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Os princípios da igualdade e da não-discriminação no Anteprojecto do Código Penal

Maria José Arthur

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 43-44, Dezembro de 2013

 

O tema da minha apresentação surge motivado por um dos dossiers mais importantes que as organizações da sociedade civil têm agora na agenda, que é a revisão do Código Penal (CP). O objectivo é de reflectir sobre desigualdades e situações discriminatórias que se mantêm no Anteprojecto de CP, elaborado pelo Parlamento.

O Código Penal, a principal lei criminal do país, está em vigor há mais de 100 anos. Ou seja, foi elaborada e aprovada nos finais do século XIX, e apesar de várias pressões e iniciativas, só agora, 38 anos depois da independência, é que foi agendado para discussão no Parlamento um Anteprojecto do CP.

As leis, qualquer lei, reflectem sempre os valores, as crenças e a moral de cada época. Não só são influenciadas pelas normas vigentes, como também pela caracterização que os legisladores desse tempo fazem das pessoas, de quem elas são e de como se devem comportar. Quer dizer, o direito caracteriza as pessoas e define quais são os interesses e necessidades que merecem protecção jurídica, de acordo com esses valores.

Sendo o CP uma lei tão antiga, não é suficiente que se alterem pontualmente algumas normas, se retirem ou acrescentem outras. É preciso ir mais fundo e ver como a aparente objectividade e neutralidade da norma esconde, com frequência, preconceitos, ideias e valores contrários aos princípios.

A este propósito, é de citar Eduardo Rabossi:

“Os sistemas jurídicos positivos são bons espelhos dos valores de uma sociedade, num determinado momento. Como tem sido apontado por muitas vezes, rever o conteúdo de sistemas jurídicos antigos permite perceber até que ponto o direito reflectia nessas épocas desigualdades sistemáticas” (Rabossi, 1990: 177).

Se atentarmos às características da sociedade portuguesa por volta de 1886, altura em que é aprovado o actual CP, estamos a falar de um Estado com um projecto colonial, sem separação de poderes em relação à Igreja Católica e muito conservador e moralista.

Hoje, sendo Moçambique um Estado laico e um Estado de direito, que subscreveu a maioria das leis, convenções e tratados internacionais sobre os direitos humanos, como se justifica que se mantenha no Anteprojecto do Código Penal normas e formulações que abertamente ou implicitamente reproduzem preconceitos e valores obsoletos? Estes criam situações de discriminação.

Temos situações de discriminação directa (quando existe intenção de dar tratamento diferenciado) e indirecta (quando uma norma ou prática aparentemente neutra gera desigualdade). Tanto uma situação como outra estão presentes no Anteprojecto.

Situações discriminatórias no Anteprojecto do CP

Nas leis e sistemas jurídicos antigos, as pessoas podiam ser discriminadas pelo seu estatuto, pelo nível de rendimentos que possuíam ou pelas suas opções de vida.

Quando falamos em estatuto estamos a referirmo-nos à posição que um indivíduo ou grupo ocupam num dado sistema social e que não depende da pessoa, nem está ao seu alcance alterar. O estatuto (posição) determina direitos, deveres e expectativas de acção recíprocas, e circunscreve a natureza e a extensão das relações que um indivíduo pode estabelecer com outros do mesmo estatuto e de estatutos diferentes. A um dado estatuto social tende a corresponder um conjunto relativamente fixo de comportamentos que se podem esperar de um indivíduo em determinada situação e da sociedade relativamente a ele. Neste sentido, o estatuto de uma pessoa pode influenciar o seu nível de rendimentos e as opções de vida.

O Anteprojecto mantém e, portanto, reproduz e legitima muitas formas de discriminação presentes no CP vigente. Vejamos alguns exemplos:

Por ser mulher casada

Artigo 216 [393 CV] (Violação)

“Aquele que tiver cópula ilícita com qualquer pessoa, contra a sua vontade, por meio de violência física, de veemente intimidação, ou de qualquer fraude, que não constitua sedução, ou achando-se a vítima privada do uso da razão, ou dos sentidos”.

