento do seu direito a uma vida sem violência, ou seja, ao reconhecimento das mulheres como sujeitos de direitos (Lourenço et al., 1997).
Dentro desta perspectiva, devemos também debruçarmo-nos sobre as formas de violência registadas através dos casos estudados, destacando as que são consideradas mais ou menos aceitáveis. Uma primeira constatação que se impõe, através da análise dos percursos das vítimas, é de que a violência não constitui um episódio isolado, mas antes uma prática constante de violência física e psicológica. Ou seja, não estamos a falar de mulheres que sofreram simplesmente uma agressão, mas que vivem numa relação violenta.
De entre as formas de violência inventariadas e que não são exclusivas umas das outras, a mais comum é a agressão física. Todavia, esta designação cobre uma vasta gama de actos violentos, dos mais simples aos mais graves, chegando a ameaçar a integridade física das vítimas. Em nenhum dos casos observados, as agressões simples constituíram motivo da denúncia, embora depois fossem incluídas na descrição que a vítima fez sobre as relações violentas entre o casal. A agressão mais grave, que obriga a vítima a socorrer-se dos serviços de saúde, tem sido apresentada como queixa, talvez por decisão destes1.
A agressão sexual nunca pode ser motivo da queixa, pois ela não aparece tipificada na lei como crime, quando cometida no âmbito de uma relação conjugal. Por outro lado, raramente é invocada pelas denunciantes, a não ser de forma implícita na maioria das descrições, para consubstanciar a queixa. Esta ausência da violação sexual como motivo da queixa deve-se menos ao que está disposto na lei, que aliás é desconhecida para a maioria das vítimas, mas sobretudo ao facto de não se contestar o direito dos maridos ou parceiros de obterem serviços sexuais das suas companheiras, independentemente da vontade destas. Mesmo uma excepção a este padrão surge num contexto em que o marido, contaminado com HIV/SIDA, não usa qualquer meio para proteger a parceira durante as relações sexuais e não admite uma recusa.
O relacionamento entre violência/violência sexual e HIV-SIDA foi claramente identificado. É um processo violento, produto de um acto de exercício de dominação, que fica na impunidade: é um acto flagrante de violação do direito fundamental à vida, ao qual a esposa ou parceira não tem direito ou o perde perante a eminência da morte do marido. É a demonstração da vulnerabilidade e alto risco que representa para as mulheres a sua subordinação dentro da família, um espaço privado onde as leis e a responsabilidade do Estado parecem não ter qualquer peso.
No concernente à violência psicológica, esta constitui o pano de fundo no qual decorrem as relações conjugais violentas e está associada a todas as formas de violência. Traduz-se nas sequelas que fazem com que a vítima permaneça em tensão, cheia de temor e insegurança. Este tipo de violência não machuca o corpo, mas fere a saúde emocional da vítima. Além da humilhação e do desrespeito, esta pode carregar lembranças desse trauma para o resto da vida. No arrolamento das queixas que as vítimas apresentam nos Gabinetes para consubstanciar a sua denúncia, a violência psicológica aparece sobretudo na forma de humilhações provocadas quando o marido ou parceiro criam situações de confronto com uma outra mulher com quem se envolveram.
A existência de outras mulheres, se bem que não se apresente como o principal motivo de queixa, é apontado como contribuindo para a contínua desvalorização das esposas ou parceiras e constitui, segundo quase todas as entrevistadas, um dos factores que marca o início da violência dentro do lar.
É interessante constatar que algumas formas de violência psicológica, como insultos ou comentários depreciativos feitos em público, não são apresentados como tal, embora todas as entrevistadas tenham reconhecido que isso era frequente acontecer e também ter começado ainda antes das agressões físicas. Pensamos ser igualmente importante ter em conta o impacto deste tipo de violência, como a perda de auto-estima e a insegurança, para entender, pelo menos em parte, a razão do atraso na denúncia da violência doméstica.
Regista-se um outro conjunto de queixas que têm a ver com problemas económicos e materiais, nomeadamente a não contribuição para as despesas de casa e dos filhos, a retirada para proveito próprio de bens pertencentes ao casal ou mesmo o açambarcamento da totalidade dos mesmos, e a expulsão da mulher de casa. Normalmente, estes actos são perpetrados em resultado do marido ou parceiro ter arranjado outra mulher e desejar abandonar o domicílio familiar ou já ter saído; ou, então, quando pretende que a esposa ou parceira saia de casa para ele poder trazer a sua nova mulher.
