Estratégias de sobrevivência de um grupo de viúvas organizadas em associação, cidade de Maputo, 2008
Karina Dulobo
Com este trabalho1 pretende-se analisar as estratégias de sobrevivência das viúvas da AVIMAS (Associação das Viúvas e Mães Solteiras). Procuramos tratar a associação não só como pólo mobilizador de recursos, mas também como oportunidade de empoderamento, pela interacção entre as associadas. Buscou-se também avaliar as representações que estas mulheres têm de si próprias como “mulheres sem homem”. As mulheres viúvas entrevistadas neste estudo caracterizam-se por terem poucas habilitações e vivem em situações de maior vulnerabilidade advindas com a morte de seu marido, nas suas vertentes económica e simbólica, entre outras.
Para nós foi importante estudar este tema, pela constatação de que a viuvez deixa as mulheres ainda mais vulneráveis, levando-as a uma instabilidade que tem implicações várias, tais como a sua exclusão social e a dos seus filhos, a desagregação e desintegração do tecido familiar, a discriminação social, entre outros factores. Se considerarmos a situação da pandemia do SIDA2, com a redução da esperança de vida e do aumento da taxa de mortalidade, o conhecimento sobre este problema pode ajudar a delinear intervenções que não só visem melhorar as condições de vida das viúvas, mas que combatam também as várias formas de discriminação que contribuem para coartar os direitos humanos destas mulheres.
Assim, pois, a situação de instabilidade económica e social acarretada pela viuvez remete-nos não apenas à perda dos rendimentos produzidos por um membro activo do agregado familiar, mas ao questionamento das normas e valores da sociedade. Nesta ordem de ideias, compreender a forma como se desenvolvem e organizam todo um conjunto de estratégias e práticas que permitem a estas mulheres manterem as suas unidades domésticas e fazer frente às adversidades do quotidiano, constitui um dos desafios do presente artigo. Incluem-se as dimensões sociais e culturais que no nosso entender fazem parte integrante das estratégias de vida dessas mulheres. Pretende-se identificar o perfil socioeconómico das viúvas da AVIMAS, captando a subjectividade das suas acções, analisar as estratégias adoptadas pelas viúvas para a sua sobrevivência, em tanto que responsáveis por famílias monoparentais, identificar como lidam com alguns conflitos, em especial no que concerne à repartição de bens (a herança, por exemplo) e as acusações de homicídio no contexto de relações desiguais de género e poder.
O grupo de mulheres viúvas analisadas são de diferentes idades (32 a 71 anos de idade), tendo-se associado para arranjar formas de sobreviver através dos créditos fornecidos pela associação para o desenvolvimento de pequenos projectos geradores de rendimento, para beneficiarem de cursos que melhor as habilitem para o mercado de trabalho (cursos de alfabetização e de corte e costura), e para obterem assistência jurídica (prestada pela AMMCJ – Associação Moçambicana das Mulheres de Carreira Jurídica).
As viúvas da AVIMAS buscam conforto entre elas dado que estão na mesma situação de instabilidade socioeconómica, muitas vezes resultante da falta de ajuda por parte da família do marido. O que acreditamos ser importante salientar é que as viúvas entrevistadas recorrem à AVIMAS para, através desta associação, conseguirem resolver os seus problemas, tanto económicos como sociais. Daí que esta associação actue como uma verdadeira rede social.
Neste trabalho partimos do pressuposto de que a viuvez acentua ainda mais a instabilidade económica e social de algumas mulheres. Após a morte dos seus companheiros muitas delas ficam numa situação de maior vulnerabilidade financeira por acreditarem estarem mais empobrecidas, sem o provedor da família e aquele que era visto pela sociedade como o seu “protector”.
O que é a AVIMAS?
