Crime e castigo – 3ª parte
Conceição Osório
Publicado em “Outras Vozes”, nº 4, Agosto de 2003
Este é o último artigo de uma série em que procurei sintetizar os resultados principais da pesquisa realizada pela WLSA, sobre a prática do homicídio e femicídio no contexto conjugal.
Neste trabalho identificarei os problemas que se colocam à e na administração da justiça no que se refere aos crimes de sangue, particularmente quando eles envolvem cônjuges ou pessoas que, embora não legalmente casadas, vivem maritalmente há mais de três anos. A opção pelo alargamento do estado civil a pessoas não casadas civilmente resulta do facto de se ter constatado, no estudo piloto que precedeu esta pesquisa, que o estatuto da grande maioria das pessoas (tanto em zonas urbanas como rurais) é de união de facto.
Ao contrário de outras violações da lei, os crimes que resultam em morte de um dos parceiros são sempre comunicados à polícia, embora tenham nas diferentes áreas mediações diferenciadas, isto é, enquanto nas zonas rurais a queixa é comunicada pelas autoridades locais, nas cidades são directamente os familiares das vítimas a fonte da denúncia.
É na instrução do processo, a ser realizada pela polícia, que começa a primeira grande dificuldade no apuramento da verdade. Tanto no campo, como na cidade, com excepção da cidade e da província de Maputo, os processos são instruídos de forma incompleta e arbitrária, não estando, na maioria dos casos por nós analisados, reunidos os elementos da prova. Por exemplo, é frequente as autópsias não constarem dos processos, as testemunhas notificadas não serem ouvidas, a arma do crime não ser objecto de perícia.
É, portanto, na instância encarregada da investigação, que surgem as primeiras arbitrariedades. A ausência de testemunhas, a credibilidade que é dada a alguns depoimentos sem aparente justificação, o reconhecimento social da vítima (caso em que são membros das instituições), leva à produção de juízos que pouco têm a ver com a verdade material dos factos, por parte dos agentes policiais.
E, se esta situação atinge homens e mulheres, quando são estas as criminosas, o delito assume proporções muito mais gravosas. Em primeiro lugar, o facto de a mulher matar o homem com quem vive, e que é socialmente reconhecido como “dono” da autora do crime, é considerado uma acção contra natura tanto por aqueles que denunciam como pelos agentes da polícia. A análise dos processos mostrou claramente que há, independentemente das provas, uma condenação primordial: matou o marido, seu protector, seu mentor. E se esse marido era membro das forças de segurança, e ao escrever este artigo recordo-me dos depoimentos das mulheres vítimas de violência doméstica (publicados no nº 2 das Outras Vozes), então a mulher não tem perdão: o corporativismo dos agentes policiais e o modelo patriarcal aliam-se numa demonstração clara de poder e de força.
E porque os crimes não são correctamente investigados, os processos enviados ao Ministério Público e apresentados em tribunal não contêm os elementos necessários para a pronúncia da sentença. Mas, principalmente, os processos não são bem instruídos porque a sua instrução é orientada pelo sexo de quem comete ou de quem é vítima do crime.
A justiça não é cega
A Procuradoria da República, que tem como função elaborar o despacho de acusação, é no campo da justiça, a entidade com a formação, a competência e o poder de acusar. Por isso, formalmente, os despachos de acusação procuram fundamentação legal para as propostas que são apresentadas ao tribunal. E, de forma geral, os despachos são claros, são escritos numa linguagem condizente com o estatuto da instituição e procuram ser “neutrais”.
No entanto, os procuradores são, além de defensores da lei (esta também não é neutral), membros de uma sociedade. Também eles foram socializados para a discriminação de género, foram educados para a construção de juízos que categorizam de forma desigual os comportamentos de homens e de mulheres, também eles aprenderam no quotidiano, a ser pais, filhos e genros, a representarem-se e a representarem os outros de acordo com a norma e os valores sociais.
Por esta razão, quando assumem o seu papel de acusadores públicos, não deixam de passar para os despachos de acusação o modelo social que os socializa. A análise das peças do processo demonstra exactamente o que temos vindo a referir.
Em nenhum dos casos em que a mulher mata o marido, a violência sistemática sofrida durante longos anos mereceu ser considerada pela acusação como atenuante ou como agravante, no caso em que é o marido a matar a mulher. Por outro lado, a maioria dos crimes cometidos pelas mulheres não apenas surgem como resultado da violência produzida durante toda a vida da relação, como são a resposta a uma situação de violência, isto é, a maioria das mulheres quando mata ou quando morre é vítima – vítima porque morre e vítima porque mata para não morrer.
Do mesmo modo, o não cumprimento de regras tradicionais, como o não preparar o banho para o marido, o não cozinhar para ele, são razões apresentadas como atenuantes para o assassínio da mulher. O alcoolismo, a força bruta empregue no crime, a confissão do crime após a prisão são, frequentemente, e ao arremedo da lei, considerados como atenuantes para a morte da mulher.
A naturalização do uso da força por parte dos homens aparece como argumento que justifica ou atenua o crime cometido. Habituado a castigar a sua mulher (para disciplinar…), a morte da parceira representa apenas um infeliz excesso, mas um excesso que os agentes da justiça se apressam a levar em conta.
Também em plena sessão de julgamento, os defensores oficiosos e o acusador público recorrem, tanto à lei quanto ao costume e à norma tradicional para acusarem ou defenderem os arguidos, do que resulta que, à partida, os direitos da mulher e do homem são interpretados de forma desigual.
Do mesmo modo, os acórdãos dos tribunais1 são influenciados pelo modelo patriarcal, sendo normal a transformação de homicídios voluntários (com uma pena de prisão maior muito pesada), em preterencional2, sem que haja elementos no processo que justifiquem tal alteração ou, pelo contrário, existindo provas de reincidência por parte dos réus. Analisámos vários acórdãos judiciais em que “a fragilidade da saúde da mulher”, “a queda desastrosa da esposa depois dum pequeno empurrão” ou “a resposta legítima do agressor a uma provocação” são considerados argumentos de peso para justificar a não intencionalidade do crime cometido, reduzindo para 1/3 a pena de prisão a cumprir.
Estas reflexões não pretendem pôr em causa as instâncias que administram a justiça no nosso país. Conheço as dificuldades enfrentadas pelas diversas instâncias nas suas actividades. Os recursos materiais são muitas vezes inexistentes (não havendo, em alguns casos, nem transporte que permita a comprovação e as circunstâncias em que o crime foi cometido), o número e a formação dos agentes é insuficiente e é problemática a articulação entre as instâncias. O que se pretende é apenas mostrar que a balança que representa a justiça não é regulada nem por um dispositivo legal que defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres, nem por uma neutralidade de juízo, por parte de quem tem por função, aos mais diversos níveis da justiça, sancionar o crime.
- Acórdão é a deliberação do juiz feita no final do julgamento e que contém as circunstâncias do crime, os elementos de prova e a argumentação sobre a sentença dada.
- O crime preterencional está definido no artigo 361º do Código Penal. As pessoas condenadas a este crime estão sujeitas a cumprir uma pena de prisão maior de 2 a 8 anos de idade. A classificação como homicídio preterencional implica que o juiz considerou que não houve intenção de matar. Ao homicídio voluntário simples é aplicada uma pena entre 16 a 20 anos de prisão.