Valoriza-se o direito do homem (neste caso “privilégio”), menosprezando-se o direito de decidir da mulher, o direito à integridade física e dignidade.

Por ser homem ou mulher casados

Artigo 253 [461 CV] (Abertura fraudulenta de cartas ou papéis fechados)

“2. A disposição deste artigo não é aplicável aos cônjuges, pais e tutores, quanto às cartas ou papéis de seus cônjuges, filhos ou menores que se acharem debaixo da sua autoridade.”

O direito à privacidade, valorizado para os cidadãos solteiros, é aqui suprimido pela qualidade de casados.

Por ser criança

Artigos 217 [394 CV] (Violação sexual de menor de 12 anos)

Contrariando a definição de criança presente na Convenção dos Direitos da Criança e na legislação nacional, não se protegem as crianças de sexo feminino com idades entre os 13 e os 18 anos. A definição de violação exclui também outras formas de penetração, como a anal, a oral e a introdução de objectos, deste modo não protegendo as crianças de sexo masculino vítimas de agressão sexual.

Por ser criança ou mulher não virgem

– Artigo 219 [192 CV] (Estupro)

“Aquele que, por meio de sedução, estuprar virgem, maior de doze anos e menor de dezasseis, terá a pena de prisão maior de 2 a 8 anos”.

– Artigo 222 [396 CV] (Rapto Consentido)

“O rapto de qualquer pessoa virgem, maior de doze anos e menor de dezasseis, da casa ou lugar me que com a devida autorização ela estiver, que for cometido com o seu consentimento, se o estupro, porém, se não consumar, será punido o rapto por sedução com prisão até um ano”.

Tanto num artigo como no outro, as crianças não virgens são vistas como merecendo menos protecção do Estado.

Por ter sexo fora do casamento

Artigo 230 [401 CV] (Adultério)

A liberdade sexual valorizada entre os não casados, é reprimida entre as pessoas casadas, intrometendo-se o Estado na vida privada.

Por fazer parte de minorias sexuais

– Artigo 79 [71 CV] (Aplicação de medidas de segurança)

“d) aos que se entreguem habitualmente à prática de vícios contra a natureza;”

Porque é que as práticas sexuais consentidas entre pessoas adultas, as tornam perigosas para sociedade?

– Artigo 251 [420-B] (Discriminação)

Não inclui a orientação sexual como um critério para a não-discriminação.

O termo minorias aqui refere-se não a um valor quantitativo, mas a aspectos valorativos, já que se trata de pessoas que não se conformam com o padrão dominante da heterossexualidade (tal como defendido por Louro, 2008). Por este motivo, são-lhes negados direitos fundamentais.

Por não ter emprego ou rendimentos fixos

Artigo 79 [71 CV] (Aplicação de medidas de segurança)

“1. São ainda aplicáveis medidas de segurança:

a) aos vadios (…)

b) aos indivíduos aptos a ganharem a sua vida pelo trabalho, que se dediquem, injustificadamente, à mendicidade ou explorem a mendicidade alheia;”

Muitas destas exclusões, consideradas normais na época em que o CP foi elaborado, são hoje clara e ostensivamente discriminatórias.

As situações de desigualdade são nocivas não somente pelo dano que podem causar aos que estão implicados, mas também porque, de um ponto de vista social, se considera que são o início ou detonadores de processos de violência na sociedade.

Sobre o princípio da igualdade e não-discriminação

No entanto, na análise do Anteprojecto é preciso ir mais longe, para buscar não somente situações de discriminação directa ou de jure, que se refere à discriminação nas normas jurídicas, mas também de discriminação indirecta ou de facto, que se produz em consequência da aplicação das normas jurídicas, sem que necessariamente essas normas sejam por si mesmas discriminatórias.