A AVIMAS é uma associação humanitária não governamental, criada a 15 de Junho de 19973, por mulheres viúvas, mães solteiras e mulheres chefes de agregados familiares que tinham a responsabilidade de sustentar as suas famílias com carências de recursos. Desde 2002 tem a sua sede no Distrito Municipal nº 5 (Bairro Jorge Dimitrov), na cidade de Maputo. Esta surgiu com o objectivo central de apoiar a integração de mulheres chefes de agregado familiar, sejam elas mães solteiras ou viúvas. Esta organização considera que podem ser membros:
i) Viúvas;
ii) Mães solteiras;
iii) Mulheres chefes do agregado familiar.
A AVIMAS tem como missão4:
- “Promover a defesa e exercício dos direitos das mulheres chefes de agregado familiar, crianças, mães solteiras e viúvas; sendo estes direitos parte integrante dos direitos humanos reconhecidos pelas Nações Unidas”.
- “Promover o desenvolvimento das mulheres através de educação, informação e serviços de qualidade, em parceria com outros agentes de desenvolvimento integrando a sociedade civil e o sector público”.
A associação conta com aproximadamente trinta e três trabalhadores5, sendo nove homens e vinte e quatro mulheres. De acordo com as palavras proferidas em 2005, pela presidente da AVIMAS, Orlanda Pindelane6:
- “Foi um início conturbado, pois a maior parte das mulheres era iletrada e a única preocupação era como sustentar a família. Não havia pretensões de criar uma associação, nem sequer sabíamos como isso era feito. Tivemos imensas dificuldades mesmo para escolher o nome. Não tínhamos sede própria e encontrávamos onde era possível. Tivemos que contar muito com a solidariedade de outras organizações que nos cediam espaços para nos reunirmos com carácter provisório, mas a associação foi crescendo em número de afiliados e tornou-se impossível continuar em espaços alheios. Por isso tudo, temos muita satisfação em termos conseguido formalizar em 2000 e adquirido sede própria, que é a casa de todas as viúvas. Temos também dois núcleos, um no bairro da Maxaquene e um em Ndlavela”.
Na mesma ocasião, foi referido que esta associação desenvolve actividades de geração de rendimentos, mas de pequena escala. Montou ainda o Centro de Formação da Mulher, onde as associadas aprendem a bordar e corte e costura. As vendas feitas pelas associadas possibilitam a obtenção de algum rendimento para elas e para custear a aquisição de material de trabalho e a formação de pessoas sem possibilidades de pagar.
Esta associação possui uma pequena machamba, um cabeleireiro e um projecto de criação de frangos que são entregues a revendedoras a preços baixos, para que elas possam obter os seus lucros. No que concerne aos objectivos da Associação podemos verificar que numa primeira fase o enfoque era na educação legal e sobrevivência.
Orlanda Pindelane descreveu os objectivos centrais da associação nos seguintes termos:
- “O que mais queremos é ajudar a mulher a conhecer os seus direitos e a garantir o sustento e a saúde da sua família. Não é possível falar de direitos humanos a pessoas que não sabem se vão jantar, por isso juntamos tudo, pois se a mulher tiver o que comer já pode lutar contra a violência e outros males. Acolhemos as mulheres e damos-lhes o apoio de que precisam, na medida das nossas possibilidades. Temos conselheiras que são senhoras com muita experiência que conversam e aconselham as mulheres quando chegam à Associação. Muitas delas acabam por se filiar na AVIMAS”7.
Os objectivos da associação definem-se como sendo o acolhimento de “chefes de agregados familiares, mães solteiras e viúvas com base na sua livre filiação”, o apoio à sua integração social, em especial no processo de desenvolvimento socioeconómico e na defesa dos seus direitos em casos de conflitos8.
Como estudar e tratar o tema da viuvez das mulheres?