Com efeito, os depoimentos mostram que uma das consequências mais sentidas pelas vítimas perante a existência de uma outra mulher é o abandono, em termos económicos, dada a sua dependência que se constrói dentro da família. Frequentemente, quando o marido ou o parceiro montar uma segunda casa, segue-se não só a falta de apoio económico, mas a retirada do que este considera ser as suas posses e isto abrange também, por vezes, os filhos do casal. Foi ainda observado que é quando o marido ou parceiro arranja uma segunda mulher que se verifica uma escalada de violência. Esta pode ter a ver com as reacções de algumas das vítimas perante as suas ausências, reclamando ou simplesmente questionando sobre as razões das mesmas. Constatou-se que este tipo de comportamento é suficiente para justificar uma resposta violenta por parte do marido ou do parceiro, consolidando o ciclo de violência-reacção-violência. Em alguns casos, pode suceder que os inúmeros episódios de violência psicológica, que ocorrem quando o marido ou parceiro arranja uma outra mulher, tenham por finalidade obrigar a esposa a abandonar o domicílio familiar.
Um outro tipo de actos de violência doméstica cuja finalidade é o isolamento da vítima e a criação de uma dependência extrema em relação ao seu agressor, está presente, em graus diversos, em quase todos os casos analisados. Em primeiro lugar, regista-se a proibição ou a manifestação de desagrado pelo facto da mulher ou parceira ter um emprego remunerado fora de casa e, portanto, não controlado pelo marido ou companheiro. Quando assim acontece, com poucas excepções, as mulheres cedem e abandonam o que constitui, quase sempre, a sua única fonte de rendimentos e a possibilidade de uma vida independente. Em segundo lugar, verifica-se o controle das deslocações da mulher, o que inclui a vigilância sobre as horas de chegada a casa e a necessidade de justificar as saídas, e faz parte do quotidiano das mulheres entrevistadas, embora por vezes atinja extremos pouco comuns. Por exemplo, o cárcere privado e a destruição de roupa de sair e de sapatos. Em terceiro lugar, e como extensão deste tipo de controle, está a limitação das relações que a esposa ou parceira mantém com outros indivíduos fora de casa, sejam amigos ou amigas, ou parentes.
Estas formas de controle produzem um isolamento da vítima, cuja vida é cada vez mais organizada em torno do seu agressor e na sua dependência. Perante este quadro de violências sistemáticas e crónicas, em que contexto surge a denúncia? É esta questão que procuraremos discutir a seguir.
Resistência ou consentimento?
Um dos mecanismos da ideologia patriarcal para minimizar a importância e a gravidade da violência doméstica, tem sido de promover a ideia de que “apanhar do marido é uma prova de amor” e que, havendo leis para criminalizar este tipo de agressões, só depende das mulheres pôr fim à situação violenta em que vivem. Face às mudanças ocorridas nos últimos anos, em que ideais como justiça e igualdade integram o discurso público, já não existe espaço para legitimar a violência doméstica como sendo decorrente de relações de género “naturalmente” desiguais. Neste contexto, o chamado consentimento das mulheres ganha relevo como argumento para continuar a não intervir no seio das relações familiares para proteger os seus direitos. Por isso, as nossas interrogações centram-se nas formas de resistência das vítimas de violência doméstica, procurando abarcar a diversidade das reacções, perceber as diferentes respostas no quotidiano e conhecer o que é que influencia na decisão da denúncia.
Embora o reconhecimento dos seus direitos seja o primeiro passo na luta contra a violência doméstica, este não é ainda o caminho mais escolhido pelas vítimas. A força do modelo que subordina as mulheres cria inúmeros obstáculos difíceis de ultrapassar. Quanto a nós, a discussão em torno do consentimento das mulheres à violência tem que tomar em consideração a abordagem do conceito de poder, em Foucault (1975, 1988), que considera que este não se esgota na sua vertente de repressão (excluir, reprimir ou punir), pelo contrário, ele actua da forma mais perversa, penetrando profundamente, “criando o desejo, provocando o prazer e produzindo o saber” (1975: 772): “O poder trabalha o corpo, faz-se presente no comportamento, mistura-se com o desejo e o prazer”. Neste sentido, E. País (1996, citada por Lourenço et al., 1997) mostrou que os valores sócio-culturais, ancorados numa identidade do feminino, veiculam o casamento para a vida e impedem que, em certos contextos sociais, as mulheres agredidas denunciem o agressor, seu marido/companheiro, preferindo o sofrimento silencioso a uma solução que passe pela ruptura da conjugalidade e pela perda de uma posição social que as colocaria em situação de grande vulnerabilidade e fragilidade social. O depoimento seguinte corrobora estas constatações: “Quero o meu marido de volta porque não fui eu que deixou. Pode-me bater, desde há muito tempo estava a me bater, mas eu estou aí mesmo com as crianças, porque eu não posso deixar as crianças. Ele é o pai dos meus filhos, eu gosto dele” (40 anos, ent.).
