Os movimentos sociais e a violência contra a mulher em Moçambique: marcos de um percurso
Ana Maria Loforte
Nas últimas décadas em Moçambique têm sido crescentes os movimentos sociais que integram acções colectivas desenvolvidas por organizações não governamentais. Estes movimentos visam a mobilização de recursos materiais e simbólicos para a definição de estratégias transformadoras que tenham como objectivo o fortalecimento do poder das mulheres. Criadores de novos marcos de interpretação, os seus enfoques não se explicam só como respostas colectivas a tensões manifestas e desigualdades estruturais, senão que uma boa parte do sentido da sua acção se dirige a mostrar, a explicar e a tornar explícitos determinados conflitos para a opinião pública.
Este artigo, baseado na análise das intervenções de algumas ONGs, particularmente da WLSA Moçambique, pretende identificar o seu papel no processo de deslegitimação da violência contra as mulheres. As recentes campanhas e as respostas sociais, políticas e legais são, na realidade, o produto final, público e visível de um largo processo de redefinição da violência contra a mulher que deixou de qualificar-se como drama pessoal para conceptualizar-se como problema social.
Partindo de questionamento dos aspectos estruturais da sua subordinação, as denúncias para acabar com a violência procuram mostrar as manifestações mais brutais da mesma, aquelas que no plano simbólico representam o aspecto mais evidente de uma ordem de género profundamente opressiva e neste sentido inaceitável.
Os movimentos sociais e a acção colectiva
Como ponto de partida para esta análise tomamos como definição a proposta de que estes movimentos são uma forma de acção colectiva no sentido em que desenvolvem actividades comuns com o objectivo de atingir fins partilhados e que apelam à solidariedade para promover mudanças sociais. Mantemos a ideia segundo a qual as características sociais que podem levar a esta denominação (acção colectiva) se centram em:
- Acções que envolvem simultaneamente um grupo de indivíduos ou grupos
- Acções que implicam um campo de relações sociais
- Atribuição de sentido às suas acções por parte das pessoas envolvidas (Melucci, 1987)
Partimos do pressuposto de que as ONGs definem como injusta e objecto de mudança social, uma situação que é geralmente legitimada pela tradição cultural e pelo costume. Assim, centramo-nos na identificação das formas de participação de actores colectivos no que tange à sua intervenção social. Buscamos inspiração em Goffman (1987: 149), que refere: “uma organização formal pode ser definida como um sistema de actividades intencionalmente coordenadas e destinadas a provocar alguns objectivos específicos e globais. O produto esperado pode ser: artefactos materiais, serviços, decisões e informações”.
Ao analisar esta definição vários elementos nos saltam à vista e permitem inferir sobre: (i) as práticas discursivas presentes nas organizações e que configuram os objectivos específicos e globais; (ii) as não discursivas que se materializam nas actividades intencionalmente coordenadas; (iii) um produto que proporciona o acesso a informação.
Práticas discursivas no processo de reconceptualização da violência
O fenómeno da violência excede os acontecimentos violentos e conduz a uma percepção da violência contra as mulheres como fenómeno social passível de uma análise discursiva. Assim, importa analisar os quadros teóricos subjacentes e quem intervêm na denúncia do problema.
Nos trabalhos publicados pela WLSA como resultado das pesquisas sobre Violência Contra as Mulheres, estão presentes marcos de referência, conceitos que conferem novos significados a velhos problemas, como os do exercício da violência doméstica. O conceito de género ganha proeminência e itinerários diversos, pois constitui a categoria de análise crucial para explicar as desigualdades estruturais. Na incorporação deste conceito, privilegia-se a dimensão social e simbólica das diferenças em detrimento de um modelo explicativo que coloca a centralidade nas diferenças biológicas entre homens e mulheres.
Mas discutir o género trouxe a necessidade de revisão e debate de outros conceitos que lhe são inerentes como o do poder e suas variáveis. Na situação da pesquisa, as relações de género são relações de poder que se exprimem através de mecanismos de ordem material e simbólica. Seguindo os argumentos de Connell (1997) refere-se que a violência é estruturada pelas relações de género por causa da desigualdade. Mais, trata-se de uma estrutura de desigualdade que envolve uma falta de recursos sociais continuada, que gera e organiza a violência (Osório e Temba, 2001: 44). Na explicação do fenómeno e suas causas sociais, a WLSA identifica ainda o papel importante que cabe à coacção num sistema patriarcal, tanto na forma de mera ameaça como na possibilidade latente, constituindo de qualquer modo uma intimidação constante.