Afigura-se pertinente ter uma ideia de como as viúvas da AVIMAS gerem a situação económica e quais são as estratégias de sobrevivência por elas aplicadas. Dados estatísticos do II Censo do Recenseamento Geral da População e Habitação (1997) mostram que na cidade de Maputo há 19,8% de mulheres viúvas. Contudo, acredita-se que este número aumentou em função de doenças que têm ocasionado muitas mortes, como é o caso do VIH/SIDA. Para Gameiro (1988) a crise de viuvez abala mais a viúva caso a morte do marido seja repentina, ou seja, caso não tenha doença crónica grave. Ela passa do status de casada ao de viúva.
De um modo geral, e no contexto moçambicano em particular, não existem ainda muitos estudos que tratam especificamente desta problemática. Contudo, a questão de como as viúvas conseguem sobreviver após a morte do marido aparece como subsídio ao facto da mulher viúva ser discriminada pela família do falecido marido. A relação entre a viúva e a família do marido é quase sempre carregada de conflitos de vária índole. A começar pelo facto de esta ser acusada de feitiçaria, de o matar e até mesmo de o ter traído. No meio urbano, que é onde se inserem as viúvas estudadas, existem mais dificuldades de sobrevivência, os altos índices de desemprego e o facto de a percentagem de analfabetismo ser maior entre as mulheres (68,8% em 2003)9. Apesar dos notáveis avanços na educação, faz com que recorram a formas de sobrevivência na esfera informal, muitas vezes com o suporte de redes sociais, de que a AVIMAS é um exemplo.
Ajustar-se à viuvez é doloroso e traumático. Comporta situações difíceis e complexas como seja a educação dos filhos, a gestão diária de problemas diversos e a obtenção de dinheiro para fazer face a despesas do quotidiano. A vida das mulheres e dos seus dependentes sofre assim uma mudança brusca e definitiva. Com a morte do marido algumas viúvas acham que perdem o seu status na sociedade, onde uma mulher estar sozinha é considerado “anormal”.
As estratégias desenvolvidas pelas viúvas da AVIMAS para a sua manutenção e dos seus dependentes implicam uma interacção com o mundo exterior que passa e é intermediado pela AVIMAS através das acções desenvolvidas de forma individual ou colectiva. Pretendemos captar as acções das mulheres viúvas, os seus desejos, as suas necessidades, em função do apoio que esperam. Pretendemos também interrogarmo-nos sobre o sentido que as mulheres que são objecto de estudo dão às suas acções e aquilo que esperam dos outros com quem se relacionam, sejam eles filhos, amigos, parentes diversos.
Partimos do princípio que cada uma das mulheres viúvas, no combate pela sobrevivência das famílias, desenvolve um conjunto de acções destinadas a encontrar através da AVIMAS e seus membros a sua materialização. Elas não se baseiam apenas em si mesmas, conscientes do valor desta associação integram-se nela com fins diversos que são importantes para a sua manutenção e inserção social.
Ao buscar compreender como as viúvas da AVIMAS geram a situação económica delas, optou-se pelo uso do método qualitativo que compreendeu a pesquisa bibliográfica de obras cujas abordagens teóricas permitiram a explicitação dos conceitos seleccionados e do quadro teórico para a análise do nosso objecto de estudo.
A colecta de dados, ou seja os depoimentos das viúvas desta associação (AVIMAS) foram feitos através de entrevistas semi-estruturadas o que permitiu explorar mais as nossas questões. As perguntas foram abertas e direccionadas dado que as viúvas não se abriram muito logo a priori.
O método qualitativo também privilegia as crenças, motivações, sentimentos dos actores e valores dentro dum contexto de significados. Estas entrevistas foram acerca da vida, experiência, de aproximadamente 19 viúvas com idades compreendidas entre os 32 e os 71 anos. Todavia, seleccionamos apenas dez para análise porque as suas histórias pareceram-nos mais adequadas aos objectivos pretendidos ligados às estratégias de sobrevivência.
Nas entrevistas analisamos os percursos e as experiências vividas por estas mulheres viúvas, tendo em atenção que, muitas vezes, a viuvez é acompanhada por um comportamento depreciativo para com as mesmas, por parte da família do falecido marido; incluindo a culpa que lhes atribuem em relação à morte do cônjuge, o que constitui uma violência, e consequentemente, uma violação explícita dos direitos humanos das mulheres.
