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Mulheres Excedentárias

Recortes de imprensa

Maria José Arthur

 

Publicado em “Outras Vozes”, nº 6, Fevereiro de 2004

A aprovação da Lei de Família pelo Parlamento suscitou reacções várias que vão desde manifestações de agrado até ao mais vivo repúdio, como não poderia deixar de ser. Porque esta lei intervém para regulamentar a vida familiar, a vida “entre muros”, que, no entender de muitos, está acima da lei, e onde não compete ao Estado intervir. Mas este é um debate que temos tido desde que se iniciou o processo de revisão da Lei de Família e que não cabe aqui desenvolver. O que importa, quanto a mim, é registar as várias críticas que se vão publicamente fazendo, para que possamos entender melhor a natureza das objecções e os fins que as guiam. Neste sentido, chamo à atenção para o comentário de Sheik Aminuddin Mohamad, publicado no jornal Savana de 30/01/2004.

O título do texto é “Excedentárias”, o que traduz admiravelmente o seu conteúdo, já que o raciocínio se desenvolve em torno do “facto” de haver um excedente de mulheres em relação aos homens, para justificar a poligamia e lamentar que os legisladores a tenham deixado de lado na Lei de Família.

Comecemos então pelos “factos”.

As projecções da população em Moçambique para 2003 indicam que, para cada 100 mulheres, há 92,9 homens (INE, 2003, Anuário Estatístico 2002), ou então, exposto de outra maneira, a cada homem corresponde 1,08 mulheres. Portanto, para que um homem se possa casar com uma segunda mulher, tem que juntar os excedentes que correspondem a 12,5 homens (0,08 x 12,5 = 1). Se a estes complicadíssimos cálculos juntarmos o factor humano, a situação fica tão fora de controle, que qualquer tentativa de antecipar o caos que daqui resultaria só teria interesse como paródia.

Se pegarmos em mais dois dos exemplos avançados pelo Sheik Aminuddin Mohamad, vemos que também eles não correspondem ao que nos é dito no artigo:

 

Alemanha – Sex ratio, 2002
À nascença: 1,06 Homens/Mulher
Menos de 15 anos: 1,05 Homens/Mulher
15-64 anos: 1,03 Homens/Mulher
65 anos e mais: 0,64 Homens/Mulher
total da população: 0,96 Homens/Mulher (2002 est.)
(Fonte: http://www.worldlanguage.com/Countries/Germany.htm)

 

Estados Unidos – Sex ratio, 2002
À nascença: 1,05 Homens/Mulher
Menos de 15 anos: 1,05 Homens/Mulher
15-64 anos: 0,98 Homens/Mulher
65 anos e mais: 0,72 Homens/Mulher
total da população: 0,96 Homens/Mulher (2002 est.)
(Fonte: http://www.worldlanguage.com/Countries/UnitedStatesofAmerica.htm)

 

Como se pode constatar, nalgumas faixas etárias, a proporção de homens em relação às mulheres é maior ou então a diferença é insignificante. Por isso, descartemos de vez o argumento demográfico para explicar a necessidade da poligamia. Aliás, ao longo do próprio texto, outros argumentos vão surgindo, em suporte da tese central e, estes sim, são mais reveladores das ideologias e dos valores que suportam a dominação masculina sobre as mulheres. Assistimos a mais uma apologia do essencialismo1 para explicar não só porque é que homens e mulheres são diferentes, mas também porque é que os primeiros devem controlar estas últimas.

Basicamente, ficamos a saber que homens e mulheres têm os comportamentos determinados pela sua própria natureza, ou seja, que a masculinidade e a feminilidade são construídas fora da ordem social. Por isso, contrariar os apelos que daqui resultam é pouco sensato.

