Breves
A violência sexual na sua forma mais extrema
Na edição do Canal de Moçambique de 27 de Maio de 2011, num texto com o título “Mulher não resiste à cosedura do órgão genital e morre no bloco operatório”, é relatada uma ocorrência de extrema violência que provocou a morte de uma mulher de 26 anos, em Manica.
Os factos podem ser resumidos da seguinte forma:
- Um indivíduo que alegadamente encontrou a mulher a ter relações sexuais com outro homem, matou este à catanada, furou o útero da esposa com uma baioneta e coseu a sua vagina usando agulha e linha.
- A vítima foi levada ao Hospital Provincial de Chimoio onde faleceu, devido à hemorragia provocada pela perfuração do útero.
- O agressor anda fugido e é procurado pela polícia.
Em relação a esta notícia achamos que há algumas observações a fazer. Antes de mais, que é importante que as violações dos direitos das mulheres, largamente ignoradas, sejam reportadas, pois esse é um passo para a sua condenação social e um desafio à legitimidade com que têm sido aceites todas as formas de violência contra as mulheres, apesar da legislação que as criminaliza. Não reportar casos de violência é também uma forma de conivência, porque implicitamente se considera que são actos decorrentes da normalidade e que portanto, de alguma maneira, fazem parte da “paisagem”.
Um outro aspecto a salientar é que aquilo que é reportado é ainda insuficiente, pois não se dá conta da frequência e da gravidade das ocorrências de casos de violência contra as mulheres. São notícia os episódios mais graves, de violência extrema, ou que envolvam personagens conhecidas. Deixam-se de lado os casos diários, da “pequena” violência, que fazem parte do quotidiano de muitas mulheres e crianças e que convertem as suas vidas num inferno. Mesmo sabendo que a proporção de mulheres que denuncia é ínfima, a divulgação dos casos de violência na imprensa fica muito aquém do que é oficialmente conhecido. De vez em quando são divulgados os números relativos às queixas que dão entrada nos Gabinetes de Atendimento de Mulheres e Crianças Vítimas de Violência, em funcionamento nas esquadras de polícia, mas normalmente isso enferma de dois problemas:
- não se tem em conta as condições em que esses dados são registados, às vezes por pessoal que não tem qualificação para os classificar de acordo com a tipologia de crimes estatuída pela legislação;
- os números são apresentados e comentados a partir da perspectiva do número de homens que denuncia. Não se analisam os crimes ou ocorrências que os levam aos Gabinetes, não se analisa a proporção de mulheres e crianças na totalidade das queixas.
Um terceiro aspecto que queremos realçar é que os casos de violência que são notícia na imprensa não são analisados segundo uma perspectiva de género, o que é fundamental para entender certas características que fazem da violência contra as mulheres uma forma de violência diferente das outras. Há questões que nos podemos colocar em relação à notícia acima e que não são respondidas: como é que estes actos de grande violência foram perpetrados sem que ninguém interviesse, se com certeza houve gritos de dor que deveriam ter alertado os vizinhos? O que leva um homem a reagir desta maneira perante a alegada infidelidade da esposa? E isto numa sociedade tão permissiva em relação ao comportamento dos homens? E este acto de costurar a vagina da mulher, de onde vem? Há antecedentes desta prática?
É tudo isto que fica por dizer. Façamos o exercício de tentar responder a estas questões.
A não ser que o caso tenha ocorrido numa zona muito isolada, provavelmente os vizinhos não intervieram porque se considera que o que acontece em casa é do domínio do privado. Provavelmente também, se eles sabiam que o que estava em causa era a alegada infidelidade da mulher, estavam de acordo com a “punição” infligida pelo marido “lesado”. Estamos, pois, perante uma sociedade em que as desigualdades entre mulheres e homens são bem patentes e que legitima a violência contra as mulheres como forma de controlo. O que é que afinal o agressor fez? Castigou o alegado amante da mulher e puniu esta para que não repetisse nunca mais a alegada infidelidade. A violência aqui funcionou como forma de resgatar a “normalidade” e repor a ordem patriarcal, ameaçada pelo comportamento desviante. Não estamos pois perante uma agressão que ameaça a estabilidade social, mas, pelo contrário, que visa conter os desvios.
E o que é que fez com que essa suspeita de infidelidade levasse o agressor a cometer um acto tão bárbaro que conduziu à morte da mulher? Para responder a isto temos que considerar os papéis que socialmente se atribuem a mulheres e a homens. Se os homens têm a supremacia e as mulheres estão subordinadas nesta sociedade patriarcal que é a nossa, um comportamento não conforme as regras por parte destas, pode ser visto como potencialmente disruptivo do poder masculino. Sobretudo se a feminilidade é construída a partir de valores como a subserviência, a obediência e a dedicação ao outro. Portanto, uma alegada infidelidade feminina não é vista como um assunto pessoal, mas como ataque directo à honra do homem que é seu “dono” e que também se sente lesado na sua propriedade. Não é por acaso que, em caso de adultério de uma mulher, se usa a expressão “roubar a mulher do dono”.
E, finalmente, de onde vem esta prática de costurar a vagina das mulheres por parte dos seus companheiros? Uma pesquisa realizada em Manica, em 2009, mostrou que em Machaze esta prática se apelidava de Kusungabanga (que em língua ndau significa “fechar à faca”) e é realizada por mineiros que pretendem assegurar a fidelidade das mulheres na sua ausência. Ou seja, teria sido importante que quem redigiu a notícia tivesse informado o leitor de que esta forma brutal de violência não é um caso isolado, mas que existe e é por todos conhecida.
É preciso que se continue a reportar casos de violência contra as mulheres, mas é necessário também dar um passo em frente e começar a analisá-los. Para pôr a nu e contextualizar essas masculinidades que, perante a infidelidade, imaginada ou não, só se ressarcem pelo sangue ou pela violência mais brutal. É igualmente da mais elementar justiça que se dê voz à vítima que morreu e que ela não seja somente mais um número numa estatística sobre crimes violentos. Quem contará a sua história?
Maria José Arthur
Nota:
Osório, C.; Silva, T. (2009), Género e governação local, estudo de caso na província de Manica, distritos de Tambara e Machaze, Maputo: WLSA.
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