A ideologia patriarcal está tão firmemente interiorizada e as suas formas de socialização são tão perfeitas e subtis, que a coacção estrutural que se desenvolve conduz a que “o medo dos que são susceptíveis de serem vítimas de violência, só por si, actua como um poderoso mecanismo de controlo. Basta ver como é frequente as mulheres auto-controlarem os seus comportamentos e até as suas deslocações, para evitarem ficar “em situação de risco” (Arthur e Mejia, 2005).
Trazem assim ao de cima, o facto de a violência ser uma estratégia de dominação masculina por meio do temor que infunde às mulheres. Todavia, é a sua naturalização que faz com que não necessite de se justificar constantemente. Mas, numa perspectiva foucaultiana, sublinham que não há uma fixação da oposição entre dominadores e dominadas e que as resistências se configuram como produtoras do mesmo mecanismo: as mulheres não são vítimas passivas da violência. Assim, em Reconstruindo Vidas: estratégias de sobrevivência das mulheres vítimas de violência “dá-se destaque às formas de resistência e à multiplicidade de estratégias empregues para evitar a violência, para preservar a dignidade, para proteger os filhos, enfim, para recomeçar as vidas” (Arthur e Mejia, 2006).
Nesta obra, que pretende retratar a experiência social de algumas mulheres, fica patente a luta desenvolvida para reduzir as formas de exploração e opressão que vivem no quotidiano, o almejar de um mundo onde há relacionamentos menos desiguais, nos quais o feminino adquire, em condições específicas e dentro de estruturas e cosmovisões particulares, um espaço próprio e destacado.
Na verdade, como afirma Ponce (1995), “os processos socializadores proporcionam às mulheres elementos versáteis que permitem a manipulação da realidade de acordo com as suas próprias condições de existência, fornecendo-lhes as ferramentas para maximizar as suas capacidades de sobrevivência e para transitar dentro do marco social, da subordinação à igualdade”.
Por outro lado, os discursos presentes nos relatórios da pesquisa subvertem o código cultural ancestral e dominante que explica de forma recorrente a violência contra a mulher como produto de uma enfermidade do perpetrador ao afirmarem que “o exercício da violência contra a mulher não é do foro da patologia do indivíduo, trata-se sim de um “efeito da estrutura” como designa Echène (2003). Esta percepção é bem explicada por um agressor que afirma, “Eu sou muito normal, não fiz nada de mal” (Arthur e Mejia, 2005).
Mas conferir visibilidade ao fenómeno da violência contra as mulheres foi exigindo formas de articulação e coordenação.
As actividades intencionalmente coordenadas
Num primeiro momento foi importante se definir a situação da violência como problemática e ilegítima, num segundo momento é marcante denunciar as causas da situação sejam elas culturais, económicas ou políticas. Mas tem sido crucial propor soluções alternativas: não basta anunciar que uma situação é injusta senão que torna-se imperioso difundir a ideia de que é possível mudar a situação, o que passa pelo respeito aos direitos fundamentais dos indivíduos. Assim, a necessidade da observância e valorização dos direitos humanos das mulheres tem sido uma componente fundamental e indispensável no apelo para erradicar práticas discriminatórias.
Com efeito, o “modelo androcrático, orientando o direito dos Direitos Humanos, tidos como neutrais, universais e eficazes, tem como resultado a impunidade na violação dos direitos das mulheres e a legitimação da sua subalternidade” (Andrade et al., 2000: 40).
O engajamento das ONGs levou à formação de espaços de discussão, interacção e interlocução que integram actores sociais que se identificam com esta causa. Alguns deles desenvolveram-se em torno da necessária articulação entre a academia, a pesquisa e a política, como possibilidade de empoderamento dos grupos cujas vozes e acções, por vezes, são silenciadas. Estas têm sido instrumentais em trazer a questão da violência contra as mulheres para a agenda do dia, através de actividades de advocacia e lobby.
As suas intervenções encontraram o respaldo ideal no Programa Quinquenal do Governo que refere à necessidade de se protegerem os direitos humanos das mulheres com vista à elevação da sua consciência bem como da comunidade sobre os direitos que a assistem, no concernente ao direito à não-violência1.