As mulheres são apresentadas como tendo por único fito na vida o casamento e a maternidade (“qualquer mulher aspira a ser chamada de mamã”), enquanto os homens se retratam como sendo polígamos por compulsão (“por natureza o homem africano é polígamo”). De passagem, faz-se também a apologia dos casamentos combinados entre pais (“a ideia de encontrar um marido para uma filha torna-se recomendável e digna de louvor, pois, às vezes, uma mulher jovem, devido à sua pouca experiência e falta de discernimento pode ficar em ‘banho-maria’ dissipando-se o seu sonho de infância, ou então continuar eternamente à espera de alguma proposta”). E finalmente, para dar mais ênfase a esta tese essencialista, para deixar bem claro que é de natureza que se está a falar, vão-se buscar exemplos elucidativos: “[Um] ganadeiro explicava-me que, por norma, deve existir um touro para cada vinte vacas. Mesmo noutro tipo de criação, seja ovina, caprina ou outra, cada macho cobre um grande número de fêmeas” (sublinhado por mim).

Se calhar o Sheik Aminuddin Mohamad não se deu conta do alcance do exemplo que apresentou, mas, quanto a mim, deixem-me dizer que estou farta destas comparações redutoras e insultuosas. O casamento não é o início de uma “criação de humanos” (em vez de bovina ou caprina), nem o marido é um macho reprodutor, mas um companheiro para a vida. O valor dos homens e das mulheres não se mede pela sua capacidade reprodutiva, mas pela sua inteligência, pela sua capacidade de amar e de se entregarem aos outros. Nunca consegui entender que perversão é essa que, por um lado, nos leva a exaltar os grandes feitos culturais da humanidade, enquanto por outro se invoca uma natureza básica, instintos primitivos e bárbaros, quando se trata de justificar instituições sociais do patriarcado.

O texto conclui, enumerando algumas das consequências do não reconhecimento da poligamia, nomeadamente:

  • As mulheres excedentárias metem-se com homens casados, sendo chamadas de “nomes esquisitos”, por exemplo, “amante”, “concubina”, “alfa”, “namorada”, “mãe solteira”.
  • As crianças deste tipo de uniões ficam abandonadas, sem protecção e acabam por ficar na rua, aumentando a “criminalidade infantil, a SIDA e outros males”.

O grande apelo final é que se repense a situação e se reconheça a poligamia. São directamente interpeladas as mulheres, a quem se pede que não sejam egoístas (“As mulheres não podem ser egoístas. Devem pensar nas suas irmãs solteiras, viúvas ou divorciadas”) e os legisladores, acusados de quererem “contrariar a natureza, fazendo vista grossa a um grande problema que afecta a sociedade”.

Lembramos somente que um dos fundamentos legais da Lei de Família é a Constituição, que garante que todos os cidadãos, independentemente do sexo, religião, raça, etc., gozem dos mesmos direitos. E um dos direitos básicos é serem tratados com a mesma dignidade e o mesmo respeito. Todas as leis ou regulamentos que contrariem estes princípios são anti-constitucionais, tal como o seria o reconhecimento do casamento poligâmico. Por muito que nos queiram fazer crer que a poligamia é um bem para as mulheres, a realidade tem outra face mais sinistra, feita de desigualdades, de humilhações, de controle. Não é preciso procurar muito para encontrá-la.

Se excedentárias somos em termos populacionais, mais vale então reconhecer toda a verdade, isto é, que já há muito somos também excedentárias do poder e excedentárias em relação aos recursos, estamos de fora das partilhas. Por consequência, não aceitar a poligamia faz parte da nossa recusa global em nos conformarmos com este estatuto de excedentárias, de marginais, de “estar a mais”.

 

Nota:
  1. A teoria essencialista defende que existe uma “essência” feminina e uma “essência” masculina, que seria comum a todas as mulheres e a todos os homens, independentemente da época histórica, da classe social, da raça, da zona de origem, etc. O “género”, como instrumento de análise, já demonstrou que existem múltiplas maneiras de ser homem e de ser mulher, cujas variações ocorrem ao longo do tempo e entre sociedades.
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