Breves
A Covid-19 e os direitos das mulheres – 1ª parte
A WLSA começa hoje a publicar um conjunto de quatro artigos divulgando os resultados de uma pesquisa sobre a situação da Covid-19 e os direitos humanos das mulheres em Moçambique. Esta pesquisa resultou de um projecto conjunto com a Plataforma Aliadas, do CESC.
A pesquisa pretendeu identificar no contexto mundial, regional e nacional as estratégias e as políticas públicas relativamente à situação das raparigas e mulheres, analisar as narrativas e discursos das organizações da sociedade civil e instituições de pesquisa, tanto as que têm como foco os direitos humanos, como as que definem como objecto a promoção da igualdade de género, e analisar o conteúdo dos media nacionais sobre a Covid-19, com destaque para as representações sobre violência de género.
Para a realização da pesquisa foi importante a definição do grupo alvo, as mulheres que trabalham no informal, por serem das mais afectadas pela situação criada pela Covid-19, sendo muito pouco conhecidas as suas vozes, os seus problemas, necessidades e expectativas.
O trabalho decorreu de Abril a Dezembro de 2020.
Projecto: Mulheres e direitos humanos no contexto da Covid-19 em Moçambique
Autoras:
Conceição Osório
Ana Maria Loforte
A classificação pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 11 de Março de 2020 do surto da Covid-19 como pandemia vem pôr a nu um conjunto de problemas que têm sido objecto de uma enorme e diferenciada abordagem, tanto do ponto de vista das respostas sanitárias que têm sido dadas pelos Estados, como do ponto de vista da análise intersectorial e do impacto do novo vírus na vida das comunidades e de grupos específicos. Estudiosos de diferentes áreas têm trazido para o debate novas reflexões. Estas procuram, através da caracterização de modelos e políticas de desenvolvimento sócio-económico, elementos que desvendam a relação entre a mundialização da economia, os sistemas políticos e a produção de uma diversidade de posições que procuram “unificar” o global com o local, através da análise de uma relação desigual entre centro e periferia.
Isto significa ter em conta os espaços de produção e práticas hegemónicas dos modelos de desenvolvimento capitalista e as periferias que funcionam como produtoras e reprodutoras de uma lógica de dominação. Assim, se o vírus é global, ele reproduz-se através da imposição e da apropriação pelas periferias de um paradigma económico de exploração desenfreada da natureza e dos homens. Contudo, e este é um aspecto a não alienar do debate, temos a necessidade de observar a globalização, não apenas como um meio de controlo realizado pela centralidade global, mas como um processo que tem permitido democratizar o acesso à informação e ao conhecimento, unificar lutas por direitos humanos, vocalizar mundialmente as mudanças climáticas, denunciar o impacto das corporações económicas na exploração dos recursos naturais e construir pontes de entendimento sobre a humanidade que queremos ser.
Nesta linha, há três questões que se configuram como centrais: a primeira, que se constitui principalmente no início da crise pandémica é a relação entre as restrições definidas pelas diversas situações de emergência e a limitação dos direitos humanos, nomeadamente no que respeita a manifestações públicas. Esta questão está, se não resolvida, pelo menos controlada, nos países onde os regimes democráticos estão consolidados, e que possuem instâncias de mediação dos conflitos que alerta, vigiam e negoceiam a perda de direitos. Contudo, no que se refere aos Estados de tendência autoritária ou mesmo autoritários, a luta contra a pandemia ou tem sido instrumentalizada politicamente criando divisões profundas entre os poderes dominantes e @s cidad@s como é o caso do Brasil, Colômbia, Hungria e Estados Unidos da América (embora com particularidades que os distinguem), ou tem sido utilizada para legitimar a repressão e a negação da informação sobre conflitos pré-existentes à pandemia mas que se agravaram neste período. Em Moçambique, embora as liberdades e direitos não tenham sido objecto de restrição nas diferentes proclamações sobre o Estado de Emergência, há evidências de instrumentalização política da pandemia para restringir direitos. É o caso dos desaparecimentos, as ameaças e a violência exercida sobre jornalistas, a actuação brutal das “Forças da “Ordem” principalmente junto de vendedor@s informais, o controlo no acesso à informação e à actuação das organizações da sociedade civil. A produção do medo num contexto em que as respostas à pandemia reflectem a fragilidade das instituições é recentrada quando se alia ao clima de tensão, política e social um conflito armado cujas dimensões têm sido ocultadas pelo poder. Neste contexto de repressão e aproveitamento pandémico, os partidos políticos restringem a sua actuação a “lamentações”, mostrando uma enorme incapacidade na denúncia da violação de direitos humanos.[1]