O inquérito por questionário aplicado neste caso foi o de “administração indirecta” visto que as respostas foram escritas pela inquiridora. Os critérios usados para a selecção das entrevistadas foram: idade, número de filhos, tempo de viuvez e tempo de filiação à AVIMAS. A tabela a seguir sintetiza o universo do grupo entrevistado.
Nome das entrevistadas | Idade | Nº de filhos | Filiação à AVIMAS (ano) | Tempo de viuvez (anos) |
Adelina | 46 | 3 | 2007 | 1 |
Ester | 37 | 4 | 2008 | 5 |
Felizarda | 60 | 5 | 2007 | 6 |
Filomena | 57 | 0 | 2008 | 1 |
Graça | 32 | 2 | 2005 | 3 |
Isabel | 50 | 2 | 2008 | 1 |
Madalena | 67 | 4 | 2008 | 10 |
Maria | 71 | 5 | 1997 | 22 |
Roda | 51 | 5 | 2007 | 6 |
Teresa | 46 | 6 | 2005 | 5 |
A tabela acima tem como objectivo apresentar a relação existente entre a idade, o número de filhos, o tempo de viuvez e o tempo de filiação na AVIMAS. Nota-se que em média elas têm aproximadamente quatro filhos, e ainda vivem com outros membros, como sobrinhos, o que torna a sua situação ainda mais difícil, pois têm de garantir o sustento diário dos seus dependentes.
A idade das entrevistadas gira em torno de 52 anos. Em geral, o tempo de filiação à AVIMAS é igual ao tempo de viuvez, o que significa que a AVIMAS também foi a alternativa buscada após a morte do marido/companheiro para sobreviverem e foi lá que encontraram o apoio e o caminho para desenvolverem uma actividade e lutarem contra as limitações que surgiram.
A partir da análise das suas faixas etárias entende-se que elas são mulheres maduras e procuram formas No que concerne à renda por elas auferida, ficou claro nas entrevistas que não possuem uma renda fixa. Antes de se filiarem à AVIMAS já vendiam no mercado informal, e mesmo aqui a receita diária variava muito. Outras trabalhavam na machamba de um proprietário, a troco de produtos agrícolas ou dinheiro. Contudo, a maioria delas era doméstica e dependia estreitamente do seu companheiro.
O Acesso e Controle dos Recursos
A mulher viúva, ao assumir a função de chefe de agregado familiar, após a morte do marido, não vê traduzida na prática uma mudança da realidade com o controle dos recursos por ela mesma produzidos, dado que os mesmos podem ficar nas mãos dos seus filhos mais velhos ou dos familiares do seu falecido esposo. Masinde10, na tentativa de procurar clarificar e distinguir acesso e controle dos recursos, propõe-se a estabelecer a separação analítica entre os dois termos pondo-os em ligação com o poder. Para esta autora, “O acesso pode implicar pouca habilidade para ter e usar um recurso, o controlo implica uma posição de poder. Assim, o acesso irá referir-se à habilidade do indivíduo de usar recursos produtivos”11.
Entretanto, a mesma autora, no que concerne ao controlo diz o seguinte:
- “O controlo deverá referir-se ao poder implícito e explícito investido no indivíduo ou no colectivo para gerir a entrada e saída de recursos relevantes e seus resultados. Neste sentido, é possível ter o acesso e não se ter o controlo dos recursos”12.
Esta autora estabelece assim a ligação estreita entre o controlo e a posição de poder, pois se é importante ter acesso aos recursos, mais importante ainda é a possibilidade de os gerir. Numa sociedade patriarcal como a moçambicana, homens e mulheres têm acessos diferenciados aos recursos.
