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Omitidas

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A sociedade civil manifestou-se na inauguração dos X Jogos Africanos

 

Crime e castigo – 2ª parte

Conceição Osório

Publicado em “Outras Vozes”, nº 2, Fevereiro de 2003

 

No artigo anterior procurámos dar conta dos resultados da pesquisa realizada pela WLSA, que teve como objecto o crime de homicídio cometido no contexto da relação conjugal. Para uma primeira aproximação ao tema por parte dos leitores, optámos por apresentar uma informação geral e breve, de modo a transmitir as conclusões sobre as unidades de análise que estruturaram o trabalho.

Neste segundo artigo vamos centrar-nos nas razões que nos permitem estabelecer a relação entre violência de género e homicídio, ou seja, vamos reflectir sobre a legitimidade da afirmação de que a produção e a reprodução sistemática da violência contra a mulher exprime relações sociais desiguais. Significa que, independentemente do lugar em que nos situemos como grupo social ou como cultura (no seu sentido mais amplo), a gestão dos conflitos entre os sexos faz-se de acordo com o modelo social androcrático. Este modelo funda-se na crença de que homens e mulheres são, não apenas diferentes, mas desiguais.

O modelo sócio-cultural androcrático e a violência de género

É pela socialização em casa e na escola que os valores considerados como correctos pela sociedade, no seu conjunto, se vão inculcando e “instalando” em cada um de nós. Aí aprendemos a pensar e a comportarmo-nos de modo a satisfazer as expectativas das nossas famílias, do nosso grupo social, mas, acima de tudo, aprendemos a inserirmo-nos e a ser socialmente aceites. Estes são elementos que, por serem estruturantes do modelo social, permanecem de forma mais duradoura, apesar das muitas e aceleradas mudanças nos últimos anos. Referimo-nos concretamente aos papéis e funções que condicionam diferentemente os comportamentos de homens e de mulheres.

Actualmente e em todo o mundo, as mulheres têm vindo a conquistar direitos que lhes abrem o acesso a espaços anteriormente considerados masculinos, permitindo cada vez mais reivindicarem-se como sujeitos. Mas estas lutas não produziram ainda resultados que nos permitam falar de alteração de um modelo social que continua a organizar-se, no que respeita a homens e a mulheres, com base em relações de poder desiguais. Mesmo no mundo mais desenvolvido onde a legislação e o controle social dos direitos da mulher atingiram níveis importantes, permanecem, muitas vezes, formas de discriminação mais ou menos subtis. Por exemplo, as paixões e as reacções negativas registadas em todo o mundo sobre o aborto e sobre a sexualidade feminina, exprimem, de forma clara, a resistência social à mudança.

Por estes motivos nós afirmamos que o mundo continua androcrático. Ou seja, pelos mesmos actos, mulheres e homens são julgados diferentemente pela sociedade e pelas suas instituições. É isto que nos permite falar de violência de género.

Violência de género é aquela que se exerce sobre a mulher apenas pelo facto de ser mulher. Ela pode ser vista no quadro das relações de poder entre homens e mulheres, isto é, as relações sociais entre os dois sexos são orientadas pela legitimidade do exercício da violência sobre a mulher. Esta legitimidade é produzida em primeiro lugar no meio de pertença primário, ou seja, na família.

Na família, se rapazes e raparigas são educados de modo a conformarem-se com as expectativas sociais, e, portanto, ambos os sexos são sujeitos a violência (o rapaz não chora, o rapaz tem que brincar de forma mais activa desenvolvendo a força e a competição), a violência que se exerce sobre a rapariga é de um tipo especial. Esta violência contra as mulheres parte do pressuposto de que, na sua essência, elas são sempre em primeiro lugar mães e esposas, isto é, a sua existência justifica-se e esgota-se no “outro”. Existem em função do “outro”, que pode ser o pai e o irmão quando são crianças, que é o marido quando adultas, ou o cunhado e o filho quando viúvas.

A divisão do trabalho, o acesso aos bens, seja à escola seja à terra, exprimem ainda hoje no nosso país a discriminação da mulher. A demora na discussão e aprovação da proposta de Lei de Família pela Assembleia da República, elaborada e debatida na sociedade durante tanto tempo, é uma manifestação inequívoca da intenção de continuar a excluir a mulher do exercício dos direitos, precisamente no espaço onde se modelam as identidades de género.

