Crime e castigo – 1ª parte
Conceição Osório
Publicado em “Outras Vozes”, nº 1, Outubro de 2002
A WLSA concluiu em 2001 uma pesquisa sobre os crimes de homicídio e femicídio cometidos em Moçambique. Este trabalho, iniciado em 1999, abrangeu as províncias de Maputo, Gaza, Sofala e Cabo Delgado. O período estudado foi de 80-85 e 95-99, procurando-se atingir duas diferentes práticas orgânicas. Os grupos alvo da pesquisa foram os agentes de justiça aos diferentes níveis do sistema e as/os criminosas/os.
O nosso estudo teve como objectivos a análise, através do conteúdo da lei e dos processos, das diferenças entre crimes cometidos por mulheres e homens no contexto conjugal e, a caracterização das representações ou das imagens sociais sobre este tipo de crime.
Do ponto de vista teórico fomos orientados pela perspectiva feminista através de duas dimensões: a primeira que acentua o carácter androcrático do modelo social expresso na circulação de poder entre homens e mulheres e a segunda que visibiliza a exclusão das mulheres dos direitos humanos.
Utilizámos pela primeira vez num estudo de género em Moçambique o conceito de femicídio, para designar o crime cometido pelo homem contra a sua mulher/companheira.
O perfil dos que matam
Constata-se que tantos os femicidas como as homicidas não têm antecedentes criminais. São pobres, desempregados ou com emprego precário, vivendo maritalmente, em média 10 anos, sendo que na quase totalidade dos casos as uniões não foram reguladas, nem tradicionalmente nem civilmente. De forma geral os femicidas são mais velhos que as homicidas, tendo também mais habilitações académicas. Cerca de um terço dos/das entrevistadas viviam em situação poligâmica e a maioria das mulheres, tanto vítimas como criminosas estavam numa situação de dependência económica e social.
O alcoolismo é uma constante entre os femicidas; embora, por vezes, nas entrevistas se refira que “bebeu para ter coragem para matar”, foi possível constatar que o alcoolismo aparece, quase sempre, nos antecedentes quotidianos dos criminosos.
Parece-nos, pois, que a afirmação “bati porque estava bêbado” é uma tentativa de desculpabilização por parte dos criminosos. Do mesmo modo procura-se, frequentemente, relacionar a prática do femicidio com o que se pensa ser a violação da norma social pela mulher. É, assim que a aceitação da culpa por parte dos femicidas é sempre relativizada, o que nos remete para um perfil do criminoso em coerência com o modelo social que alia uma tradição profundamente patriarcal a um sistema legal que apenas, aparentemente, é neutral. Esta situação é particularmente visível quando se constata que as mulheres se sentem permanentemente culpadas, seja nas primeiras declarações na polícia, seja nas entrevistas realizadas após a condenação. As autoras dos crimes incorporam na sua personalidade uma grande culpabilização, que culmina, por vezes, na não consideração dos antecedentes da violência que sobre elas foi exercida.
Tanto no caso em que o crime é cometido por homens como por mulheres, ele surge num contexto de grande, prolongada e sistemática violência cometida contra a mulher.
Os contextos de produção do crime
O homicídio e o femicídio são, em Moçambique (como aliás em muitas regiões do mundo), resultado acumulado de vários tipos de violência; acumulado através das fases de vida da mulher, desde a infância até à velhice, e acumulado de geração em geração.
O contexto do exercício da violência de género (na sua manifestação de morte) em Moçambique, e a sua expansão actual, deve ser considerado também em função da situação particular do país, consubstanciada na ruptura com o modelo político instituído após a independência nacional em 75, com a liberalização da economia, com o fim do Estado Providência e com a guerra civil.
A desestruturação das redes de solidariedade familiar, o deslocamento das populações durante a guerra e o aumento do desemprego são elementos que devem ser tidos em consideração na análise dos contextos de produção dos crimes.
Nas unidades de análise estudadas o contexto do homicídio praticado pelas mulheres contra os seus companheiros, tem como pano de fundo um clima de tensão social reflectida na situação de pobreza do casal, na desestruturação dos elementos normativos tradicionais (a falta de respeito, os insultos entre cônjuges) na precariedade das relações familiares e comunitárias.
Se os contextos de cometimento do crime de femicídio são na sua generalidade os mesmos encontrados no homicídio, isto é, o desemprego, o alcoolismo e as carências económicas, o femicídio tem que ser percebido como resultado da dominação masculina, que se reflecte no modo como se procura legitimar a violência exercida no âmbito conjugal.