Revisitemos, antes de mais, os princípios da igualdade e da não-discriminação.

A noção de igualdade repousa no respeito da dignidade da pessoa humana, sendo incompatível com situações em que um grupo é tratado com privilégio e outro com hostilidade:

a) Igualdade como princípio

Como princípio, a igualdade fundamenta e dá sentido ao aparelho judiciário, às leis e actos que derivam do funcionamento das instituições na área jurídica. Também tem precedência, pois é um direito fundamental, o que significa que não admite acordo em contrário e torna ilícito todo o acto jurídico que não respeite a igualdade.

Distinções objectivas e razoáveis só são admissíveis quando estas respeitem os direitos humanos e estejam em conformidade com o princípio da aplicação da norma que melhor proteja as pessoas, como veremos mais adiante.

b) Igualdade como direito

A igualdade como direito é uma ferramenta subjectiva para aceder à justiça; dá titularidade às pessoas para reclamar a realização efectiva da igualdade no exercício dos seus direitos.

A igualdade é um conceito relacional e não uma qualidade intrínseca: para saber se se respeita ou não o direito à igualdade deve-se fazer uma avaliação da comparação entre pessoas, a partir da sua situação particular e do contexto geral – o qual deve ser interpretado tomando como referência os DH e a autonomia das pessoas.

A pretensão da igualdade não é assimilar todas as pessoas a uma ideia única de sujeito, mas reconhecer a diversidade dos sujeitos possíveis.

Conceito de discriminação

Por seu turno, discriminar alguém “supõe adoptar uma atitude ou uma acção tendenciosa, parcial e injusta, formular uma distinção que, em última análise, é contrário a algo ou alguém” (Rabossi, 1990:179). Dito por outras palavras, discriminar é praticar um tratamento desigual o que não é admissível.

A discriminação é tratada em vários instrumentos legais internacionais, desde a Convenção Universal dos Direitos Humanos, mas peguemos no exemplo do CEDAW:

Artigo 1º

“Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra as mulheres” significa toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha como objecto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, o gozo ou o exercício pelas mulheres, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos político, económico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.”

Artigo 2º

“Os Estados Partes condenam a discriminação contra as mulheres em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher (…)”.

A CEDAW é importante porque não somente introduz o direito à não-discriminação, como igualmente o de alcançar a igualdade de facto. Como refere Facio (s/d), a CEDAW contém uma crítica à norma jurídica e à política da igualdade, construída sobre a desigualdade real dos sujeitos. Aponta dois aspectos: i) uma lei será discriminatória se tem por resultado a discriminação da mulher, ainda que essa mesma lei não se tenha promulgado com a intenção ou com o objectivo de discriminá-la; ii) uma lei pode ser discriminatória ainda que tenha sido promulgada com a intenção de “proteger” a mulher ou de “elevá-la” à condição do homem. Assim, uma lei que trate homens e mulheres de maneira exactamente igual, mas que tenha resultados que prejudicam ou anulam o exercício pela mulher dos seus direitos humanos, será uma lei discriminatória.

Consequente com esta posição, a CEDAW, no seu artigo 4º estabelece:

“1. A adopção pelos Estados Partes de medidas especiais de carácter temporário destinadas a acelerar a igualdade de facto entre os homens e as mulheres não é considerado discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais ou distintas; estas medidas devem cessar quando os objectivos de igualdade de oportunidades e de tratamento tiverem sido alcançados.

2. A adopção pelos Estados Partes de medidas especiais, inclusive as contidas na presente Convenção, destinada a proteger a maternidade, não é considerada discriminatória.”

Dentro desta linha, reconhece ainda que: “para alcançar a plena igualdade entre o homem e a mulher é necessário modificar o papel tradicional tanto do homem como da mulher na sociedade e na família”.

