Breves
A deriva autoritária da governação por consenso
A autora deste texto de opinião questiona a decisão de alterar o programa de educação sexual na escola, justificada por “consultas” a pais e encarregados de educação.
Esta semana fomos surpreendidas com declarações gravadas em vídeo de um alto quadro do Ministério de Educação (MEDH), que nos informava que iriam proceder a mudanças relativamente aos conteúdos do actual manual de educação sexual da 7ª classe, de 2004. Segundo ele, fazem muitas consultas e buscam consensos, tendo percebido que os seguintes conteúdos eram repugnantes para os pais e encarregados de educação: a masturbação e a homossexualidade. Assim, a parte referente a estes assuntos será eliminada na próxima impressão do material, tendo entretanto os professores sido instruídos a deixá-los de lado.
Parece simples e democrático: ouvem-se as pessoas e decide-se como avançar. Aliás, o pronunciamento é feito num tom singelo, “honesto” e transparente. Só que não! Esta é uma maneira demagógica e enganosa de “ouvir” os cidadãos e de respeitar a democracia. A governação não se faz por consensos, mas no respeito dos direitos humanos, dos compromissos democráticos, da transparência e prestação de contas.
Esta é uma litania que nós, como activistas sociais, temos ouvido vezes e vezes sem conta: exige-se uma lei da família que respeite a igualdade de direitos entre homens e mulheres para honrar os compromissos assumidos pelo Estado moçambicano com a sua Constituição e outros instrumentos regionais e internacionais ratificados? Resposta: temos que escutar o que dizem as pessoas para ver se concordam. Por exemplo, para a aprovação da Lei da Família de 2004, fizeram-se “consultas” a polígamos para saber se inscrever a monogamia na lei não seria impopular. Ou seja, direitos básicos como a igualdade e o respeito pela dignidade humana são “referendados”!!! Na prática, o que se fez foi perguntar a um grupo de indivíduos o que é que eles achavam de dar direitos iguais às mulheres, quando o princípio da igualdade está inscrito nos documentos fundacionais da nossa república.
Assim foi, entre outros, com a Lei contra a violência doméstica em 2009, com a revisão do Código Penal em 2014 e com a Lei contra as uniões prematuras em 2019.
Este procedimento está todo incorrecto, pois direitos humanos básicos como a protecção da integridade física, da dignidade e da vida de mulheres e crianças são totalmente inegociáveis. Mas não só, também as ditas “consultas” são na maioria das vezes manipulações grosseiras, tendentes a legitimar as posições retrógradas e ultraconservadoras de alguns/algumas legisladores/as. Por exemplo, as pessoas abrangidas não constituem uma amostra nem quantitativa nem qualitativa da população moçambicana, e as perguntas colocadas são muitas vezes tendenciosas, para levar as/os participantes a concordarem com as posições defendidas por quem encabeça o processo.
Por isso, quando as pessoas no poder falam em “respeitar consensos”, devemos ter claro que usam essa justificativa para legitimar que não estejam a “respeitar direitos”. Daí a deriva autoritária. Daí a prova de que mais do que nunca temos que defender a nossa jovem república, protegendo-a de quem a quer reinventar, mas numa versão autoritária e onde os direitos humanos sejam “faz-de-conta”, para mostrar ao mundo e para ficar bem na fotografia.
Governar com democracia é respeitar os direitos humanos e princípios básicos como a igualdade e o respeito por todas as pessoas, independentemente das suas diferenças. E quando sectores retrógrados tentam impedir a aplicação de leis ou de políticas públicas desenhadas de acordo com os valores da república, há o dever de os educar e sensibilizar, para que conjuntamente possamos alcançar os nossos ideais civilizacionais.
E não nos enganemos. Atacar hoje o direito à informação sexual de adolescentes e jovens nas escolas não é inocente nem ingénuo. É a consolidação de um procedimento que nos poderá levar amanhã a dizer que os direitos humanos estão suspensos, pois o consenso é de que eles são desnecessários. E talvez até perigosos.
12 de Fevereiro de 2022
Maria José Arthur
Concordo sobre a questão do tespeito dos direitos humanos, do direito à informação e que não se governa por consensos. No entanto, em todos os debates a que tive acesso, não vi nasa sobre o conteúdo do texto sobre homosexualidade. Nesse texto, apresentam a homosexualidade como uma fase de transição que atravessam a maioria dos adolescentes, e que pode no futuro evoluir duma maneira ou de outra. Não me parece que seja correcto. Por outro lado, pode assustar os adolescentes em vez de levá-los a aceitar toda a forma de orientação sexual. Gostaria de ver mais debates sobre o conteúdo do texto.
Por outro lado gostava de saber cpmo foram formados os professores para abordarem essas questões. Conhecendo a fraca formação dos nissis professores, imagino que muitos se limitarão a reproduzir o texto, sem nenh7m debate com os alunos. Será que muitos deles não deixarão transparecer a homofobia de que a sociedade moçambicana está impregnada?
Gostaria de ver essas questões debatidas!
Muito triste esta situação! O que podemos fzr como cidadãos/sociedade civil para alertar a gravidade desta situação? Algum baixo assinado?
Danielle, olá. Bom “ouvir-te”. Sobre a questão, na realidade eu nem conheço o tal livro para ter uma opinião. Simplesmente reagi ao facto de dizerem que é consenso dos pais, então tiram. Acho que o Ministério tem todo o direito e a competência para alterar os seus manuais, com base numa crítica séria e reflexão dos profissionais da área.
Para mim a questão é que é inaceitável dizer que governamos por consenso, porque essa é a forma como têm combatido todas as tentativas de fazer passar mudanças legais e políticas públicas mais progressistas. Beijinhos
O comentário acerca da governação por consenso é muito certo, visto que a maioria das pessoas (sobretudo quando provocada por mentiras vergonhosas de profissionais licenciados – tipo “como psicologo vi muitos casos de lesões genitais ou vazamento do esperma por causa da masturbação”, uma idiotice sem fundamento ou evidência que diziam os padres mais rígidos até à primeira metade do século passado) não aguenta com conversa e informação sóbria sobre as coisas da vida que nao batem bem com a tradição… [A proposito de tradição, então força com as porradas às namoradas e esposas, não devem faltar para não desapontar os velhos da família!] Todavia, como outros tem realçado, infelizmente o texto tem boas intenções mas péssimas expressões, pouco fundamento científico/prático quando fala da “amizade homossexual” e do facto que os adolescentes podem nao superar a fase infantil etc. Faz confusão e seria melhor rever a matéria, dedicar MAIS espaço a tudo isto, melhor se completamente separado, por um lado à masturbação (individual ou recíproca, grandissimo instrumento de crescimento sexual seguro dos adolescentes) e, por outro, à homossexualidade, bem como formar os professores sobre as ENORMES diferenças entre genero à nascença, identidade de gênero, orientação sexual, diferença entre tolerar as pessoas LGBTQI+ (como se fosse uma doença, ou uma escolha racional) e respeitar estas pessoas como iguais, nao doentes, simplesmente com natureza diferente da maioria estatística.
Concordo com o que diz Maria José Arthur, o “consenos” é uma capa usada para negar direitos fundamentais, além de ser a negação do papel da escola. Pode ser que o texto do manual devesse ser melhorado mas o simples “rasgar a página” como decidiu o MINEDH é simplesmente imbecil. Também não me parece que a maior parte dos estudantes da 7.ª classe tenha 12 anos. Não disponho de estatísticas mas a impressão que tenho é que andarão mais pelos 13 a 15 anos, idades onde a educação sexual é mais do que necessária.