Violência contra as mulheres e cumplicidades masculinas
Opinião
Maria José Arthur
Desde há ano e meio que participo numa pesquisa que estuda a violência que é cometida contra as mulheres no âmbito doméstico, em situação de conjugalidade, procurando seguir o percurso das vítimas que denunciam, desde o bairro até aos Gabinetes de Atendimento da Mulher e da Criança que funcionam em algumas esquadras de polícia, como resultado de uma iniciativa do Ministério do Interior. Em consequência, uma das minhas actividades tem sido de divulgar os resultados do trabalho em vários fóruns, que juntam desde os parceiros mais próximos, até a estudantes de diversas instituições de ensino superior.
Esta experiência revelou-se dura a vários níveis. Antes de mais, colher em primeira mão testemunhos de mulheres que sofreram/sofrem de violência doméstica representa uma tarefa difícil do ponto de vista psicológico, porque somos confrontadas com situações de violência inaudita, para as quais muitas vezes não temos solução a apresentar. São mulheres que se calhar nunca mais vamos voltar a ver e para quem nós não podemos ser de grande valia. Num caso em especial, viemos a saber que cerca de um mês depois de entrevistada por nós, uma mulher morreu vítima de agressões por parte do marido, o que nos deprimiu e levou a pensar se teríamos podido de alguma maneira evitar este trágico desfecho. No entanto, este envolvimento emocional tem de ser cuidadosamente controlado para que possamos realizar o diagnóstico da situação que constitui o objectivo da pesquisa.
Em segundo lugar, apresentar publicamente os resultados de uma pesquisa sobre violência doméstica também não é uma tarefa fácil. A não ser que se esteja “em casa”, quer dizer, entre agentes policiais dos Gabinetes ou entre activistas de ONGs que lidam com o problema, dificilmente os presentes prestam atenção aos resultados, porque a maioria se concentra em defender, entre outros, os seguintes aspectos: a violência doméstica não tem a amplitude que se pretende; a violência também se exerce pela mulher sobre o homem (o facto das estatísticas mostrarem a insignificância destes casos não serve aparentemente para enfraquecer o argumento); as mulheres são quem provoca a violência porque não obedecem aos maridos; não podemos condenar os homens que batem nas mulheres porque isso faz parte da nossa cultura; bater sem excessos não faz mal; as mulheres gostam de apanhar porque isso é uma prova de amor, etc. Em suma, o nível do debate desce e, em vez de uma palestra, parece que se está a ter uma conversa que poderia passar-se entre um grupo de amigos, com copos e comida. Isso sem falar da agressividade com que somos continuamente brindadas, por ousarmos apresentar ideias que pelos vistos vão contra a corrente.
Estas vivências recentes, que por vezes ganham contornos dolorosos, têm servido para entender até que ponto, apesar das leis e das declarações de princípios, o sistema de dominação masculina goza de tolerância social. Tenho encontrado pessoas que sinceramente se admiram em saber que afinal bater nas mulheres, ou seja, na sua mulher, é um crime punível por lei. Recorda-me o testemunho de um indivíduo, de nacionalidade estadounidense, que conta que ter lutado na II Guerra Mundial representou um impacto para a vida dele de várias maneiras: “Eu cresci no Mississipi e nunca soube que era contra a lei matar um negro. Aprendi isso quando fui para o exército. Tinha 17 anos. Quando me disseram tal coisa eu pensei que estavam a brincar”.1
Uma declaração deste tipo não pode deixar de chocar. Mas se em vez de falar em morte falarmos em agressão e nos referirmos às mulheres, então já ninguém se indigna. Até porque indignação significa um repúdio e uma recusa total perante uma situação, acto ou posição. E nós sabemos que mesmo estando inscrito na Constituição o princípio de igualdade entre homens e mulheres, em outros espaços normativos, a desigualdade de género continua corporificada em práticas múltiplas e quotidianas que constantemente produzem e reproduzem a dominação na masculina. E, por um paradoxo antigo e desde há muito denunciado pelas feministas, não há incompatibilidade em defender simultaneamente a democracia e a manutenção de sistemas de exclusão e de hierarquias que reforçam a dominação masculina. Desde que esta se exerça no lar, bem entendido, ou de forma mais ou menos camuflada nos espaços públicos.
E assim, a violência doméstica, fruto de uma rígida hierarquia de género que coloca as mulheres em posição de subordinação, vai proliferando, destruindo muitas delas, as suas esperanças e o seus sonhos e, em alguns extremos, a sua própria vida, e contribuindo para infernizar o mundo das crianças que têm o azar de crescer em lares violentos. Tudo sob o olhar benevolente e hipócrita de democratas e não-democratas, progressistas e não-progressistas, em tudo antagonistas menos neste aspecto, porque afinal de contas estamos a falar de cumplicidades entre homens, de estratégias para a manutenção de privilégios masculinos outorgados por um sistema patriarcal primitivo e injusto para as mulheres.
Às vezes fico a pensar que gostaria que os acasos da vida me tivessem levado por outros percursos, mais calmos e consensuais, em vez de ter afrontar continuamente velhos privilégios e hierarquias. Não seria tão bom, por exemplo, poder limitar-me a dissertar sobre os benefícios do sistema democrático e a enunciar princípios que não ameaçam ninguém porque também não se exige que sejam postos em prática?
Junho de 2005
- Gary Younge, 2005, Racism Rebooted, The Nation, 11 Julho 2005