Conluios para a exclusão social: empresas mineradoras e agentes de regulação estatal
Este texto, da autoria de Conceição Osório, foi apresentado num seminário sobre o “Impacto da indústria extractiva nas comunidades. Responsabilidade social das companhias”, realizado em Setembro de 2016, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A apresentação foi elaborada com base nos resultados preliminares da pesquisa sobre “Corporações económicas e expropriação: raparigas, mulheres e comunidades reassentadas no distrito de Moatize” (2016-2017).
A partir do ano 2000, novas prospecções mostraram não só que as antigas reservas de produtos carboníferos eram mais vastas do que se penava, como também se descobriram novos recursos naturais no Centro e Norte do país. No distrito de Tete, concretamente, novas concessões para exploração do carvão foram feitas, nomeadamente a empresas como a Vale e a Riversdale (acções desta empresa foram compradas pela Rio Tinto e mais tarde pela ICVL).
O que era suposto representar um desenvolvimento da região, com novas indústrias, formação e integração de força de trabalho e melhoria do nível de vida das populações, traduziu-se, na desestruturação da agricultura familiar na maior parte das zonas periféricas, que constituía a principal fonte de subsistência das população, na poluição dos recursos naturais e no empobrecimento em geral.
A minha apresentação procura dar conta do impacto da mineradora nos direitos humanos e no papel do Estado na defesa das comunidades. Assim, vou centrar-me em dois aspectos ligados ao reassentamento das comunidades atingidas pela acção das empresas mineradoras num distrito do centro de Moçambique (o distrito é Moatize e as empresas são a Vale e a ICVL). Um primeiro aspecto é a “expulsão” das pessoas dos seus locais habituais de residência (cerca de 1360 famílias no caso da Vale e 736 famílias reassentadas pela ICVL) e o seu envolvimento no processo de reassentamento. Um segundo aspecto é a responsabilidade social das empresas no que se refere aos direitos humanos das pessoas, particularmente das mulheres.
Antes de desenvolver estes pontos vou falar brevemente sobre a legislação e sua aplicação, no que concerne à indústria extractiva e ao impacto ambiental. Em 2014, sob pressão da sociedade civil, os dispositivos legais que orientavam as concessões mineiras e a política do ambiente foram elaborados e corrigidos de modo a tornar mais transparente e devidamente publicitada a celebração dos contratos e os mecanismos de fiscalização do seu cumprimento, incluindo a revogação das concessões. Podemos afirmar que a legislação pretende estar de acordo com os compromissos assumidos internacionalmente, centrando-se o problema na sua aplicação, nomeadamente na fiscalização do Estado sobre as actividades empresariais e na regulamentação de alguns dos seus aspectos, como as compensações e as indemnizações às comunidades.
Sendo o Estado moçambicano extremamente frágil e clientelar, do ponto de vista da independência das suas instituições, nomeadamente da justiça (existindo uma promiscuidade entre o poder político, as elites económicas e as multinacionais), a monitoria da aplicação da lei ou não é feita, com o argumento que sendo as empresas sediadas na capital não pode haver iniciativa do governo local para desencadear operações pontuais de fiscalização ou, o que a nosso ver é demonstrativo da exposição do Estado aos interesses das multinacionais, são as próprias empresas que elaboram os relatórios que validam o cumprimento da lei. Por exemplo, são as auditorias encomendadas e supervisadas pelas empresas que sustentam a posição do Estado, não existindo nenhuma interferência por parte deste mesmo Estado em verificar o rigor dos resultados apresentados. O mesmo se passa com a lei do ambiente, que em princípio refere que devem ser elaborados periodicamente, pelo Estado, relatórios sobre o cumprimento das regras ambientais, mas que na verdade são produzidos pelas mineradoras, sem verificação do Estado. Questionadas as autoridades sobre a poluição dos rios e detonações nos espaços onde ainda vivem comunidades não reassentadas, estas afirmam que são “as mineradoras que possuem os aparelhos de medição e que há confiança no que essas mesmas empresas comprovam”. (Apenas um aparte para referir que procurámos saber da existência desses aparelhos de medição do ar, tendo-se constatado que há longo tempo que estavam avariados).
Estes são pequenos exemplos que mostram, desde já, que quando falamos de responsabilidade social das empresas, a realidade é que estas têm mais em conta a realização de acções que as apresentem como “benfeitoras” da sociedade onde operam1, do que com o bem-estar das comunidades, melhoria das suas condições de vida e respeito pelos direitos humanos. Um exemplo de que a responsabilidade social tem pouco a ver com a realidade, mas que aparentemente aparece como um elemento importante para o desenvolvimento social, é o apoio à formação profissional em que a Vale se empenhou. A questão é que embora a empresa refira um grande número de formados, a maioria não foi absorvida pela empresa e não foi dado apoio para o auto emprego. Ainda contrariando a posição da Vale que afirma ter implementado um centro de emprego, estranha-se que apenas dois homens da comunidade de Cateme tenham encontrado trabalho na empresa, pese embora existir aí um número não despiciendo de pessoas formadas em cursos técnico profissionais ou pessoas com nível médio.
