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O abuso sexual no contexto da construção da sexualidade feminina

Conceição Osório

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 13, Novembro de 2005

 

O conceito de abuso sexual sobre as mulheres, particularmente as adolescentes e jovens, tem sido utilizado na pesquisa e na Lei de forma muita ambígua e fluida. Os estudos sobre o abuso sexual procuram identificá-lo tanto com o exercício de formas não especificadas de violência sobre o corpo feminino, como com violação sexual. Esta concepção ao mesmo tempo muito restrita e vaga e que reflecte algum desconforto na abordagem do tema, está presente também nas representações sociais e no conhecimento científico sobre assédio, insulto sexista e prostituição feminina. A mesma situação se encontra na legislação em que o abuso nem sequer existe como figura.

Por estas razões e porque neste momento a WLSA se encontra a realizar um estudo piloto sobre identidades de género, penso ser útil procurar reflectir sobre a operacionalidade do conceito de abuso, e mesmo se ele pode ser conceptualizado ou se é apenas expressão redundante do senso comum. Deste ponto de vista, o abuso sexual deixa de fora todos os actos cometidos contra as mulheres no contexto da violência de género, por exemplo os discursos sexistas, as humilhações que visam sancionar os comportamentos “anormais” (no sentido de fora da norma social).

Por outro lado, se tivermos em conta que as representações sociais sobre abuso sexual variam de forma “intensa” com a idade e o sexo e portanto é apropriado de forma muito diversa e mutante, ao contrário do acordo que existe em relação a outras noções utilizadas pela epistemologia feminista, constata-se a necessidade de construir ou, neste caso, de desconstruir o conceito e os valores que lhe estão subjacentes.

Para nós há pressupostos que devem, antes de se avançar com qualquer proposta metodológica, ser enunciados. O primeiro é que é que o abuso sexual deve ser compreendido no quadro das relações sociais de género como relações de poder, tendo como núcleo no campo da dominação de género, a relação entre sexualidade e a sua construção social. O segundo pressuposto é o papel que o contexto histórico joga na configuração dos valores sociais e nos mecanismos que medeiam a cultura dominante no que respeita ao exercício da sexualidade.

No caso de Moçambique, estes pressupostos remetem-nos, tal como o referimos no número anterior (Identidades de Género e Violência) para a necessidade de identificar não apenas o sistema de valores que orientam o exercício da sexualidade mas os mecanismos, os espaços e os agentes que em contextos históricos diferenciados vão configurando os papéis e as funções sociais de mulheres e de homens.

Neste artigo vamos procurar reflectir, através da nossa experiência de pesquisa, sobre a construção social da sexualidade das adolescentes e jovens raparigas e sobre as estratégias de dominação e contra dominação que se vão combinando e que se podem constituir ou como ruptura com o modelo de dominação feminina, ou como reforço desse mesmo modelo. É neste quadro que a noção de abuso sexual adopta e “compõe”, conforme os agentes que o utilizam e os espaços em que é produzido, o sistema de dominação.

Partindo do conceito de socialização, como educação, transmissão e composição de papéis, tem-se constatado no estudo que estamos a realizar com jovens alunas da cidade de Maputo1, que a sua sexualidade (no sentido de exercício e de representação sobre esse exercício) é realizada em três espaços: a família, a escola e o grupo de amigas. Cada um destes lugares estabelece e organiza os seus próprios elementos de coesão que os identifica em relação aos outros e que com eles mantém uma relação de conflito/cooperação: conflito porque procuram impor os seus padrões de comportamento, de cooperação, porque que os agentes transitando entre os diferentes espaços se estabelecem formas de comunicação e entendimento. Esta situação remete-nos para uma questão: significa então que o sujeito apresenta, conforme os meios e os valores desse meio, diferentes representações e práticas de sexualidade (cada uma delas legítima), convivendo sem ruptura entre elas?