Embora a estrutura social e ideológica das instituições do patriarcado constranjam o comportamento das mulheres, negando os seus direitos de igualdade, não podemos considerar que elas se submetem de uma forma passiva. Como afirmam Cabañas e Subiria (2001): “muito pelo contrário, muitas mulheres lutam contra a opressão e os seus opressores utilizando um sem número de estratégias. De facto, pode-se até argumentar que, sem esta atitude, os complexos mecanismos de controle do homem seriam supérfluos”.
Investigações do foro psicológico têm procurado lançar luz sobre a aparente passividade das mulheres perante a violência sofrida no âmbito doméstico e conjugal. Em 1990, um tribunal no Canadá reconheceu a “síndrome da mulher batida” (“syndrome de la femme battue”), definida como “um conjunto de sinais clínicos que traduzem um estado pós-traumático devido à violência sofrida durante um longo período de tempo. A pessoa sofrendo desta síndrome sente-se encurralada e desenvolve um medo legítimo de ser morta” (Carrier, 2003). O testemunho de um médico que foi chamado a depor no tribunal clarifica: “quadro persistente que se intensifica com a aceleração dos gestos de violência causados pelo cônjuge agressor. A mulher vítima de abuso sente-se isolada e impotente. Ela crê que o seu cônjuge é todo-poderoso e submete-se passivamente. As suas percepções são restritas e todas as suas energias se concentram em estratégias de sobrevivência a curto prazo. Ela está constantemente em alerta perante os comportamentos do seu cônjuge e às suas mínimas mudanças de humor. Neste contexto, a mulher desenvolve uma impotência aprendida que não lhe permite mais encontrar soluções para sair da situação de abuso em que vive, como por exemplo, refugiando-se num centro de acolhimento de mulheres em dificuldade ou, simplesmente, deixando o cônjuge” (citado por Carrier, 2003)2.
Este quadro, conjuntamente com uma abordagem que considera o poder na sua dimensão estruturante (e não simplesmente repressiva), é importante para entender algumas reacções das vítimas de violência doméstica entrevistadas. As atitudes analisadas durante a pesquisa abrangem um largo espectro que vai desde a aparente submissão a uma situação cujo controle lhes escapa, até à tomada de medidas de protecção como a denúncia, ou um completo desespero. No entanto, uma vez que trabalhámos a partir de instâncias formais e informais para resolução de conflitos, todas as mulheres entrevistadas, mais tarde ou mais cedo, optaram pela denúncia, ao terem atingido uma situação limite, que Conrado (2000) define como “uma situação intolerável que motiva a vítima a registrar a ocorrência”. Podemos, de igual modo, considerar que a opção de recorrer a estas instâncias não familiares revela o reconhecimento da incapacidade de resolverem o seu problema por si próprias. Antes disso, outras estratégias foram usadas, se não de uma forma ofensiva, pelo menos com o intuito de protecção. Com efeito, a maioria das medidas tomadas pelas mulheres que sofrem este tipo de violência podem não ser as adequadas para lhe pôr termo, mas visam principalmente a auto-preservação e a sobrevivência, quando, por vezes, o ficar calada é uma atitude pensada para tentar interromper a escalada de violência durante uma agressão.
Outras estratégias são mais activas e ligam-se ao esforço que uma mulher realiza para superar a situação de insegurança em que a coloca a relação violenta: “Comprei o talhão sem dizer nada [ao marido] por causa da situação em que vivia, pois, tinha que arranjar sítio para ficar com os meus filhos porque ele já não me queria” (35 anos, atend.). Esta atitude foi também o motivo da queixa do marido que se sentiu ofendido por não ter sido consultado.
Num caso extremo, encontramos duas reacções opostas com a mesma vítima, que só se podem entender no quadro de uma violência contínua e sistemática. Esta vítima, num primeiro momento tentou suicidar-se:
Num segundo momento, confessa que teve vontade de matar o seu parceiro usando a arma dele que é militar:
Este depoimento é importante para mostrar como a tentativa de suicídio e a tentação de matar podem ser reacções perante uma mesma situação intolerável. Como lembra Carrier (2003), em situações de violência conjugal, normalmente as mulheres matam para se defenderem ou escaparem do agressor (estratégia de preservação) e/ou protegerem as crianças, enquanto que os homens buscam maioritariamente impedir que o seu cônjuge lhes escape (estratégia de apropriação ou de controle), por exemplo, em caso de uma separação eminente.
