Breves
A Covid-19 e os direitos das mulheres – 2ª parte
Neste segundo artigo sobre a situação da Covid-19 e os direitos humanos das mulheres em Moçambique, as autoras discutem brevemente algumas questões de ordem teórica que pensam ser relevantes para o estudo da Covid-19 e que conduziram metodologicamente à pesquisa.
Projecto: Mulheres e direitos humanos no contexto da Covid-19 em Moçambique
Autoras:
Conceição Osório
Ana Maria Loforte
Neste segundo artigo vamos procurar enunciar brevemente algumas questões de ordem teórica que se colocam no estudo sobre a Covid-19 e que conduzem metodologicamente a pesquisa que estamos a realizar sobre os impactos da pandemia em Moçambique, principalmente no que se refere às mulheres que fazem o negócio informal.
O debate teórico sobre a propagação viral, um fenómeno que embora não seja novo (podemos recuar séculos na história) é novidade no contexto da globalização (se considerarmos que a chamada “gripe espanhola” apenas indicia um fenómeno que não tem as mesmas repercussões e impactos e o Ébola foi circunscrito a determinadas regiões).
O contexto actual tem conduzido a reflexões que aprofundam a relação entre globalização, a produção de modelos de desenvolvimento económicos hegemónicos e as periferias. Portanto, este é o primeiro problema que é colocado: a desigualdade entre Estados e a reprodução e a apropriação de formas de expropriação de recursos e de direitos.
Temos assim com a pandemia um novo campo a explorar teoricamente em torno do global e do local. Muitas das primeiras reflexões teóricas neste novo quadro estabelecem a relação entre capitalismo e dominação de forma muito generalista, expondo os desiguais resultados da mundialização do vírus. Contudo, parece-nos que é necessário aprofundar este debate de modo a perceber as diferenças nos impactos entre as diversas modalidades do capitalismo. Como exemplo, podemos reflectir sobre que novas ferramentas de análise devem ser introduzidas quando discutimos modelos de desenvolvimento capitalista em países ricos e estáveis, comparando por exemplo a Finlândia com a República Popular da China ou a Alemanha com os Estados Unidos da América? Ou ainda a Rússia com a Espanha?
Esta primeira questão é a necessidade de desconstruir teoricamente a globalização e os seus impactos, procurando romper com apressadas generalizações que não nos ajudam a reflectir de forma mais complexa e multifacetada na natureza pandémica do vírus.
Uma segunda questão teórica, é a importância de aprofundar a relação entre direitos humanos que assentam no liberalismo francês e anglo-saxónico, e direitos colectivos/colectivistas que assentam, como a história nos tem demonstrado, na restrição dos direitos e liberdades individuais, enquadrados na universalidade e indivisibilidade. Neste âmbito, tem sido muito debatido estudar a ambiguidade e a complexidade das narrativas que hoje procuram, em nome do direito à manifestação, segregar o direito colectivo à saúde. Ou, se queremos ir mais longe, como a apropriação da produção científica sobre a Covid-19 se entrecruza com a instrumentalização da ciência pelos poderes.
Uma terceira questão teórica é a reflexão sobre a democracia como conceito e sistema político e os significados que ela vai adoptando ao longo do último século. E nada melhor que a Covid-19 para expor os diferentes modelos e fragilidades do sistema democrático, se bem que a expressão melhor empregue seria dos sistemas democráticos. E deste modo podemos combinar a exposição das desigualdades entre grupos sociais e que escancaram à exaustão que se o vírus apareceu numa primeira fase como democrático (atacando os viajantes, os negócios transnacionais) rapidamente se transformou naquilo que é hoje, atingindo os mais pobres, os mais vulneráveis, as comunidades que por força da sobrevivência quotidiana têm que circular. É uma pequena minoria que pode estar no que Foucault chamava de território de reclusão e que Haesbaert chama de território de abrigo.
A quarta questão teórica que julgamos importante desenvolver é levantada pela instrumentalização da pandemia para reforçar a repressão e para naturalizar a restrição de direitos. E, neste sentido, podemos começar a falar nos direitos humanos das mulheres e na tentativa de abater conquistas já tomadas como realizadas, como o direito ao corpo indisciplinado. Isto é, ao corpo que toma decisões sobre a reprodução e a sexualidade, que reivindica o direito a ser. Hoje, se não há mais invisibilidade dos direitos das mulheres, é porque o movimento feminista força a agenda global e alerta e principalmente exige que o vírus não continue a servir para hierarquizar direitos e seres humanos.
Face ao vírus estamos numa situação de pan-patriarcalismo[1]. Isto é, há uma situação pouco estudada no nosso país de recessão de direitos das mulheres, que acresce à feminização da pobreza a violência praticada no espaço público e aquela que é produzida e reproduzida nas suas múltiplas facetas nos “lugares que deveriam ser de afecto e acolhimento” e que se transformam para muitas mulheres no “lugar do terror e da morte”.
E, por último, esta pesquisa que estamos a realizar e a que todos os dias acrescentamos novas informações também se tem debruçado sobre o papel das Organizações da Sociedade Civil (OSC) na luta contra a pandemia. Encontramos duas posições nas acções estratégicas das OSC que têm como objecto defender os direitos humanos. Dum lado, vemos a produção de pequenos estudos que nos vão informando sobre o impacto das duas Declarações do Estado de Emergência na economia, no emprego e na vida das pessoas. Ao mesmo tempo que há uma cada vez maior produção e divulgação de inquéritos e estudos localizados acentua-se a denúncia da violação dos direitos humanos. Contudo, para além de uma parte importante destas organizações assentarem na coragem mas também num desejo de protagonismo dos seus dirigentes, que se auto intitulam guardiães da democracia, excluem das suas narrativas e acções os direitos humanos das mulheres. A segunda posição que é representada pelas OSC que tem como objectivo promover os direitos humanos das mulheres, têm mostrado um forte empenho em denunciar a violação de direitos e o desejo em construir plataformas e redes que as tornem mais fortes. Contudo, precisamos de reflectir mais sobre o nosso papel como organizações da sociedade civil e o modo como trabalhamos não só para mas com as mulheres e homens que no nosso país enfrentam as dores da pobreza, da fome e da violência. Gostariamos de evocar uma frase do dramaturgo Vlado Herzog que disse: “quando perdemos a capacidade de nos indignarmos contra as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos”.
Nota:
[1] Embora se pense que há muitas variações no conceito patriarcal e que diversas vezes somos um pouco lentas/os em estudar as variações e a inserir novos significados, de modo a sair do paradigma normal e normalizante.
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