A segunda questão que tem sido aprofundada ao longo dos últimos meses tem exposto a profunda desigualdade entre Estados ricos e pobres e nos Estados entre grupos sociais. Com afirma Butler, “o vírus por si só não discrimina mas nós os humanos o fazemos, modelados como estamos pelos poderes entrelaçados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo” (Butler, 2020:62). O que se tem constatado é que a declaração prevista em muitas Constituições de igual e universal acesso à saúde é uma farsa que tem sido demonstrada à exaustão um pouco por todo o mundo. Os fracos investimentos na saúde pública, o poder das seguradoras e a infame privatização da saúde informam desde logo quem tem mais oportunidade de sobreviver. Se a tod@s o vírus pode atingir, as possibilidades de prevenção, mitigação e tratamento são marcadores de uma diferenciação que atinge de forma desigual os seres humanos. Por outro lado, se o confinamento a tod@s obriga, os impactos desta medida têm um efeito desmedido sobre os que trabalham na informalidade e que representam a maioria no nosso país, ou os que estão sujeitos à flexibilização das relações de trabalho que tem conduzido aos despedimentos dos mais pobres e a um constante temor relativamente ao seu futuro. Do mesmo modo, a ausência de um sistema de protecção social, de regras que cumpram e façam cumprir o contrato social e que proteja os mais vulneráveis tem conduzido ao que se chama enfática e irresponsavelmente “uma nova normalidade”, que se traduz no aumento do fosso entre os que tudo ou quase tudo podem, e os que quotidianamente são sujeitos, por razões de sobrevivência quotidiana, à doença e à morte. Retomando as restrições do confinamento e de circulação e de ajuntamento que de uma ou outra forma grande parte dos Estados impuseram, e que o vírus desigualiza, queremos concordar com Haesbaert (2020) quando na sua análise de desterritorialização distingue o “território de contenção”, que em tempo de pandemia configura o espaço e a mobilidade dos mais pobres, e o “território abrigo” (ou como caracteriza Foucault de “território de reclusão”) daqueles que mesmo numa posição instável sob a ameaça viral, têm os meios para se protegerem. Quando analisamos as respostas dos Estados à pandemia o problema que se coloca com mais acuidade é a articulação do combate à pandemia com a sobrevivência do sector da economia, do ponto de vista do emprego e da produção de bens, sem que a lógica capitalista seja questionada. No entanto, estes problemas começam a merecer alguma atenção por parte de estudiosos, surgindo propostas de ruptura com os paradigmas assentes na exploração desregulada dos recursos, na destruição dos ecossistemas e na sobrevivência das gerações futuras.
Uma terceira questão, que tem sido abordada por feministas com Alda Facio, Sónia Corrêa e Alícia Bárcena tem a ver com os direitos humanos das mulheres no contexto pandémico. Se a surpresa, por um lado, e a ineficácia da OMS na identificação do perfil da crise tardiamente caracterizada como pandémica, e na orientação sobre as medidas de protecção a adoptar pelos Estados, pode, de algum modo, explicar a desatenção sobre os direitos humanos das mulheres, não é curial que alguns meses passados sobre o início da crise, não seja ainda colocada na agenda pública de alguns Estados a necessidade de desenhar políticas públicas de prevenção da violência de género, nomeadamente no que respeita aos direitos reprodutivos e sexuais. Na realidade os direitos humanos das mulheres continuam, ainda que de forma muito menos acentuada, a ser colocados segundo um paradigma de masculinidade, como são exemplo, os direitos no campo político, em que o acesso e o exercício ao poder é configurado por um modelo que se pretende global do ponto de vista da relação com @s eleitor@s, alienando da agenda política as especificidades das relações de poder. Contudo, e principalmente a partir de Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW, 1979), são clarificados alguns princípios e mecanismos relativamente à igualdade de oportunidades no acesso a recursos e que são da responsabilidade dos Estados. No entanto, a defesa do multiculturalismo e a interpretação relativista da diversidade cultural conduziu a que fossem precisos quase 20 anos para que a universalidade e indivisibilidade dos direitos das mulheres fossem definidos como premissas para a acção política. O mesmo aconteceu com a defesa da liberdade feminina relativamente à tomada de decisão sobre a reprodução e a sexualidade e a necessidade de desconstruir os fundamentos da desigualdade de género (II Conferência Internacional dos Direitos Humanos realizada em 1993 em Viena; o Programa de Acção da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento realizada em 1994 no Cairo; Plataforma de Acção produzida na Conferência de Beijing em 1995).
