A pluralidade dos sistemas jurídicos
Conceição Osório
Publicado em “Outras Vozes”, nº 4, Agosto de 2003
A Lei de Família, já aprovada na generalidade pelo Parlamento, no final do mês de Abril de 2003, assenta na vigência, em Moçambique, de um único sistema jurídico. Trata-se, portanto, de uma Lei que será abrangente para todas e todos as/os cidadãs/aos em território nacional.
No entanto, nas entrelinhas da discussão no Parlamento e nos relatórios das Comissões de Especialidade, deixa-se entrever a vontade e o desejo de legislar de forma diferente no que respeita a este domínio da família, o que implica directamente pôr em causa o princípio de um único sistema jurídico. Por esta razão escolhemos como tema desta reflexão as razões que ditaram que o Estado Moçambicano fizesse esta opção e as consequências da mesma para os direitos humanos no país.
Quando da independência do país consagrou-se como princípio fundamental a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, independentemente da raça, da religião, da origem social e étnica. Fazia-se assim a ruptura com uma sociedade tão excludente e discriminatória como a colonial. Estava ainda muito fresca a segregação entre “indígenas” e “cidadãos”, os primeiros administrativamente organizados em circunscrições e os segundos em concelhos e freguesias. Correspondia também a cada uma destas categorias formas diferentes de administração da justiça.
A igualdade como princípio constituiu, pois, um pressuposto à organização da sociedade, seja do ponto de vista político, como económico e cultural. Significou que todos os cidadãos, independentemente das normas que regulavam o comportamento dentro do grupo a que pertenciam, tinham o dever e o direito de reivindicar não serem discriminados, e de receberem perante a sociedade e a lei, o mesmo tratamento.
Com base no princípio da igualdade, os homens e as mulheres de Moçambique foram recuperando a dignidade perdida, foram conquistando o direito de serem sujeitos da sua própria história e da história do país. Lentamente se foi ganhando consciência que um país livre só poderia ser construído por mulheres e homens livres, que usufruindo os mesmos direitos, os pudessem exercer em consciência e liberdade.
Por esta razão, muitas mulheres e homens lutaram e estão ainda a lutar contra juízos e práticas que, com o fundamento cultural e tradicional, visam manter, no nosso país, a discriminação entre os seres humanos. Assim, os preconceitos étnicos que dividiam as populações moçambicanas, estão a ser postos de lado. Assim, os preconceitos raciais que classificavam e excluíam dos direitos os homens e mulheres do nosso país, estão a ser combatidos.
A tolerância pelos costumes normativos que estruturam as relações entre pessoas que pertencem ao mesmo grupo, não pode existir sem o respeito e a tolerância entre grupos com valores e práticas diferenciadas. Isto significa tanto que um religioso de uma qualquer religião não pode ser considerado moralmente superior a um não religioso, como que a diferenciação sexual não pode ser motivo de exclusão de direitos.
O nosso sistema jurídico é único, mas é precisamente por ser único e por ter como fundamento a igualdade entre todas as pessoas, que ele é simultaneamente plural e inclusivo. É plural, na medida em que pessoas de diferentes religiões, raças e origens nele são acolhidas com a sua diversidade e diferença. É inclusivo, na medida em que permite que todos e todas, homens e mulheres de Moçambique, vivam em igualdade e possam aceder e exercer os direitos humanos.
O nosso sistema jurídico, por ser único, é também a garantia de que nenhum ser humano pode actuar, ser julgado e condenado por pensar e agir de forma diferente, por querer ser livre e igual, por lutar pela equidade. Ao defendermos o sistema único e o Estado laico, nós estamos a defender e a alargar as liberdades duramente conquistadas. Ao defendermos este sistema jurídico nós estamos a defender e a incluir nessa defesa todos os que vivem e trabalham sob esta bandeira.
Então por que razão, quando estamos a discutir as especificidades da proposta de lei de família, alguns, em nome da cultura e da tradição, reivindicam a inclusão da pluralidade jurídica?
Ao procurar fazer com que a lei reconheça a pluralidade normativa no que respeita ao casamento, os críticos desta lei não visam de facto o respeito e a tolerância entre os diferentes grupos, mas procuram legitimar a desigualdade entre homens e mulheres. Senão vejamos: posso eu, mulher islâmica, ter direito a escolher um marido de outra religião sem que a família e o grupo me excluam? Posso eu, homem islâmico, casar-me com uma mulher laica que não se queira converter, e manter todos os direitos de islâmico? Posso eu, mulher bitonga, exigir ter um casamento monogâmico sem que me caiam em cima os anátemas sociais? Se eu quero cumprir a norma dos meus antepassados posso eu, homem changane, casar com uma macua e ser aceite pela minha própria família e pela família da minha mulher?
Por outro lado, aqueles que fazem apelos à cultura e à tradição esquecem-se de que a cultura não é estática, muda e progride com o contacto entre povos, com o acesso a novas fontes de conhecimento e de cultura. Todos sabemos, e os pseudo defensores da tradição também o sabem, que não podemos reivindicar hoje como legítimo o que o era há cem ou duzentos anos. Quem acha justa a mutilação genital? Quem acha justo que a mulher viúva seja herdada pelo irmão do marido? Quem acha justo que a esterilidade seja motivo para o abandono da mulher?
Não podemos parar o vento com as mãos. Os jovens hoje querem viver numa família em que o pai e a mãe sejam respeitados como seres humanos, querem ser educados no respeito pela identidade e pelas opções de cada um, querem poder sonhar com um futuro que não seja marcado pela desigualdade de oportunidades, apenas porque nasceram com sexo diferente.
Para nós, é claro que a diversidade cultural enriquece a nação, mas também é claro que nenhuma cultura ou tradição pode ser defendida contra os seres humanos, sejam eles homens, mulheres ou crianças.
Para nós, é claro que os direitos humanos das pessoas não podem ser questionados nem negociados em nome de interesses, sejam eles políticos e eleitorais, sejam eles religiosos. Por isso, reafirmamos: os nossos interesses são os que defendem os direitos das mulheres e dos homens deste país. Não pactuaremos com os que pretendem legislar a violação dos direitos das mulheres. Lutaremos, em comunhão com as nossas irmãs do continente e do mundo, para que flagrantes violações como a vergonhosa condenação (em nome da cultura e da religião) de Amina Lawal Kurima, não cubram de vergonha os nossos povos.
A luta continua!
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