Como se chega então à denúncia? Quanto a nós, a importância da denúncia tem a ver com a visibilidade do problema da violência, sendo necessária também para a sua análise e combate. Como afirma Garcia e Bedolla (s/data), a denúncia, promovida pelo movimento feminista, pode dar uma indicação do nível da resistência das mulheres à violência que as afecta ao mesmo tempo que proporciona não só indicadores sobre a complexidade e diversidade do problema, como elementos-chave para a combater. Estas mesmas autoras falam ainda sobre as dificuldades que as vítimas têm de denunciar. Socializadas numa cultura que apresenta como valor supremo de realização da mulher a maternidade e o casamento, as vítimas aceitam silenciosamente situações de violência onde periga a sua “estabilidade” sem ousar denunciá-las: “Eu não vou queixar. Vou dizer o quê? Onde é que eu posso ir? Ele é que é meu pai, a ele é que eu fui entregue pelo meu pai. Além disso, é o pai dos meus filhos, eu gosto do lar” (49 anos, ent.).
Sabe-se que, embora se estejam a realizar esforços com o objectivo de facilitar a denúncia através, nomeadamente, da criação dos Gabinetes, os níveis de denúncia estão longe dos níveis da violência. Experiências tais como a polícia ficar do lado do agressor ou considerar o assunto como sendo do âmbito privado, ou então desencorajar a vítima a instaurar um processo criminal, têm contribuído para esta desconfiança: “Não vale a pena ir à polícia. Não atende. Se você chegar na Polícia e dizer de que ‘eu fui batida com o marido’, dizem ‘vão lá resolver em casa, não é aqui na Polícia” (39 anos, ent.). É importante salientar que esta vítima tinha um desconhecimento absoluto da existência dos Gabinetes, facto que foi constatado em repetidas oportunidades entre as que acodem a outras organizações. O seu depoimento refere-se à polícia no geral, o que ainda pode ser o parecer mais difundido.
Em relação com o anterior, Lourenço et al. (1997) afirmam que a vontade das mulheres para denunciar pode ser desencorajada pela existência de muitas lacunas na lei sobre esta matéria, onde é constituído apenas o sujeito masculino como sujeito de direito. Isto complementa-se com o assinalado por Duran Febrer (2004): “Quando uma mulher denuncia, transgride uma norma patriarcal arcaica que continua instalada na nossa sociedade, a qual obriga ao silêncio e a não ser crítica com o sofrimento que o violento lhe causa”. Com efeito, a maioria das vítimas está consciente destas restrições: “Se vai queixar, é saber que basta você aparecer na polícia ele vai saber que foi a minha mulher que queixou. (…) Até a família berra para ti, ‘você não tem vergonha? Foste queixar do teu marido? Se ele ficar na cadeia você há-de ficar com quem?’. (…) Você não vai queixar, aguenta porque você, mulher, é escrava, aguenta. Mas também o marido não fez bem porque ele bateu. Porquê ele bateu? Mas não, não se fala isso. Não se vê que você foi batida. Nada! Só se vê da parte do marido que você queixou e que ele está na esquadra. Só” (55 anos, ent.). Contudo, este depoimento mostra a não conformidade com as sanções socialmente estabelecidas, o que constitui um passo em frente no questionamento das normas que subordinam as mulheres.
Algumas vezes a denúncia acontece como consequência de lesões sofridas que obrigam a vítima a recorrer ao hospital, sendo esta instância que a conduz à esquadra sem ser por sua livre vontade. Outros tipos de violência, como a não prestação de apoio ao sustento dos filhos (direito a alimento), retirada dos filhos à mãe ou desvio dos bens da casa de família pelo marido para fins não conhecidos, por tratarem de questões mais aceites pela sociedade, facilitam também a denúncia e podem obter uma resposta satisfatória por parte da polícia.
Com frequência a mulher não sabe muito claramente o que espera da denúncia. A dado momento a vítima aparece decidida a prosseguir com um processo criminal: “Eu quero processo, eu não aceito levar mais porrada. Já ele foi aconselhado sei lá quantas vezes e ele também não aceita deixar de bater”. Mas esta mesma informadora, no momento seguinte, reage contra esta decisão: “Porque não é que eu não lhe quero, é ele que me escraviza. Eu não vim para lhe meter na cadeia, é o comportamento dele que não me agrada” (27 anos, atend.).