Para Loforte e Arthur (1995), o controlo de recursos de carácter económico-social confere poderes políticos digno de realce aos elementos que o detêm no interior dos agregados familiares, que consideram implicar mais do que co-residência, “refere-se a um grupo de pessoas que desempenham em conjunto funções domésticas”.
O acesso das mulheres viúvas aos recursos, ou seja, o uso destes, como a machamba, por exemplo, até pode-lhe ser dado. Mas o controle dos mesmos ainda é difícil de garantir. Ainda que o marido tenha morrido e elas fiquem responsáveis por sustentar os filhos, as viúvas que tenham filhos adultos, podem entrar em conflito com os familiares do marido por questões de herança. Notamos ainda que o acesso à educação por parte das viúvas permanece restrito, perpetuando uma situação vivida, quando o falecido marido dificilmente deixava a sua esposa estudar.
Esta é a realidade encontrada entre as dez mulheres que foram objecto do nosso estudo, na medida em que são autónomas na tomada de decisões importantes que conduzem a luta pela sobrevivência dos seus agregados familiares.
O acesso e controlo dos recursos é também correlativo de uma autonomia política e económica, o que determina uma escolha individual e colectiva. Mesmo no que se refere a recursos no campo social, como a educação e a saúde, ou são agenciados pelo homem ou orientados a partir de prioridades definidas pelas estratégias de família: no acesso à escola ou no planeamento familiar. Esse controlo por parte das mulheres permite ainda reforçar os laços de parentesco, particularmente nas sociedades patrilineares africanas, onde a manutenção das redes de solidariedade trazem benefícios para a família.
Estratégias de sobrevivência e reprodução social
A compreensão da estratégia de sobrevivência das populações tem que ter em conta o contexto do qual são resultado. Como lembra Da Costa, “As estratégias de sobrevivência e reprodução social referem-se ao conjunto dos processos desenvolvidos pelas famílias com vista à sua subsistência física, social e cultural e, como salienta Bourdieu, à manutenção, renovação e transmissão dos diferentes tipos de capital (económico, simbólico e social) entre as diferentes gerações” (2002: 66).
Ainda segundo o mesmo autor, “As acções práticas e estratégicas desenvolvidas pelos actores sociais com vista à sobrevivência “simples” e à satisfação das necessidades básicas são, como quaisquer outras acções humanas, social e culturalmente construídas” (2002: 67).
Mas estas acções respondem também a nosso ver a oportunidades que entretanto vão surgindo e às pressões a que estão sujeitas no seu dia-a-dia. Andrade et al. (1998) entendem as estratégias de sobrevivência como acções objectivamente orientadas por membros do agregado familiar no sentido de responder à disfunção no sistema de reprodução social e constituem para muitos agregados familiares formas de aceder a recursos.
O desenvolvimento das estratégias de sobrevivência e reprodução social ao nível das famílias das viúvas dependem, em grande parte, das relações existentes entre os seus membros. Porém Vijfhuizen e Waterhouse (2001: 14) referem-se às:
- “Estratégias de sustento quotidiano (conceito expresso pela palavra inglesa livelihood) não são apenas uma questão de abrigo, dinheiro e comida. Estratégias de sustento quotidiano também implicam relações, identidades, estatuto e muitas outras coisas”.
Para as mesmas autoras, ganhar a vida e sobreviver implica competição e controle dos recursos. Enquanto Da Costa (2002) enfatiza que as estratégias são construídas e desenvolvidas no âmbito de mecanismos indispensáveis à sobrevivência quotidiana, Vijfhuizen e Waterhouse (2001) acentuam que as estratégias implicam também relações sociais.
