Quando éramos meninas novas
Valuarda Monjane
Quando éramos meninas novas, a um dado passo de nossas vidas sempre sentíamos que por um motivo qualquer não éramos iguais aos nossos irmãos e só lentamente fomos entendendo por que: porque enquanto os homens tinham sido feitos para viver no mundo, as mulheres tinham sido feitas para servi-los e permitir-lhes uma vivência ainda mais tranquila.
Porém, a mim o que mais me admirava, não era apenas essa constatação; o que mais me intrigava era como as coisas tinham sido construídas de forma tão perfeita de modo a justificar essa supremacia masculina. Actualmente quando os homens e mulheres afirmam que “sempre foi assim”, realmente se referem a um jogo de relações tão antigo e por causa disso tão enraizado nas nossas sociedades que a primeira vista parece que sempre existiu e existirá e que não há nada mais a fazer senão nos conformarmos.
Conformar! Toda a socialização feminina tem sido baseada em três conceitos: servir, ser paciente e conformar-se, isto é, reconhecer que as mulheres são seres fisicamente fracos e psicologicamente inferiores e portanto dependentes dos homens, que ao contrário delas são seres fortes e completos.
Esta ideia de homem completo faz-me lembrar que quando eu era criança sempre estranhei que o meu irmão mais novo tivesse um pénis e eu não, até que finalmente alguém me explicou que o meu pénis tinha sido amputado porque eu tinha sido desobediente. Desde então, com que inveja passei a olhar para o meu irmão, um ser completo, maravilhoso, enquanto que eu, que sempre tinha sido mais ajuizada do que ele, tinha sido tão toscamente castigada. E aquela cicatriz muito feia que a todo o momento me lembrava do quão desprezível e incompleta eu era!
Para reforçar isto, na minha adolescência aprendi na catequese que a mulher era um ser tão vil que tinha sido a causadora do pecado original. Além de ter pecado e arrastado Adão consigo, Eva tinha trazido o pecado para toda a humanidade e o seu castigo e o de todas as mulheres era sangrar todos os meses e sofrer até morrer. E assim nascia e vivia em mim uma mulher pecadora, um ser astucioso que ao pensar de forma autónoma fora capaz de causar a perdição de toda a humanidade.
Enquanto os nossos irmãos mais novos e mais velhos brincavam, a nós era-nos exigido que cumpríssemos primeiro com os nossos deveres de mulher, deveres que nos tornariam mães e mulheres perfeitas, capazes de cumprir religiosamente os três conceitos: servir, ser paciente e conformar-se.
Paralelamente a isto, à medida que vamos crescendo somos bombardeadas com tantos fenómenos como se a todo o momento nos quisessem informar que apesar de tanta luta, faça a mulher o que fizer, enquanto não possuir um lar, um marido e vários filhos para cuidar então ainda não é um ser completo (até onde pode ser um ser naturalmente incompleto, claro).
Por mais inteligentes que sejamos ainda somos preteridas pelos nossos pais para irmos à escola, para a carta de condução, na entrada para a Universidade, no curso de Inglês… Se o dinheiro só chega para um, claro que se sabe que o rapaz terá privilégios por melhor preparada que a menina esteja. Para muitos pais, tudo aquilo que saia do âmbito doméstico constitui perda de tempo e um desvio da verdadeira vocação das raparigas: “se fosses rapaz ainda vá que não vá, mas tu daqui a nada engravidas, casas e é o meu dinheiro que fica empatado”.
Para muitos pais, as raparigas não necessitam de se esforçar muito para ascender na vida porque o podem fazer facilmente através do casamento. Assim é natural que mais do que com os estudos, que as raparigas se apliquem em tarefas que lhes tornem “mercadorias de fácil saída”: Prender o homem pelo estômago, prendê-lo na cama. A submissão, a realização das vontades masculinas, são todas artes de sedução que lhes permitem conseguir um casamento mais ou menos estável.
Existe entretanto uma arma de sedução ainda mais forte do que essas: o corpo, essa coisa maleável, que precisa de ser continuamente moldado até ficar bem ao gosto masculino, essa coisa da mulher que é pertença do homem que como tal pode desfrutá-lo a seu bel prazer. Assim, o formato do nosso corpo, a preocupação com a nossa alimentação, com os pneus na barriga, com a celulite e a gordura acumulada não reflectem uma preocupação como nosso corpo e sim com um corpo que nós cuidamos ou deveríamos cuidar para que seja melhor desfrutado pelo homem.
Porém, desde tempos imemoriais (antes mesmo das lutas colectivas feministas) sempre houve mulheres e ainda as há, que mesmo sem noção dos Direitos da Mulher, isoladamente lutam por um papel que não a de dona de casa, que não a de dependência ao homem, mulheres que se questionaram porque a elas cabia fazer tanto e aos homens tão pouco. Quando a menina questiona o facto de a ela caber a lida doméstica, as mães respondem que ela precisará de tratar bem do marido senão ele vai mandá-la embora.
Sendo o papel das mães muitas vezes decisivo na educação dos filhos, a mim intriga-me o facto de justamente as mulheres serem as maiores guardiãs desse modelo patriarcal que as discrimina. As mães, que geralmente tem maior contacto com os filhos, são as maiores transmissoras destes valores que podem se expressar em frases como: “Joana, não sejas maria-rapaz”, ou então: “Fábio, não sejas menininha”. Isto é todo um discurso que visa colocar as coisas no seu lugar, manter a ordem das coisas. Eu imagino o terror profundo que um rapaz experimenta ao ser comparado a uma menina. Uma abominação!
É claro que é preciso frisar que ambos os pais transmitem valores que lhes foram inculcados, transmitem-nos inconscientes, como os aprenderam. Todavia, é preciso que o ser humano se interrogue, que questione as suas ideias tão bem enraizadas pois o que dizemos para os nossos filhos hoje, terá consequências no tipo de homens e mulheres que queremos/teremos amanhã.
O mais importante para as feministas é que nos consciencializemos de que a nossa luta hoje para que as mulheres ganhem mais espaço na sociedade passa não só pela consciencialização dos homens mas principalmente pela consciencialização das outras mulheres.