Movimento pela aprovação da lei contra a violência doméstica
“A violência pode destruir-nos por dentro”
No mundo inteiro, pelo menos 60 mil mulheres (oito por minuto) perdem a vida por ano em resultado de violência doméstica – e este número foi registado num total de apenas 40 países (não inclui Moçambique) – imagine o real número de vítimas se o mundo é composto por mais de 190 países! E quantas outras não morrem, mas sofrem consequências dramáticas…
O Movimento para Aprovação da Proposta de Lei Contra a Violência Doméstica quis perceber melhor da psicóloga Manuela Almeida, com longa experiência no atendimento a vítimas de violência, como é que esta violência afecta as mulheres e a família.
Movimento: Dra., de que forma é que a violência doméstica afecta a mulher?
Manuela Almeida: De muitas, muitas maneiras. A primeira grande manifestação é normalmente a mudança de comportamento – a mulher que sofre violência começa a evidenciar sintomas de ansiedade, depressão, em especial no que é a sua capacidade de resposta às situações.
A curto prazo esta mulher evidencia uma grande irritabilidade, fica cada vez mais frágil, ainda que ela própria ainda não se aperceba de que está neste estado. Eventualmente ela começa a cair em si, a ter crises de choro, a perguntar-se porque está a passar aquela situação, a culpar-se pela violência…
M: É frequente a mulher vítima de violência culpar-se a si mesma?
MA: Sim. Até porque vejamos: tanto quanto ela consegue perceber, está tudo na mesma na vida dela mas o comportamento do seu parceiro mudou. Ela procura respostas e questiona-se: O que terei feito para provocar a violência?
Depois começa a desenvolver o que chamo de “rituais de verificação”, que denotam já uma certa obsessão: ver se em casa está tudo como ela pensa que o parceiro espera que esteja (casa limpa, comida feita, filhos na cama, etc.). Só que depois de ela verificar tudo isto, o parceiro ou marido chega a casa e arranja um outro motivo para iniciar um conflito.
Os limiares de resposta da mulher, que já eram baixos, baixam ainda mais e das duas uma: ou ela fica paralisada, passiva perante a situação, ou torna-se reactiva (como a presa que tenta atacar para se poder defender). São reacções não elaboradas, primárias.
M: E depois, como evolui a situação de violência?
MA: É claro que difere em cada situação, mas, normalmente, uma vez iniciado este ciclo agressão-reacção, a tendência é para que o ciclo de violência se torne mais frequente e mais agressivo e, claro, as consequências na vítima também se vão agravando.
A mulher a certa altura começa a pensar em suicídio – e algumas chegam a cometê-lo – em fugir de casa, em pedir ajuda à polícia, pois ela sente-se desesperada, quer proteger a sua saúde e a sua vida, mas não sabe como, não vê perspectivas de um futuro melhor para si e para a sua família.
Por vezes a violência destrói-nos completamente por dentro, ela fica sem auto-estima e muitas vezes sente que não serve para nada, pois não é capaz de encontrar soluções para os problemas no lar, que não é capaz de manter o casamento.
E é preciso falar também das consequências físicas, pois muitas mulheres ficam com cicatrizes ou até deficiências físicas para toda a sua vida, em resultado de agressões, e muitas chegam mesmo a entrar em coma ou perder a vida.
Se não tiver apoio, a longo prazo esta mulher que sofre a violência poderá ter grandes dificuldades em relacionar-se com outras pessoas, especialmente homens, mas também com os filhos. Pode tornar-se também numa pessoa fria e agressiva, pois guarda muita dor dentro de si.
M: Na sua opinião, porque é que tantas mulheres suportam a violência durante longos períodos de tempo?
MA: Eu penso que isso tem a ver com a identidade da mulher na nossa sociedade. Actualmente sentimos um conflito entre a educação tradicional e os novos valores, e a mulher sente que não é nada se não tiver um homem pois ela passa directamente de “filha de” para “mulher de”. Se ela largar o lar isso é visto como uma desgraça para a família, uma humilhação e, por isso, ela tem que fechar os olhos e aguentar – é a sua forma de sobrevivência.
Esta educação de passividade e subordinação da mulher ao homem atravessam toda a nossa sociedade. Encontramos situações graves de violência entre pessoas de todas as raças, de todos os estratos sociais e todos os níveis de escolaridade.
M: Uma mulher que sofra violência doméstica durante longos períodos de tempo pode ultrapassar os traumas resultantes dessa violência?
MA: Bom, estamos a falar da capacidade individual de coping, isto é, de lidar com as situações, e também com a capacidade de resiliência. Ou seja, estas mulheres têm que encontrar mecanismos de defesa para continuarem a sobreviver. Muitas vezes o seu interior é o único espaço onde se sentem livres e seguras e, por isso, algumas vítimas começam a cuidar ainda melhor da casa, a cozinhar melhor, mesmo sofrendo violência – é uma forma de preservarem o que lhes resta da sua identidade como mulheres.
Mas muito dificilmente uma mulher traumatizada pela violência que sofreu consegue superar esses traumas se não passar por um longo período de terapia e receber o apoio das pessoas à volta dela.