Resultados
A análise, apresentação e interpretações dos resultados foi organizada em dois eixos, a saber: (i) estratégias de sobrevivência das viúvas da AVIMAS e (ii) as relações de poder desenvolvidas no contexto das famílias. Por um lado, apresentaremos os resultados de pesquisa empírica à luz dos objectivos gerais e específicos, e por outro lado, compararemos os resultados obtidos com a revisão bibliográfica.
a) Estratégias de sobrevivência das viúvas da AVIMAS
Dada a marginalização social que afecta as mulheres viúvas, a AVIMAS assume funções sociais diversas que atenuam a exclusão de que as associadas são vítimas. Entre elas encontra-se a promoção do acesso a serviços cuja carência reforça a miséria e isolamento. Esses serviços são, por exemplo, a alfabetização, o crédito e a assistência legal. A partir do momento em que entram para esta associação beneficiam do curso de alfabetização.
A alfabetização ministrada às viúvas permite-lhes aprenderem a ler e escrever, algumas noções básicas da língua português e a fazer pequenos cálculos. As viúvas adquirem, desta maneira, alguns conhecimentos básicos para gerir pequenos negócios. Esta alfabetização introduz também aspectos ligados à nutrição para um melhor aproveitamento das culturas que produzem, combatendo assim a fome e a pobreza que enfrentam.
De um modo geral, a escolarização está relacionada com a capacidade de rendimento a longo prazo e à posição de negociação de recursos da mulher dentro da família. Assim, a mãe viúva escolarizada poderá ter recursos para enviar uma criança à escola. As mais instruídas jogam um papel pedagógico mais eficaz, ajudando, encorajando e apoiando as suas crianças nos trabalhos de casa ou preparação para os exames.
A frequência dos cursos de alfabetização e treinos em matérias de saúde são as novas oportunidades criadas, que reforçam o que Gameiro (1988: 108) afirmou ao referir que a viuvez pode constituir uma oportunidade. É o caso de uma das entrevistadas (Teresa, 46 anos) que ao ser questionada do porquê de não ter estudado, respondeu o seguinte:
- “O meu marido morreu em 2003. E eu não trabalhava. Não fui à escola mais porque o meu marido não deixava. Actualmente, aqui na AVIMAS, pelo menos venho para as aulas de alfabetização. E consegui que os meus seis filhos estudassem”.
Mais tarde, como forma de auto-sustentar-se ela pode beneficiar de várias opções sendo uma delas o curso de corte e costura. No curso elas confeccionam roupas, lençóis e toalhas bordadas que são vendidas na associação. Os lucros obtidos são repartidos pelas associadas, possibilitando assim a obtenção de rendimentos por parte das mulheres.
A AVIMAS ajuda a desenvolver também acções de solidariedade e ajuda mútua que são necessárias para a acção colectiva através de cedência de crédito.
Como afirma dos Muchangos (2004) na sua tese de mestrado sobre a AVIMAS, com as acções de crédito foi possível as famílias terem “pão na mesa” e melhorar a sua sustentabilidade. Como ganhos ainda são referidos o aumento da auto-estima, a dignidade e respeito mútuo, por si e pelo outros e a promoção do auto emprego. Foi possível reconhecer o esforço para atacar a pobreza feminina, não só através da oferta de serviços de crédito, mas da real preocupação por parte da AVIMAS em fortificar o poder das mulheres através de abordagens complexas onde se tentam integrar as várias dimensões de combate à pobreza. Nesta inclui-se também os cuidados de saúde e combate ao VIH/SIDA.
Atendendo a que o SIDA afecta, em grande medida, as pessoas em idades produtivas, a morte de um membro de agregado familiar enfraquece a capacidade produtiva da família ao reduzir a força laboral necessária ao cultivo das machambas, por exemplo. Com a doença ou morte dos principais provedores dos recursos de agregados familiares, emerge uma cadeia de complicações na gestão da vida dos membros sobrevivos, nomeadamente a crise em habilidades de gestão do trabalho agrícola familiar, mudanças nos sistemas de cultivo, aumento do número de órfãos, despesas médicas, desvio da força de trabalho para cuidar do doente, perda nos rendimentos de produção e redução do poder de compra dos insumos agrícolas (sementes, fertilizantes, etc.). Estes factores agregados acabam, muitas vezes, por gerar situações de insegurança alimentar crónica.