O sistema de administração da justiça: da lei à sentença
Da análise do funcionamento do sistema de administração da justiça é possível retirar-se uma primeira constatação: a deficiência da articulação entre polícias, tribunais e cadeias o que leva a que não seja possível controlar os processos concluídos com mandado de condução, e os que realmente existem nas prisões. É assim que, com alguma frequência não há coincidência entre os processos concluídos e o nº de condenados existentes nas cadeias. Por outro lado, muitos dos crimes “desaparecem” misteriosamente, antes de serem instruídos os processos. Isto é tanto mais grave, quando se trata de crimes públicos que devem, por lei, serem apresentados nos tribunais.1
A defesa dos réus funciona, de forma geral, deficientemente. O facto de não existirem profissionais com formação suficiente2 é considerado um dos principais problemas para a defesa dos réus. Por outro lado, o IPAJ, instituição que presta assistência jurídica à população carente, funciona com muitas dificuldades, o que leva à nomeação oficiosa de defensores que, pela sua fraca preparação jurídica, pela sua pouca motivação e até pela representação que tem dos crimes cometidos pelos homens contra as suas companheiras, não prestam uma assistência de qualidade.
As testemunhas não são ouvidas ou, quando o são, as suas declarações não são aprofundadas. É frequente as testemunhas não serem localizadas, ou então, desaparecerem durante a instrução do processo, sendo muito difícil realizar a acareação. A prova do crime é, muitas vezes, baseada em suposições e não em matéria de facto. Esta situação que é menos visível em Maputo, tem como causas centrais a ausência de recursos humanos com formação suficiente e a falta de meios materiais para produção inequívoca da prova. Por este motivo, muitos dos homicídios, principalmente os cometidos pelos maridos contra as suas mulheres, são justificados com possíveis e fortuitas doenças de que a vítima sofria, permitindo que afirmações não comprovadas, como “só lhe dei uma bofetada”, sejam consideradas pelos tribunais como abonatórias.
As circunstâncias agravantes ou circunstâncias atenuantes, referidas na lei, são por vezes aplicadas sem ter em conta o enquadramento legal do crime cometido. Tendo em conta os factos e as provas apresentadas, a qualificação do crime é muitas vezes incompreensível. Foi, constatado, por exemplo, que crimes que deviam ter sido qualificados como homicídios voluntários simples foram transformados ao longo do processo em crimes preterencionais.3 Por exemplo, a violência sistemática exercida sobre as mulheres não é nunca considerada, na sentença, como circunstância agravante.
A complacência social para com a violência dos maridos é uma das dolorosas consequências da construção social da identidade feminina. A aceitação da desigualdade em face da “natural” supremacia do macho, leva por vezes à “crença” na legitimidade do direito masculino de punir a sua mulher.
O que fazer?
Pensamos que há dois factores que poderão contribuir para alterar a situação. Referimo-nos, em primeiro lugar, à reforma legal. A introdução de um novo corpo de leis que sancione os crimes contra a mulher, principalmente, os que são cometidos com fundamento na discriminação sexual, a desburocratização do sistema e a garantia de acesso à justiça, no quadro dos direitos humanos, são condições fundamentais para a transformação do sistema de administração da justiça. A reforma legal deve ser acompanhada de uma política de formação dos agentes de justiça que informe e ajude a combater a construção social da desigualdade de género.
Em segundo lugar, as organizações de mulheres deverão assumir com maior agressividade o seu papel de agentes de transformação, informando sistematicamente sobre os direitos das mulheres e simultaneamente vigiando e denunciando a violação dos direitos, que directamente ou indirectamente é exercida sobre as mulheres.
[Leia a continuação deste artigo]
- Ainda em relação à contabilização do crime de homicídio, é flagrante o desajuste entre a informação existente nos tribunais e os relatos dos mass media.
- Dos 150 advogados a trabalhar no país, mais de dois terços estão sediados em Maputo.
- O crime preterencional está definido no artigo 361º do Código Penal. As pessoas condenadas a este crime estão sujeitas a cumprir uma pena de prisão maior de 2 a 8 anos de idade. A classificação como homicídio preterencional implica que o juiz considerou que não houve intenção de matar. Ao homicídio voluntário simples é aplicada uma pena entre 16 a 20 anos de prisão.