E a primeira questão que se levanta no processo de reassentamento é antes de mais a informação e a consulta das comunidades a reassentar. Embora os representantes do governo e das empresas falem em consultas públicas e em actas assinadas, a verdade é que as muitas pessoas por nós entrevistadas, afirmaram que os encontros se limitavam a tentar convencê-los de que uma mudança de local iria trazer benefícios para as suas vidas. Se nos primeiros encontros realizados num ambiente de festa (amplificada pela oferta de bebidas tradicionais, seguindo o exemplo colonial de expropriação) as populações se limitavam a saudar as promessas futuras, o certo é que nas últimas consultas e reconhecendo já os lugares para aonde as queriam transferir, as pessoas rejeitaram a escolha feita pelas autoridades governamentais acabando por ser forçadas a sair com ameaças e frases com estas: “vocês vão sair porque estão a cagar em cima de dinheiro” referindo-se ao carvão: ou então: “vocês vão sair quer queiram quer não” e “ainda vocês vão sair e depois vão-se habituar lá onde vão viver”. À violência narrativa do poder, se juntou a cooptação das lideranças comunitárias pelas empresas e dirigentes locais. Do mesmo modo, embora havendo uma comissão de reassentamento dirigida pelo sector do ordenamento territorial, deixa muito a desejar a sua eficácia em proteger os direitos das pessoas afastadas das suas terras.
Um dos principais problemas que se levantam com os planos de reassentamento é a ausência de estudos antropológicos sobre a população. Por exemplo, no reassentamento das famílias, à pergunta feita pelas empresas sobre qual a sua actividade principal, a maioria das pessoas respondia que era o trabalho na machamba, quando na realidade, desenvolviam outras actividades (como a olaria, a construção de tijolos e a venda de carvão e de brita para a construção, e o comércio no mercado local). Esta situação levou as empresas e o governo a assumirem que se tratava de comunidades rurais, quando na verdade, vivendo nas zonas periféricas da vila, essas populações deviam ser caracterizadas como semiurbanas2. Disto resultaram duas consequências que configuram violação de direitos humanos. A primeira foi a separação de famílias alargadas em que uma parte era deslocada para as novas áreas e outra (onde houvesse um membro que se declarasse como trabalhador formal ou informal), era fixada na vila. A outra consequência relacionada com a anterior foi uma profunda depressão das comunidades que afastadas das suas terras ancestrais não sentem até hoje que as novas terras lhes pertençam, sendo esta uma das razões que explica a auto exclusão das populações dos projectos de geração de renda que as empresas pretenderam implementar e que tomam como sua responsabilidade social. Há que não esquecer que alguns destes projectos, como a criação de frangos, a abertura de hortas ou a introdução de novas técnicas agrícolas nem envolveram a discussão com as pessoas, nem tiveram em conta as práticas realizadas anteriormente, não contando ainda com factores muito importantes como o transporte e a existência de mercado para absorver a produção3. Isto é, as empresas em conluio com uma espécie de neutralidade “concordante” do governo, limitaram-se a transpor para as comunidades experiências realizadas noutros países ou o que pensavam constituir o interesse das comunidades.
Por outro lado, se à primeira vista as compensações prescritas na legislação foram em parte cumpridas (como a construção de escolas e unidades sanitárias e casas), há que referir que, por exemplo, à inabitabilidade de algumas casas, às dificuldades em transporte e à falta de regulamentação das compensações e indemnizações, a que se junta a inexistência de programas que permitam às pessoas darem continuidade às fontes de vida, dificultam enormemente a sobrevivência das famílias. Como nos disse um entrevistado de uma organização da sociedade civil, “o que hoje vemos é que os processos não foram inclusivos nem justos”.
A “inconformação” com a situação resultou em manifestações das e dos reassentados/as, brutalmente reprimidas pelas forças policiais. Em resposta às lideranças cooptadas pelas empresas estão a surgir hoje grupos de moradores e comissões locais dos recursos naturais que em conjunto com organizações da sociedade civil estão a realizar acções de capacitação sobre a lei, (nomeadamente sobre a percentagem (de 2,75%) sobre o imposto de produção das empresas que deve ser entregue às comunidades), apoiando também na elaboração de cartas e requerimentos dirigidos às instituições do estado. As principais reclamações das comunidades (que vêem nas empresas e no governo o mesmo centro de poder e de tomada de decisões) são as seguintes: a terra não tem condições para produção e ainda não foram distribuídos DUATs, a falta de transporte, a ausência de emprego (localmente e nas empresas)4 e de alternativa para as actividades que realizavam anteriormente, a insuficiência da água e a sua má qualidade e o mau funcionamento e insuficiência dos serviços públicos, a construção de locais para práticas religiosas e a exumação dos mortos do local de origem para a nova área de ocupação.
No que se refere aos direitos humanos das mulheres, embora em Moçambique haja uma legislação comprometida com os direitos das mulheres, na prática (de que as mulheres reassentadas são exemplo), a violação dos direitos humanos fazem parte do quotidiano das mulheres.