O conhecimento entre as mulheres viúvas sobre o VIH/SIDA é importante porque, parafraseando Collier (2007: 51) e segundo o Instituto de Desenvolvimento Social (IDS) de 2003, as campanhas de Informação e Educação (IEC) conseguiram visar mais homens do que mulheres. Os homens estão bem mais informados sobre a prevenção do que as mulheres: 61% dos homens têm conhecimentos de pelo menos dois métodos de prevenção, comparado com apenas 45% das mulheres. A aceitação perante uma PVHS (Pessoa Vivendo com VIH/SIDA) é mais comum entre os homens (16%) do que entre as mulheres (7,8%) (Collier, 2007).
O apoio da AVIMAS permanece mesmo após a morte dos seus membros. Por exemplo, os órfãos, alguns já infectados com VIH, e vivendo com avós, muitas delas também viúvas, são acolhidos e inseridos nas actividades de grupos. Estas actividades são sobretudo de aconselhamento junto das comunidades e bairros onde vivem.
Apesar da situação da pobreza, com as quais estas mulheres viúvas se depararam, a maioria delas acaba conseguindo sobreviver através da agricultura urbana e do sector informal. Elas procuram manter contacto com os mercados, desenvolvem uma variada gama de actividades para assegurar alimentos e algumas receitas. Cada mulher viúva desenvolve a sua própria estratégia para enfrentar a vida, utilizando os seus próprios recursos e os que estão disponíveis na AVIMAS.
As oportunidades para obtenção de outros rendimentos fora da agricultura ou dela proveniente revelam que as opções e estratégias destas mulheres são diversificadas e inserem-se na procura de alternativas de sobrevivência em tempos difíceis e para saírem da pobreza.
b) Relações de poder desenvolvidas no contexto da família das viúvas da AVIMAS
As mulheres viúvas da AVIMAS possuem a particularidade de terem sofrido de alguma forma algum tipo de violência, discriminação ou ainda acusações de feitiçaria por parte das famílias do falecido marido ou parceiro. Todas elas foram unânimes em afirmar que essas famílias não lhes deram apoio nenhum. Pretendiam até encarregar-se dos seus filhos alegando que a viúva poderiam maltratá-los e que elas não tinham condições financeiras para os criar.
Por outro lado, elas têm que suportar as críticas feitas pela família do marido, caso não actuem de acordo com os parâmetros comportamentais exigidos por elas e a sociedade em geral, no que concerne à educação dos filhos. Maria conta o seguinte:
- “Não tive apoio, nem dum lado nem do outro. E tive problemas com os meus filhos porque a família do meu marido queria ficar com eles e até com a minha casa”.
A pobreza reforça as desigualdades de género, a escassez de recursos e a falta de acesso e controle dos mesmos levam a conflitos e violência nas famílias.
A constatação da existência de conflitos com a família do falecido marido ou parceiro foi geral. Muitas vezes foram indicadas como protagonizando esses conflitos mulheres mais velhas da família do cônjuge que, no contexto de relações de poder desiguais nas famílias maltratavam muitas das mulheres entrevistadas, criando situações de conflito e tensão constante. Algumas informaram que foram até expulsas da sua casa. É o caso de Ester Alberto (37 anos de idade e doente):
- “… Fiquei doente, então mandaram-me embora da casa. E estou em casa dos meus pais”.
De acordo com o que pudemos apurar, as mulheres viúvas da AVIMAS não possuem conhecimentos em relação aos seus direitos, no que concerne ao direito à herança em especial. Esforços são feitos no âmbito da assistência legal que a AVIMAS dá, com apoio da AMMCJ, para resolver alguns dos problemas que surgem na partilha dos bens.
