Breves
Violência doméstica: negando a manipulação dos números
Direito a resposta
Este texto foi publicado como direito de resposta no jornal O País. O texto é uma resposta ao artigo “Violência doméstica. Proposta de lei está desajustada”, por Lázaro Mabunda que apareceu no jornal O País no dia 2 de Março de 2007.
No dia 2 de Fevereiro deste ano, no jornal O País, vem publicada uma matéria sobre violência doméstica que enferma de várias inexactidões. Uma vez que se refere explicitamente ao projecto de lei contra a violência doméstica que afecta as mulheres e que nós consideramos importante para melhorar a situação dos direitos humanos das mulheres e para eliminar um dos grandes cancros da sociedade, gostaríamos de solicitar que este texto fosse publicado como direito de resposta.
A tese principal defendida pelo L. Mabunda é de que a situação hoje se inverteu e já não são só as mulheres que são vítimas, estando a crescer o número de homens que sofrem de violência perpetrada pelas suas parceiras. Portanto, uma vez que a situação mudou, a proposta de lei está desajustada. Ou seja, todo o raciocínio do autor se baseia numa evolução da situação, evolução essa que é apresentada a partir dos dados do Gabinete de Atendimento da Mulher e da Criança. É este argumento central que nós queremos discutir:
- O uso de dados estatísticos é muito importante nas ciências sociais, mas tem que se respeitar certos critérios para que sejam fiáveis. Caso contrário não têm rigor e prestam-se simplesmente à manipulação a favor de quem os usa.
- Os dados apresentados por L. Mabunda não têm data, nem estão localizados: a que anos se referem? São dados colhidos nos Gabinetes em todo o país ou só em Maputo? Por outro lado, em que condições foram recolhidos esses dados?
- As questões acima apontadas devem ser esclarecidas para que o leitor possa decidir por si mesmo se a informação que lhe dão é ou não fiável.
Independentemente da fonte a que recorreu o autor, nós temos outros dados que nos dão uma visão diferente do fenómeno da violência doméstica, e que foram recolhidos no âmbito de um projecto de pesquisa da WLSA Moçambique: o levantamento das ocorrências foi feito na cidade e província de Maputo (2566 e 665 casos respectivamente), na cidade da Beira e na província de Sofala (distritos do Dondo e Nhamatanda – 3911 casos no total da província), na cidade e província de Inhambane (distritos da Maxixe e Massinga – 452 casos no total da província). O período coberto foram os anos 2004 e 2005.
A diferença do número de casos entre cada província não significa que um local seja mais violento que outro, mas que o número de Gabinetes ou o tempo de funcionamento são maiores.
A leitura e análise dos dados recolhidos deve ser feita com algumas precauções:
- O levantamento de dados teve como base a ficha de registo de ocorrência: é um formulário que se deve preencher para cada queixa que dê entrada no Gabinete.
- A formação dos agentes nos Gabinetes é variável, o que se reflecte na maneira como são preenchidos os formulários de registo de ocorrências: ou incompletos, ou com as ocorrências mal classificadas em termos de tipo de crime (por vezes existe um desconhecimento da lei).
- A pessoa que apresenta a queixa, independentemente da ocorrência denunciada ser ou não considerada crime, aparece sempre como “vítima”; p.e., se um homem vem queixar-se de que a sua mulher ou companheira o deixou e que ele a quer de volta, é registada como “vítima”. Neste caso, ele seria “vítima de abandono de mulher” e não “vítima de agressão perpetrada pela mulher”.
Portanto, os dados sobre as denúncias aos Gabinetes não devem ser lidos de forma isolada, mas relacionando o sexo de quem queixa com o tipo de crime (ou não crime) que é objecto da denúncia.
Os dados que temos dizem o seguinte:
Nº total de queixas que deram entrada nos Gabinetes nos locais em estudo, 2004-2005 | 7.584 |
Nº de queixas em que a vítima é do sexo feminino | 5.910 |
Nº de queixas em que a vítima é do sexo masculino | 1.610 |
Sem sexo (não se preencheu na ficha) | 64 |
Quando a vítima é do sexo feminino, 5.010 agressores são do sexo masculino (de um total de 5.910), sendo o grau de ligação com o agressor, por ordem de importância: parceiro, ex-parceiro e ex-marido, marido, namorado, ex-namorado (estes casos somam 4.125 de um total de 5.910).
Quando a vítima é do sexo masculino, 978 agressores são do sexo feminino (de um total de 1.610), sendo o grau de ligação com o/a agressor/a, por ordem de importância: parceira, ex-parceira, esposa, mãe do filho, namorada e ex-namorado (estes casos somam 840 de um total de 1.610).
Agora quanto aos motivos das queixas, importa realçar que dos 1.610 homens que se queixam:
- Somente 98 queixas dizem respeito a agressões físicas de menor gravidade (Ofensa Corporal Voluntária Simples) cometidas pela esposa parceira; 14 queixas referem-se a agressões físicas consideradas graves (Ofensas Corporais Voluntárias Qualificadas).
- As outras queixas tratam de: recusa em contribuir para despesas na casa; ofensas morais; expulsão do lar; violência económica (podem ser muitos crimes, mas a ficha não detalha); regulação poder parental.
- Muitas das queixas não foram tipificadas (N = 34), enquanto outras dizem respeito a ocorrências que não são considerada crime (N = 138).