Se não podemos afirmar que a violação de direitos humanos é resultado da instalação da indústria extractiva, fica claro que pelas práticas das empresas mineradoras, homens e mulheres vêm-se excluídos de direitos, por exemplo, os homens quando se lhes pergunta o que fazem para sobreviver dizem “eu fico” ou “não tenho que fazer e não tenho para onde ir”, expressando a espera por alguma saída para algum trabalho (já que nas suas zonas de origem não faziam produção agrícola, considerando o trabalho nas machambas como um insulto, e como coisa de mulheres), compete às mulheres cuidar da sobrevivência familiar. Se no passado também era assim, como habitantes de uma vila, elas tinham outras actividades, como venda de roupa usada, comércio de produtos agrícolas, venda de carvão, que lhes dava uma relativa independência económica dos seus parceiros. Nas áreas reassentadas a sua fonte de sobrevivência é tirar da terra o pouco que ela lhes dá.
Quando do reassentamento as empresas que se tinham comprometido a dar dois hectares de terra às famílias chegaram a um acordo em que um dos hectares seria substituído por pouco mais de 119 mil meticais (4000 USD ao câmbio da altura), sendo esse dinheiro depositado em nome do chefe de família, na sua maioria homens. Estes, sem consulta às parceiras, gastaram essa quantia com bens de consumo e para se casarem com segundas e terceiras mulheres, conduzindo ao aumento da violência doméstica das primeiras mulheres, que não usufruíram de nenhuma parte desse valor e que na maioria não aceitava a poligamia. O mesmo se passou com a cesta básica que era fornecida às famílias e que os homens vendiam e faziam a redistribuição pelas novas mulheres.
A mulher encontra-se numa posição de grande solidão. Os antigos laços de solidariedade, criados nos antigos lugares, como o mercando e o fontanário e as relações com as famílias de origem ainda não foram reconstituídos. Um factor que agrava a situação das mulheres é o facto de não haver instituições onde possam denunciar a violência doméstica. Esta situação não estimula o acesso e o exercício de direitos.
Por outro lado, há a considerar a ausência de uma política de divulgação de direitos, nomeadamente os direitos sexuais e reprodutivos, o que conduz ao reforço da conformação com a dominação masculina, que se reflecte em discursos como: “o homem é que tem pensamento, ele é quem manda e é quem deve mandar”. A falta de instituições afecta toda a comunidade que não tem mecanismos onde colocar os seus problemas, como acontecia nas zonas de origem.
Contudo, é de mencionar que estimuladas por algumas organizações da sociedade civil, começaram a surgir algumas formas de organização orientadas para o empoderamento económico das mulheres. Do mesmo modo, tem havido iniciativas de divulgação de legislação (nomeadamente a Lei da Família e a Lei Contra a Violência Doméstica), embora ainda com poucos resultados. Parece-nos que da parte das organizações que trabalham com mulheres reassentadas é necessário insistir na reconstrução das identidades, ao mesmo tempo que se deve estimular a iniciativa das mulheres para o associativismo, a tomada de decisões na família e a sua participação na definição dos projectos e acções a desenvolver nas comunidades pelas empresas e governo.
Finalmente podemos afirmar que a inversão da situação passa pela combinação de 3 aspectos: a intervenção do Estado na protecção dos direitos das comunidades, o aumento da fiscalização das actividades das empresas de modo a regular a exploração mineira que em Moçambique, tal como em outras partes do mundo visa “aumentar os benefícios em função do capital estrangeiro”, um maior conhecimento pela população dos seus direitos e uma maior sensibilização para a necessidade do envolvimento das pessoas na definição das actividades no contexto da responsabilidade social das empresas.
As organizações da sociedade civil têm nesta estratégia um papel chave. Têm contribuído para o reforço de associações, para a divulgação dos direitos das comunidades face à lei do ambiente e da mineração e dos direitos de saúde. No entanto, apesar de terem conseguido travar alguns dos aspectos mais abertamente violadores de direitos humanos, ainda precisam de se fortalecer, criando redes mais eficazes e estratégias mais integradas na sua acção.
Finalmente, por outro lado, não há uma perspectiva de género na sua actuação, na medida em que não tentam subverter os modelos sociais que as subalternizam, levando-as a questionar os direitos “naturais” dos homens sobre as mulheres.
Por Conceição Osório
- Se tivermos em conta o impacto sobre as zonas de exploração, constata-se que o impacto foi negativo, devido à poluição do rio, ao impedimento de circulação (as cancelas) e ao aumento do custo de vida.
- Aliás isto é ainda objecto de discussão, não se percebendo que havendo tantas áreas disponíveis na periferia de Moatize deslocaram as comunidades para tão longe.
- A Vale implementou um projecto de hortícolas (horta modelo) em condições laboratoriais, dificilmente reproduzíveis para as características de terras aráveis, para onde foram desalojadas a maioria das famílias objecto de reassentamento.
- Até hoje não se entende a não ser por uma estratégia de “colmatar” conflitos que os moçambicanos, mesmo em trabalhos que requerem pouca qualificação terem vindo de fora do distrito e principalmente das comunidades afectadas.