Em 1998, agruparam-se em torno da campanha Todos Contra a Violência (TCV), alguns actores até então distanciados, mas que se coligaram para advogar e desenvolver medidas estratégicas a serem empreendidas. Esta campanha de Todos Contra a Violência compreendeu quatro vertentes:
- Apoio directo às vítimas da violência doméstica, mulheres e homens
- Educação pública e aconselhamento a vários grupos sociais
- Acções de formação e educação sobre direitos humanos e desigualdades de género
- Pesquisas sobre a temática referente à violência doméstica contra a mulher
Mais tarde, um momento marcante deste processo foi a elaboração do Anteprojecto de Lei relativo à Violência Contra as Mulheres. Esta proposta, profundamente inspirada na Constituição da República e nos instrumentos internacionais ratificados por Moçambique, designadamente o CEDAW, subscreve a ideia de que só é possível combater a violência doméstica se se reconhecer o seu carácter estrutural, decorrente das desigualdades de género na família.
Várias actividades concernentes ao controlo e prevenção da violência foram realizadas paralelamente à continuação das campanhas de informação, sensibilização e educação da população em colaboração com diversos sectores governamentais. Nomeadamente, foi lançada uma Campanha Nacional contra o Tráfico e Abuso Sexual de Menores onde se pôde notar a liderança da Sociedade Civil, foi melhorado a atendimento às vítimas de violência doméstica e facilitou-se o seu encaminhamento para a rede de serviços existentes tais como a assistência legal, médica, e psicológica, envolvendo diferentes ONGs e ministérios de tutela.
Em 2007 foi criado o Movimento pela Aprovação da Proposta de Lei Contra a Violência Doméstica, cujo manifesto apela, entre outros aspectos:
- Que a proposta de Lei Contra a Violência Doméstica seja aprovada
- Que a violência doméstica, em particular a violência contra a Mulher, faça parte da agenda dos governantes, legisladores e aplicadores da lei em Moçambique.
Impulsionando a acção colectiva, as ONGs coligadas alertam para a gravidade da situação, contribuindo para a sua “dramatização”, termo que se utiliza aqui no sentido que lhe dá Goffman (1974), o de despertar da consciência de um conjunto de pessoas para a partilha de uma mesma opinião sobre uma questão controversa.
Pugnar pelo reconhecimento dos direitos das mulheres torna-se um imperativo. Insta-se assim o governo a instituir mecanismos eficazes de prestação de contas sobre a igualdade de género e a cumprir, entre outras, as recomendações do CEDAW, no sentido de adoptar medidas para combater a discriminação da mulher a todos níveis da sociedade e modificar leis ou práticas culturais e sociais que constituam obstáculos a esta igualdade (artigo 2º. do CEDAW).
Deste modo, várias ONGs que trabalham na área dos direitos humanos das mulheres elaboraram o Relatório Sombra, que emerge como uma visão alternativa ao primeiro informe governamental sobre o cumprimento do CEDAW2. Desempenharam, deste modo, um papel de “vigia” das acções do governo ao sublinharem os progressos e constrangimentos no tocante às acções tendentes à igualdade de género e erradicação de práticas discriminatórias. Formularam um conjunto de recomendações bastante persuasivas e úteis para a intervenção no sentido de remover todas as leis, normas e práticas institucionais que atentam contra os direitos das mulheres.
Particularmente em relação à violência defende-se nas recomendações que “é importante aprovar a proposta de lei de forma a colmatar lacunas legais no combate a um dos problemas que mais prejudica o exercício dos direitos humanos pelas mulheres.”
Por outro lado, e a nível mais geral, defende-se que “o governo deve garantir que na revisão do Código Penal e Lei das Sucessões se garanta o princípio da não discriminação contra as mulheres não só pela eliminação das disposições que abertamente discriminam, mas pela eliminação de todos preconceitos e valores sexistas que estão implícitos nas referidas leis”.
Os seus pronunciamentos contribuíram para que o Comité de Eliminação da Discriminação Contra a Mulher convidasse o estado moçambicano, entre outros aspectos, a assegurar e acelerar que as provisões da Convenção sejam sustentadas e aplicadas, dando prioridade a qualquer outro conflito com a provisão da Lei3.
O acesso à informação
No tocante ao acesso e difusão da informação, uma atenção particular despertaram em nós os cartazes. O seu conteúdo informa de forma explícita que:
- “A violência doméstica é um atentado aos direitos humanos das mulheres”
- “A violação contra mulheres e crianças é uma violação dos direitos humanos”
- “As mulheres tem direito a: garantia da sua integridade física e controlo do seu próprio corpo”
- “A violência doméstica é uma tortura contra as mulheres e pode matar”
- “No Código Penal, é preciso criminalizar a violação conjugal”.