Os obstáculos que se colocam à denúncia contribuem para desencorajar as vítimas a dar continuidade ao processo, além de que a sua condição de dependência do agressor as pode impedir de o processar: “Quando resolveram que tinha que ficar detido, eu não aceitei que ele ficasse na cadeia porque, quando ele saísse dali, era para casa dele onde eu voltaria. Também porque teria que levar comida todos os dias para a cadeia” (40 anos, ent.)3.
As vítimas mais decididas à ruptura são as que, em ocasiões anteriores, nos Gabinetes ou em instâncias informais, denunciaram as agressões que sofriam e que, tendo aceite voltar para o marido com base no aconselhamento da polícia e nas falsas promessas de mudança feitas pelo marido perante a declaração4 na esquadra, viram que nada mudou: “Não quero voltar com ele. Eu já disse, não sou capaz de viver com ele, porque já me magoou demais. Não vai mudar nada, porque isto aqui já resolvemos várias vezes” (atend.). É de salientar que esta posição aparece quando a polícia, mais uma vez, insiste para que ela volte a viver com o marido. Esta posição é ainda mais incompreensível, se tivermos em conta que o marido, neste caso o queixoso, já a contagiou com SIDA e a agrediu sexualmente.<
Na análise do percurso destas vítimas decididas a romper o silêncio, observa-se que a decisão de denunciar o agressor pode ser o culminar de toda uma vida de sofrimento, onde a sua capacidade de resistência está esgotada e já não têm mais nada a perder: “Já estive cansada de andar sempre a levar porrada, porque eu comecei aguentar desde que nos juntámos, em 1971. Estar sempre a levar porrada, os nossos filhos já são grandes, agora já temos netos e ainda continua a me dar porrada. Por isso já estou cansada, agora tenho que ir queixar. (…) E eu comecei a contar tudo, toda a minha história (52 anos, ent.).
É frequente que, uma vez denunciada a violência, as vítimas desistam do processo criminal, geralmente devido ao tipo de encaminhamento dado ao caso, nos gabinetes. Nestes prevalece uma nítida preferência por decidir pelo aconselhamento, com vista a tentar de todas as formas possíveis reconciliar o casal, questão que analisaremos mais à frente. Algumas das vítimas, no entanto, e apesar das pressões, mantêm-se firmes na decisão de prosseguir com o processo criminal, como se pode verificar pelo seguinte depoimento: “Tenho receio que ele volte a fazer. (…) Por isso mesmo que eu estou agora a dizer que eu não estou disposta a anular o processo. Eu sei que ele, mesmo pedindo desculpas, (…) há-de voltar a aprontar. Então para isto tem que haver intervenção da autoridade” (51 anos, atend.).
Os processos violentos vividos pelas vítimas entrevistadas são o reflexo de uma continuidade que pretende a submissão e a obediência das vítimas ao agressor, a sua subordinação perante a força e a partir da construção da sua dependência. Neste processo, se a sociedade patriarcal coloca todo o tipo de obstáculos que impedem a vítima de reagir, na prática é possível observar que estas mulheres não são sujeitos passivos e reagem de formas diferentes contra a violência de que são alvo. Lentamente se quebra o silêncio e estas falas femininas podem ajudar a desestabilizar a coerência dos discursos hegemónicos, pois se encontram no melhor lugar para interrogar uma ordem social que tolera a violência contra as mulheres. A pesquisa pretende que, a partir da sua divulgação, seja encorajada uma maior resposta de ruptura, por parte das vítimas, com os modelos que as oprimem e um maior cometimento das instâncias no seu papel de punir o agressor.
- Por lei os serviços de saúde são obrigados a alertar as instâncias policiais sempre que neles der entrada um indivíduo com indícios de agressão, sobretudo em casos mais graves.
- A “síndrome da mulher batida” é criticada por Dutton (1996), que alega que não é possível falar de um único perfil de mulher batida, que o termo é vago, e que se corre o risco de criar uma imagem de patologia, o que poderá contribuir para desvalorizar a vítima.
- Foi referido que, por vezes, as vítimas são informadas pela polícia de que, como esposas ou parceiras, têm que levar diariamente comida para o agressor que elas processaram e que foi preso.
- Compromisso escrito de não agressão que os maridos violentos devem assinar após o aconselhamento nos Gabinetes, como forma de evitar o prosseguimento do processo criminal.
Referências:
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