M: Uma vez que a violência doméstica ocorre muitas vezes no espaço familiar em que existem crianças, de que forma é que a violência as afecta?
MA: Uma criança que convive com a violência doméstica é afectada de diversas maneiras. Por um lado, pode sofrer uma violência directa em que ela própria sofre agressões ou violência verbal e emocional (é insultada, desprezada, humilhada). Muitas crianças sofrem esta violência directa ao tomar partido da mãe e tentar defendê-la.
Mas, só o facto de assistir a cenas de violência, especialmente contra a sua mãe, deixa marcas muito profundas na criança.
Muitas destas crianças são altamente instáveis, inseguras, revoltadas, têm maus resultados na escola, a ter comportamentos agressivos, e muitas fogem mesmo de casa porque não suportam a situação e acabam vivendo na rua.
Provavelmente estas crianças serão adultos traumatizados e com tendência para imitar ou reproduzir o comportamento que viram em casa nas suas próprias vidas de adultos.
M: E falando do agressor, acredita que este pode um dia transformar o seu comportamento e deixar de recorrer à violência?
MA: Vejamos, o comportamento agressivo existe dentro de todos nós, e vemos isto logo num bebé, pois a reacção dele quando algo não está bem para ele é manifestar revolta, zanga – por isso ele chora, grita, esperneia… Mas, através do processo de socialização podemos aprender a lidar com as emoções negativas sem recorrer a violência.
Portanto, essa transformação do agressor em não-agressor pode, de facto, acontecer. Mas ele precisa de receber apoio adequado para aprender a mudar de comportamento.
Acredito ainda que o facto de hoje em dia se falar tanto da violência doméstica contra a mulher acaba por mudar alguns agressores, pois estes percebem melhor as consequências da violência nas suas vítimas, os direitos das mulheres, e até as possíveis punições para o seu comportamento violento. (x)
“Um dia ele amarrou-me e chamboqueou-me com varas”
– Testemunho de uma vítima de violência doméstica
“Eu não sabia nada dessa coisa de namoro até aparecer esse homem a dizer que me queria lobolar… a mim não me importava nada, só queria sair da casa da minha tia, onde só me mandavam trabalhar, me batiam!…
E pronto, também não demorei a engravidar – a Julieta apareceu logo na minha barriga.
Só que cheguei lá na casa desse senhor, e apanhei que ele já tinha três mulheres em casa, eu era a quarta. Quando a Julieta já gatinhava o meu marido começou a ficar muito ciumento, com aquele ciúme grande, de ouvir as falas dos vizinhos, falas das mulheres dele, eu entrava cada vez mais nessa coisa da porrada.
Um dia ele foi no mato e arranjou uma corda, amarrou-me como se fosse um ladrão e começou a chamboquear-me com varas. E aquelas outras mamanas ficaram ali sentadas, a ouvir o espetáculo que estava a acontecer na minha palhota e a rirem-se.
Chegou um tempo em que já não aguentava mais. Falei com o meu tio e ele disse para eu sair daquela casa, ir viver em casa dele. A minha filha ficou em casa do pai. Ela era pequenina, só tinha 4 aninhos. O pai decidiu mandá-la para casa da tia, na Beira e foi aí que começou a confusão.
Mais tarde ela contou-me que a tia lhe batia muito, falava muito, e com 5 anos só ela já andava por ali a pilar milho, cartar água… E a tia dizia-lhe que se queria comer tinha que trabalhar, passava a vida a bater-lhe. Um dia bateu-lhe tanto que a minha filha fugiu de casa e ficou escondida uns dias.
Até que um familiar chamou o pai da minha filha lá na Beira. Ele chegou lá e apanhou a filha mesmo doente, cheia de cicatrizes. Então o pai pegou nela e levou-a para casa dele.
Foi quando a minha filha entrou na escola – tinha 6 anos. Só que ela não aprendia bem, porque estava um bocadinho confusa, não estava tranquila…
Quando voltei a ver a Julieta ela já tinha 11 anos. Ela não gostava de mim porque a madrasta dela lhe dizia que eu não queria saber dela. Eu estava aqui em Maputo, mas quando apanhava um dinheiro eu comprava roupa para ela e mandava. Mas aquelas mamanas levavam essa roupa e davam às filhas delas. A minha filha ficava sem roupa boa. Ela trabalhava demais para todos.
Foi por isso que a Julieta ficou um pouco confusa, porque cresceu sempre a sofrer, porque não apanhou aquela folga de crescer com aqueles mimos, saber que é mamã, é papá, é a minha família toda, ficar bem tranquila… Ficou no ar que não tem ninguém; só apanhou uma casa para viver, mas não estava a viver bem.
Mais tarde nós conseguimos ficar amigas, mas já não era a mesma coisa…”
* Esta história verdadeira foi adaptada do livro “Reconstruíndo vidas: Estratégias de mulheres sobreviventes de violência doméstica“, publicado pela WLSA Moçambique, com autorização da mesma. Os nomes e outros dados que pudessem identificar as vítimas foram alterados ou omitidos. (x)
Estes artigos foram publicados no semanário Savana de 9 de Maio 2008 |