Ao centrarem as suas mensagens, de novo, nos direitos humanos, as organizações consolidaram a ideia de que a solução do problema não reside somente nas mulheres. A responsabilidade é muito mais lata e complexa, envolvendo a actuação do próprio estado no sentido da salvaguarda dos direitos humanos das mulheres.
Ao especificarem os meios e os fins a que a violência contra as mulheres se propõe, as ONGs sublinham que a mesma visa manter a subalternidade nas relações de género, mas que as mulheres têm capacidade de decisão e devem ser dotadas de autonomia e capacidade de ser e agir.
Conclusão
Ao passarmos em revista o quadro de interpretação do fenómeno da violência doméstica contra as mulheres por parte dos movimentos sociais, com maior enfoque sobre a WLSA, constatámos que a sua contribuição teórica tem como fim conceptualizar adequadamente como conflito e produto de relações de género desiguais, eixos que se consideram, por vezes, naturais, imutáveis e determinados pela tradição. No processo de deslegitimação sublinha-se que a violência é o resultado de uma discriminação normativa de comportamentos inscritos nas relações de poder, sendo assim uma área determinante na luta pelos direitos humanos das mulheres.
Ao tornarem-se visíveis as acções colectivas das ONGs, ao ampliarem o seu campo de sujeitos sociais, elas não buscaram apenas a denúncia de situações anómalas, mas sim tornar públicos os maus tratos que adquirem o estatuto de problema social pelo aumento vertiginoso de casos. Neste período, acabaram por aceder a espaços de encontro com outros e outras, verdadeiros espaços de diferenciação e de procura de desnaturalização da violência. Todo este processo conduziu a uma nova significação do fenómeno.
Estas iniciativas transformadoras das ONGs, que visam responder às necessidades estratégicas de género, foram também potenciadas pela necessidade de dar seguimento a orientações constantes nos instrumentos internacionais ratificados. Por outro lado, ao mesmo tempo que se avança no sentido de reprovar socialmente a violência doméstica contra as mulheres e de denunciar a ordem patriarcal vigente, a identidade hegemónica dos perpetradores tem sido destabilizada. As ONGs que integram os movimentos sociais vêm-se situando, nos últimos anos, no centro da cooperação material e simbólica sob o lema “Violência Contra a Mulher não é Amor. Basta”.
- Moçambique (2005). Programa do Governo para 2005-2009. Maputo
- Relatório sombra sobre o estágio de implementação do CEDAW em Moçambique, por referência ao relatório do governo: “1º Relatório Nacional Sobre a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres – CEDAW, 2003”, submetido ao Comité do CEDAW, na sua 38ª Sessão, Maio – Junho de 2007. Maputo
- Committee on the Elimination of Discrimination against Women, Concluding comments of the Committee on the Elimination of Discrimination against Women: Mozambique, Thirty-eighth session, 14 May -1 June 2007.
Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Ximena; OSÓRIO, Conceição; TRINDADE, João Carlos (2000), Direitos humanos das mulheres em quatro tópicos. Maputo: WLSA Moçambique.
ARTHUR, Maria José; MEJIA, Margarita (2005), Violência doméstica: a fala dos agressores. In: Outras Vozes, nº 11.
ARTHUR, Maria José; MEJIA, Margarita (2006), Reconstruindo vidas. Mulheres sobreviventes de violência doméstica. Maputo: WLSA Moçambique.
CONNELL, Robert (1997), La organización social de la masculinidad. In: Teresa Valdes y José Olavarria (eds), Masculinidades: Poder y crisis. Santiago. Ediciones de las Mujeres n.24. Isis Internacional.
ECHÈNE, Agnès (2003), Violence et conjugalité. In: Les Pénélopes. (http://ladivecie.free.fr/article.php3?id_article=36)
GOFFMAN, Erving (1974), Frame analysis. An essay on the organization of experience. Cambridge: Cambridge University Press.
GOFFMAN, Erving (1987), Manicómios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva.
MELUCCI, Alberto (1994), Qué hay de nuevo en los movimientos sociais. In: E. Larana y J. Gusfieled (eds), Los nuevos movimientos sociales. Madrid: CIS
OSÓRIO, Conceição; ANDRADE, Ximena; TEMBA, Eulália; CRISTIANO JOSÉ, André; LEVI, Benvinda (2001), Poder e Violência. Homicídio e Femicídio em Moçambique. Maputo: WLSA Moçambique.
PONCE, Martha (1995), Trabalho, poder e sexualidade: história e valores femininos. In: Cadernos Pagu, nº 5.