É de referir também que a pesquisa mostrou que as mulheres, na sua maioria, só vêm queixar-se de que são vítimas de violência por parte do marido/parceiro depois de muitos anos a sofrerem caladas. Num caso extremo, encontramos uma mulher que só veio à polícia depois de 17 anos, para além daquelas que nunca denunciam o que sofrem em casa. Para isto concorrem as várias instituições patriarcais que ensinam as mulheres a aceitar como legítimo o uso de violência por parte do seu marido ou companheiro.
Em contrapartida, a maioria dos homens que vêm queixar-se de uma agressão por parte da sua parceira, fazem-no depois da primeira ocorrência. Não admitem a agressão, e embora não se considerem ameaçados na sua integridade física, sentem-se desrespeitados.
Portanto, quando um homem e uma mulher se queixam de terem sido agredidos pelos seus/suas parceiros/as íntimos/as, estamos a falar de situações dificilmente comparáveis. As realidades sociais, culturais e económicas que conformam as possibilidades e os lugares respectivos de mulheres e de homens (relações de género) devem intervir na análise destes dados.
Uma última observação prende-se com a crítica que é feita por a proposta de lei se basear em medidas de excepção, destinadas a acelerar a igualdade entre homens e mulheres:
- Estas “medidas de excepção” vêm como recomendação do Artigo 4º da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW, pela sua sigla em inglês), ratificada pela Assembleia da República, através da resolução nº 4/1993 (BR, I Série, nº 22, de 2/6/1993).
- As medidas especiais, também chamadas de “discriminação positiva”, devem ser eliminadas quando a situação de desigualdade que lhe deu origem estiver sanada.
A tomada de medidas deste tipo não é uma inovação: são exemplos de discriminação positiva as políticas sul-africanas destinadas a promover a população negra, discriminada e em situação de desigualdade devido a tantos anos de vigência de um sistema como o apartheid. Tanto quanto sabemos, a maioria das pessoas concorda e acha justas estas medidas do governo sul-africano, pois as injustiças históricas podem e devem ser corrigidas.
No entanto, quando falamos da exclusão e da discriminação das mulheres, que também é uma das grandes injustiças históricas, as medidas de excepção são consideradas radicais e sem sentido. Perguntamo-nos porquê. No primeiro caso temos um sistema de dominação com base na raça, e no segundo caso um sistema de dominação com base no sexo. Em relação ao primeiro há um consenso de que é inadmissível; em relação ao segundo costuma haver uma grande tolerância social.
Com a proposta de lei contra a violência doméstica, nós organizações da sociedade civil, queremos ter um instrumento legal importante para combater um fenómeno que tem contribuído para retirar às mulheres o controlo das suas próprias vidas, para limitar o seu acesso aos recursos e, em última instância, pôr em perigo o seu direito à vida. Somos cidadãs e cidadãos honestas/os que lutamos por justiça e igualdade para todos. Mulheres e homens devem poder viver sem temor e com toda a liberdade, de acordo com os princípios estabelecidos na nossa própria Constituição da República.
Assinam:
WLSA Moçambique
MULEIDE
AMMCJ
Liga Moçambicana dos Direitos Humanos
ler todo o blog, muito bom
Realmente a realidade de violência doméstica contra a mulher no nosso país é crítica, uma vez que diariamente verifica-se aumento das vítimas. Claro que há grandes esforços em sensibilização, porém como a questão é bem mais profunda, isto é, o ensinamento patriarcal intergeracional que o homem e a própria mulher encontram na sociedade, conduz a que este mal se repercurta não só no ambiente doméstico, como também em instituições formais. Analisando um pouco o texto acima sobre os pronunciamento segundo os quais, “a violência doméstica mudou de atitude, ou seja, já não são apenas as mulheres que sofrem, os homens tamém e vítimas de mulhres…”. A L.Mabunda está apenas transportando os ensinamentos adquirido ao longo do seu crescimento à instituição que actualmente dirige. Não teve o cuidado de analisar a situação em diversos ângulos, como aliás o artigo apresenta. A atitude não se deveu a falta de capacidade, mas sim às vicissitudes tradicionais e patriarcais a que está emboída. O pensar e o perpetuar que a violencia é também feita aos homens,é encontrada em grande maioria de mulheres que até inclui as instruídas. Para dizer que a luta pela igualdade de género, por não a violência contra a mulher e criança só está começando. Enquanto a mulher for a principal autora de violação dos seus próprios direitos devido aos ensinamentos de que ela deve servir o homem, o mundo está longe de alcançar o prometido. Só para citar exemplos, em casa é a mulher-mãe que perante 2 filhos (rapaz e rapariga) onde até a rapariga é a mais nova, chegado o pai de serviço, a mãe sempre manda a menina novinha colocar pratos na mesa, dar agua ao pai para lavar as mãos etc enquanto o menino mais velhinho está a jogar ou deitado no sofá. Só esta atitude da mulher explica que o lugar da pequena menina é doméstico, que tem papel secundário, subalterno e de servir o homem. A SOGRA-MULHER, CUNHADA-MULHER são as que maltratam a vindora casada com o filho, irmão, enquanto o SOGRO-HOMEM nada diz.
Contudo, continuemos a tentar mudar de atitude para o mundo ser melhor no futuro longícuo.