No que concerne à forma como viviam com os maridos ou parceiros, muitas relataram que eram vítimas de violência, com intimidações constantes, procurando os maridos sempre controlar as suas funções e os papéis que lhes eram distribuídos no contexto das relações de género desiguais. Elas deviam aceitar e respeitar as suas decisões. Havia sempre uma tolerância em relação aos homens que as agrediam, embora muitas delas se tenham mostrado conformadas com os maus tratos e abusos de que foram vítimas.
Considerações Finais
A AVIMAS forma um agrupamento estruturado de forma a garantir assistência financeira e moral às viúvas. Esta associação constitui uma rede social de solidariedade e apoio pois garante, através dos seus recursos e serviços, melhores condições de vida para as suas filiadas.
Após a morte do marido, que por si só é um golpe duro, as viúvas filiadas a estes grupos sociais acabam enfrentando muitos desafios pela frente. Primeiro, devem sustentar sozinhas a sua família, mesmo que não tenham condições objectivas para isso.
Apuramos que as viúvas, ao assumirem verdadeiramente a função de chefe do agregado familiar após a morte do seu marido, as estratégias de sobrevivência aplicadas por esse grupo, ilustram o empenho demonstrado por estas mulheres para fazerem face as suas dificuldades económicas. Entendemos que a acção afectiva e racional com relação a valores (na perspectiva de Weber, 1983) organiza as estratégias do grupo de entrevistadas, uma vez que a manutenção da família, apesar de todas as vicissitudes, é o móbil que as faz persistir e filiarem-se à AVIMAS.
De um modo geral, as viúvas são vítimas de muitas discriminações, violência e preconceitos. Nesta situação de grandes dificuldades, a associação é como um meio de ajuda. Para além de todos os recursos que oferece, o suporte emocional e afectivo e a convivência entre si tem um efeito de empoderamento.
Do nosso estudo percebemos que as acções individuais das viúvas entrevistadas orientam-se a partir daquilo que o grupo social ao qual estão inseridas, seja ele familiar ou comunitário, espera. Joga também um grande papel a “luta” pela manutenção dos laços afectivos, ou seja, são orientadas pela crença consciente no valor maior que é a não dissolução da família após a morte do cônjuge.
As viúvas, mediante estratégias diversas, tentam impor a sua vontade e enfrentam vários constrangimentos. Através da inserção na AVIMAS elas dão um sentido a decisões e acções empreendidas por intermédio da associação e do grupo de pares, baseando-se em valores partilhados a fim de atingir o objectivo final que é a manutenção do núcleo familiar.
Por fim, gostaríamos de salientar que os dados obtidos restringem-se ao grupo estudado. Entretanto, a partir de alguns aspectos apreendidos, podemos inferir para um grupo mais abrangente, apontando, por exemplo, para a necessidade de um aprofundamento em relação aos aspectos ligados à purificação das viúvas e suas consequências na vida destas.
- O presente artigo tem por base um trabalho de pesquisa elaborado no âmbito de uma dissertação para a obtenção de uma licenciatura em Sociologia, na FLECS, UEM.
- De acordo com os dados reunidos no Relatório sobre a Revisão dos Dados de Vigilância Epidemiológica do VIH – Ronda 2004, a província de Maputo têm a segunda maior a taxa de prevalência do VIH/SIDA entre adultos (15-49 anos), cerca de 20,7%, apenas ultrapassada pela província de Sofala. Quanto maior o número de afectados por esta pandemia, mais sobem as probabilidades de uma mulher ficar viúva, com todos os encargos advindos dessa situação.
- Através da escritura publicada no Boletim da República, número 41, III série, do ano 2000.
- In: Outras Vozes, nº 23, 2008.
- Dados de 2008.
- In: Boletim Informativo do Fórum Mulher, nº 22, 2005.
- Idem.
- Outras Vozes, nº 23, 2008.
- Fonte: REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Relatório sobre os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, 2005.
- C. Masinde (1993). Women’s access to and control of productive resources in Kenya. In: AAWORD Democratic Change in Africa, Nairobi.
- Tradução de nossa autoria.
- Idem.
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