Outras formas de discriminação no CP

Neste sentido, há normas do CP que falham em reconhecer que mulheres e crianças detêm posições específicas na família, na comunidade e na sociedade, não podendo, por isso, usufruir cabalmente dos seus direitos humanos. Do mesmo modo, quando os crimes atingem sobretudo mulheres e crianças, não se toma em consideração a extensão do impacto que têm sobre elas, pelo que o Estado falha em dar protecção adequada. Vejamos alguns exemplos:

Artigo 157 – (Crimes hediondos)

Introduz-se a classificação de “crimes hediondos”, tal como no CP brasileiro, mas, ao contrário deste, não se inclui a violação e a violação de menores de 12 anos. Falha-se em reconhecer a gravidade e os enormes danos que este tipo de crime inflige às vítimas

Artigo 216 [393 CV] (Violação)

Não se cobrem todas as formas de violação (penetração anal, oral ou a introdução de objectos), para além de que a pena é irrisória para o dano que provoca. A moldura penal de 2 a 8 anos é menor do que para o crime de furto, quando a quantia excede os 800 salários mínimos, mostrando a prioridade nos bens jurídicos que o Estado protege.

Artigos 217 [394 CV] (Violação de menor de 12 anos)

A pena não é proporcional ao dano causado. Não se faz distinção se o crime é cometido contra uma criança de meses ou de 11 anos.

Artigo 226 [399 CV] (Denúncia prévia)

Ao definir como crime particular os crimes de violência sexual, falha-se em proteger as mulheres e crianças maiores de 12 anos. A gravidade dos crimes contemplados nesta secção justifica que o Estado intervenha para garantir a punição do agressor, tendo em conta o bem jurídico a proteger.

Artigo 230 [401 CV] (Adultério)

Para além do que já foi dito anteriormente, a ser aprovada esta norma, ela será aplicada sobretudo contra as mulheres adúlteras, dada a sua posição na família. Será mais uma ferramenta de controlo do comportamento feminino, só que desta feita com a cumplicidade do Estado.

Artigo 253 [461 CV] (Abertura fraudulenta de cartas ou papéis fechados)

Ao exceptuarem-se os cônjuges deste crime de violação de privacidade, na prática está-se a autorizar os maridos a controlarem a correspondência da esposa. A aparente neutralidade que parece incluir homens e mulheres, na realidade, dada a estrutura de poder na família, só beneficia os homens.

Conclusões

O Anteprojecto do CP mantém inúmeras normas discriminatórias contra mulheres e crianças. Por vezes a intenção é claramente de discriminar, enquanto que em outros casos a discriminação surge como resultado da aplicação da norma, porque não se consideraram as condições de desigualdade presentes.

É urgente e imprescindível que a nova lei criminal do país seja mais um instrumento para a construção da desgualdade e que não venha aprofundar as desigualdades. Só desta maneira se contribuirá para a construção daquilo que Largarde chama de “democracia genérica” (1996), que permite a desconstrução dos poderes patriarcais e a criação de alternativas práticas e reais para a igualdade.
 

Este texto foi apresentado num encontro que teve lugar em Maputo, de 26 a 27 de Novembro de 2013, com o tema “Violência de género, cultura e direitos humanos”. Este evento foi uma iniciativa da WLSA Moçambique em conjunto com outros parceiros da sociedade civil e do governo.

 

Referências:

  • Facio, Alda, s/d, Feminismo, género y patriarcado. Lectura de apoio.
  • Lagarde, Marcela, 1996, Identidad de género y derechos humanos: la construción de las humanas. In: Guzman Stein, Laura y Lourdes Pacheco, Estudios Básicos de Derechos Humanos IV, Instituto Interamericano de Derechos Humanos, Dan José de Costa Rica.
  • Louro, Guacira, 2008, Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. In: Pro-Posições, Vol. 19, nº 2 (56), pp. 17-23.
  • Rabossi, Eduardo, 1990, Derechos Humanos: el princípio de la igualdad y la discriminacion. In: Revista del Cenirt, nº 7, pp. 175-192.

 

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