Comecemos pela família. Aqui as jovens e os jovens aprendem a situar-se em termos de papéis e funções. Esta configuração de papéis que significa, como sempre se refere, diferentes expectativas e anseios, é mediada por diversas formas que podem ser materiais (como a divisão do trabalho) e simbólicas (como os mitos sobre a menstruação). O que é comum em qualquer destas formas é o controle do corpo, do corpo com todas as suas significações (o que saúda, o que trabalha e o que brinca), mas principalmente do corpo sexual. Ou seja, do corpo como utilidade na acepção de Bourdieu e Foucault.2 O modo diferenciado como se define a utilidade do corpo de raparigas e rapazes tem a ver com relações sociais de poder e consequentemente com direitos humanos e com a forma como esses direitos são concebidos.

É na família, e temos falado e escrito sobre isto até à saciedade, que as raparigas são socializadas para o outro e para a reprodução do grupo, o que é feito através do trabalho e através da maternidade. Poderíamos afirmar que também os rapazes são socializados para o trabalho e para a paternidade, pois ambos os sexos contribuem para a manutenção da ordem social. No entanto os valores que subjazem os mecanismos de socialização dos dois sexos exprimem e exprimem-se não apenas de forma diferente (a imutabilidade da diferença do sexo biológico) mas determinam direitos desiguais.

Os valores constitutivos dos direitos das raparigas são colectivizantes, no sentido em que acentuam a sua natureza complementar, retirando-lhes a individualidade e a possibilidade de serem sujeitos. Esta falta de individualidade que continua a caracterizar a filosofia da socialização feminina, vem de tempos imemoriais, claramente visível nas epopeias e tragédias da Grécia antiga, com Penélope a tecer na espera do amado e com Medeia a rebelar-se e a ser punida. Passados mais de vinte e seis séculos, constata-se hoje que as mulheres continuam a ser representadas na sua identidade fundadora como complemento masculino. Esta complementaridade que percorre a construção das identidades de género configura o modelo de dominação construído fundamentalmente através da domesticação do corpo sexual da mulher.

Os silêncios familiares sobre a sexualidade e as práticas coercivas sobre a liberdade das jovens (no modo como se vestem, no controle das saídas nocturnas), ao contrário do que acontece com os rapazes, mostra como a construção da identidade sexual é um processo de dominação traduzida em desigualdade. Embora se possa afirmar que também aos jovens não são transmitidos saberes sobre sexualidade, existe um acordo tácito entre os membros da família (expresso nos discursos e nas permissões) que favorece e impulsiona a liberdade sexual como parte do processo de socialização.

No entanto, “o não dito” sobre a sexualidade não significa a inexistência de uma educação sexual construída na família. Se os valores construídos sobre os papéis das mulheres têm como centro a função do corpo sexual, temos que convir que a sexualidade, ao contrário do que muitas vezes pensamos, é a parte fundamental, embora realizada em surdina e por isso mais eficaz, do processo de socialização primária. As identidades sociais começadas a construir na família têm na “instrução da sexualidade” a sua dimensão mais importante.

Como exemplo, proponho que se analise o que se passa com os casamentos prematuros, que continuam a ser abertamente adoptados como culminação dos rituais de iniciação em muitas regiões do país. Os casamentos prematuros mostram na realidade o que se passa, relativamente à utilidade do corpo da mulher, como recurso e como estratégia de sobrevivência do grupo. As uniões de crianças com homens mais velhos não só não são socialmente condenadas como não são concebidas pelos diferentes agentes sociais como abuso sexual, primeiro porque se segue a norma e segundo porque na realidade só pode haver abuso desde que o grupo considere que há um abusado e um abusador. Ora isto não acontece e não acontece precisamente porque a noção de abuso implica violência e esta não é percebida como estruturante das relações entre mulheres e homens. Esta situação não nos deve deixar cair na tentação fácil de pensar que a violação sexual não constitui socialmente falando, crime. De facto a violação sexual é representada pelas famílias como crime muito grave, daí resultando os silêncios envergonhados e as exigências compensatórias aos violadores. O que se verifica é que a violação sexual é um crime socialmente punido, não para a vítima que a sofre directamente, mas para a família que se sente atingida na sua capacidade de utilização completa e eficaz do recurso que é o corpo feminino.