Na região e em Moçambique têm sido concebidos, como referiremos posteriormente, dispositivos legais e políticas públicas a favor dos direitos das mulheres. A questão que nós queremos introduzir desde agora é como, se a pandemia não é democrática porque afecta desigualmente as pessoas (pobres versus ricos) a níveis globais e locais, também não é democrática porque as medidas adoptadas até ao momento não têm sido suficientemente inscritas numa estratégia que visa combater uma ordem de género que a Covid-19 aprofundou.
Face ao apelo do Secretário-geral das Nações Unidas para a necessidade dos Estados adoptarem medidas de prevenção e mitigação da violência contra as mulheres e às denúncias do movimento feminista internacional sobre o impacto das restrições do confinamento e da limitação de circulação na vida das mulheres, tem sido feito um esforço para incorporar a protecção dos direitos das mulheres no combate à Covid-19. No Plano de Resposta da ONU à Covid-19 são produzidas evidências nalguns países de um aumento de cerca de 30% de casos de violência de género e são definidas um número importante de intervenções a serem desenvolvidas em todos os sectores de desenvolvimento socio-económico.
No actual quadro pandémico Moçambique encontra-se numa situação de extrema fragilidade. Com uma economia inteiramente dependente do exterior, agravada pela inversão dos investimentos externos que pareciam ter sido retomados no início deste ano, uma dívida pública extremamente pesada, a descredibilização do Estado face aos credores das “dívidas ilegais”, o país não tem, do ponto de vista económico, os meios para controlar o impacto económico.
O Estado de Emergência decretado em 30 de Março pelo Presidente da República e prorrogado até 29 de Julho de 2020 resultou num conjunto de medidas, umas de carácter estrutural que afectam transversalmente os diferentes sectores e outras medidas complementares de protecção como a desinfecção e o uso obrigatório de máscaras.
Em Moçambique, se por um lado existem políticas e dispositivos que protegem os direitos das mulheres, como é o caso da legislação sobre violência doméstica, Família, Uniões Prematuras e Sucessão e Herança, o compromisso do Estado tem sido constrangido pela inexistência de recursos. Referimo-nos, como exemplo, à orçamentação e à permanência de representações e de práticas que conservam modelos de dominação de carácter patriarcal e que influenciam os sistemas e subsistemas do Estado, o que fica claramente demonstrado pelo funcionamento da administração da justiça.
Se antes da pandemia havia evidências de altos índices de desigualdade de género, como é o caso das uniões prematuras, de uma taxa de cerca de 70% de analfabetismo, de desemprego e de ausência de mecanismos de segurança social, e de violência doméstica e sexual, com a Covid-19 o impacto sobre a vida das raparigas e mulheres é exponencialmente maior.
É neste contexto que estamos a realizar uma pesquisa onde procuraremos identificar como objectivo central o impacto da pandemia sobre as mulheres e raparigas, tendo como foco as que desenvolvem o negócio informal. Este trabalho será enquadrado pela análise das estratégias adoptadas no contexto regional e pelos países de língua portuguesa (PALOP), dos dispositivos legais que orientam a actuação do Estado Moçambicano e das organizações da sociedade civil na prevenção e mitigação da pandemia.
Referências:
Bárcena, A. (2020). Coyuntura, escenarios y proyecciones hacia 2030 ante la presente crisis de Covid-19. In: Observatorio COVID 19 en America Latina y el Caribe (disponível em: https://joserobertoafonso.com.br/lac-ante-la-pandemia-del-covid-19-cepal/, acesso a 25/5/2020).
Butler, J. (2020). El capitalismo tiene sus limites. In: P. Amadeo (coord.), Sopa de Wuhan. Pensamiento Contemporáneo en Tiempo de Pandemias, ASPO (disponível em: https://bit.ly/sopadewuhan, acesso a 30/5/2020).
Corrêa, S. (2020). Volviendo a lo de siempre: la segregación por sexo/género como medida de contención de la COVID 19. In: Sexuality Policy Watch (disponível em: https://sxpolitics.org/es/volviendo-a-lo-de-siempre-la-segregacion-por-sexo-genero-como-medida-de-contencion-de-la-covid-19-l-covid-2-2/4700/, acesso a 5/8/2020).
Haesbaert, R. (2020). Entre a Contenção e o Confinamento dos Corpos-Território: Reflexões Geográficas em Tempos de Pandemia (II). Disponível em: http://agbcampinas.com.br/site/2020/rogerio-haesbaert-entre-a-contencao-e-o-confinamento-dos-corpos-territorio-reflexoes-geograficas-em-tempos-de-pandemia-ii/, acesso a 2/8/2020.
Nota:
[1] Como exemplo desta incompetência e desvario político as exigências da Renamo, maior partido da oposição cingem-se através da voz do seu líder à inclusão dos seus membros na Comissão Técnica e Científica constituída por especialistas das diferentes áreas, com destaque para o sector da saúde pública e epidemiológica.
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