Na escola, raparigas e rapazes recebem saberes iguais e estabelecem relações de convivialidade que pela sua natureza implicam adaptações ao modelo familiar, ou seja, sobre a socialização primária são “impostos” e apropriados novos padrões de comportamento. Mas será que estes padrões significam ruptura nas relações de dominação masculina?

Constata-se, na escola e nos grupos de amigos que, em primeiro lugar, as jovens aprendem e aprendem a expressar, para além dos saberes sobre a anatomia sexual, os seus desejos, necessidades e expectativas. Na pesquisa que estamos a realizar, muitas jovens questionadas sobre a sexualidade e o seu exercício têm um discurso que evidencia o poder que o seu corpo sexual representa, isto é, utilizam-no ou sabem que podem utilizá-lo, como estratégia de conquista. Por exemplo, a roupa e os comportamentos ousados fazem mais parte dos jogos de sedução do que da conquista da afirmação da sua individualidade como pessoa. Curiosamente esta formas de expressão, socialmente condenadas, foram produzidas no meio familiar, ou seja, é nas famílias que as jovens aprendem em primeira mão os valores que as levam a representar e a viver o seu corpo como meio de troca. Não quer isto dizer que não estejam a surgir novas construções identitárias tanto por parte de raparigas como rapazes, que procuram questionar a estrutura de dominação. No entanto, a lógica que orienta a construção da desigualdade de género permanece nas estratégias de contra dominação desenvolvidas pelas jovens estudantes. Estas estratégias devem ser entendidas no contexto do modelo social, na medida em que reproduzem a utilidade social do corpo feminino conforme à estrutura da dominação, mas também como possibilidade de rejeição desse mesmo modelo.3 São estas possibilidades e os modos como elas podem (ou não) ser resultado de apropriações diferenciadas através da “composição” de novas identidades sociais que procuraremos explorar na pesquisa que estamos a realizar.

Há dois elementos que começam a clarificar-se neste trabalho e com eles concluímos o artigo: um é a necessidade de reconceptualizar a violência sexual, no sentido em que ela nos aparece, não apenas como uma dimensão da violência de género, mas como seu sinónimo. A violência de género existe em função da construção discriminada que se faz sobre o sexo biológico das mulheres, transformando-o em sexo social. Isto é, o que determinou na sua origem a conceptualização do género foi o exercício da violência sobre o corpo sexual das mulheres, configurando-lhe o lugar nas relações sociais de poder. E deste modo toda a violência de género é simultaneamente violência sexual e abuso sexual. Do ponto de vista teórico esta posição implica a necessidade de desconstrução/construção de “tipos ideal” que possam, com mais rigor, orientar o conhecimento das identidades sociais e a sua relação com a violência.4 O outro elemento é a exigência de se retomar e aprofundar as posições expressas nos nossos trabalhos sobre a construção da sexualidade na família e na escola, do ponto de vista da transmissão e apropriação e da sua relação com a construção de novas identidades sociais.

Notas:

  1. Setembro-Dezembro de 2005, pesquisa da WLSA Moçambique.
  2. A noção de “utilidade” do corpo é empregue por Bourdieu (1989) e Foucault (1993) como texto de cultura, ou seja, como expressão de valores e normas que orientam o modelo social e como lugar de controle social.
  3. Significa que as estratégias de contra dominação podem encobrir a manutenção do modelo androcrático, na medida em que se mantém a estrutura de desigualdade entre mulheres e homens.
  4. O tipo ideal é um conceito criado por Max Weber com o objectivo de operar “sobre a realidade”. Neste sentido, é um conceito “concreto” que nos remete para a construção de dimensões e indicadores dos modelos de análise.

 

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