É assim que, quando falamos de violência doméstica, não nos referimos apenas à violência que sobre a mulher é exercida no seio da família, mas a um sistema de violência que modela as relações na sociedade.

A violência doméstica

O ciclo da violência doméstica está directamente relacionado com o femicídio1 e com o homicídio. Como se inicia? Como se desenvolve? Como culmina?

A maior parte das vezes a violência exerce-se de forma consentida pela mulher. É o marido que dispõe dos bens do casal, é o marido que controla as poupanças e os gastos, é o marido que define as estratégias do futuro da família. As mulheres foram educadas para “achar normal” esta situação, para dirigirem as suas responsabilidades para o bem-estar do marido e dos filhos, para serem a periferia do núcleo que é a figura paterna. Mas nem sempre as coisas ficam por aqui: as mulheres podem revoltar-se, as mulheres podem querer partilhar ou simplesmente continuarem a calar-se. E, em muitos casos, todas estas situações desencadeiam mais formas de violência.

A violência emocional e a violência física são as mais comuns: desrespeita-se a opinião da mulher, ela é diminuída aos olhos dos outros, é “castigada” por o jantar não estar pronto, e/ou porque no emprego o marido se zangou com alguém ou, como acontece muito no nosso país, porque não tem trabalho. Sejam quais forem as circunstâncias, a mulher é o bode expiatório para os problemas que existem. Mas a mulher é um bode expiatório de tipo especial: como ela foi educada para aceitar a dominação e a superioridade intelectual e física do homem, ela culpabiliza-se da violência que sobre ela se exerce.

Portanto ela sente-se e é vista, ao mesmo tempo, como vítima e culpada.

E como se chega ao assassinato entre cônjuges? Por que razão são mais os homens a matarem as suas mulheres do que o inverso?

No número anterior, referimo-nos aos contextos de produção do crime e à sua associação às políticas neoliberais que vigoram no país, à diminuição do papel do Estado, à ausência de políticas que, permitindo gerir os conflitos e as tensões sociais contribuam para renovar as formas de convivência social e para diminuir a violência que hoje, em Moçambique, estrutura, de forma clara, as relações sociais.

Mas, se os contextos de violência estrutural que vivemos no país agravam e potencializam a criminalidade e naturalmente o crime no seio da família, isto não pode ser a única explicação para o aumento de crimes de sangue (como dizem os juristas) contra a mulher. Também não podemos acolher, como explicação plausível, a força física masculina descontrolada. Então o que está por detrás desta cortina de fumo?

Em primeiro lugar, reforçamos o que foi dito anteriormente: a sociedade educa as suas mulheres para a complementaridade masculina, ou seja, educa-as para a preservação de uma ordem de sujeição e de aceitação da dominação patriarcal.

Em segundo lugar, o corpo da mulher é o lugar, por excelência, do exercício do poder masculino. Como refere o relatório de pesquisa, os ataques aos corpos das mulheres reflectem a necessidade de controlar não apenas a redenção e a salvação da espécie, mas o modo como a espécie humana organiza os seus espaços e dentro deles as suas relações.

A violência funciona, assim, simultaneamente como reacção masculina à luta pelo exercício dos direitos humanos pelas mulheres, e como afirmação continuada do controlo social de que o homem é instrumento.

Por que razão matam os homens as suas mulheres?

A pesquisa demonstrou que não podemos tipificar as razões que levam os homens a matar as mulheres no contexto conjugal. As causas directas são muitas e diversas. O adultério ou a desconfiança de adultério, o castigo pela comida mal feita e a ausência da mulher de casa são as razões mais invocadas para o cometimento do crime. No entanto, raramente há uma confissão da vontade de matar. Frequentemente os homens assumem-se como vítimas “eu só queria que ela não bebesse” e/ou como estando no exercício de um direito dado pela sua condição de marido e proprietário “era a minha mulher… andava com outro”.

Os crimes são quase sempre apresentados como acidentes: “apenas dei uma chapada” ou “ela já era doentia”. A condenação destes crimes pela justiça não é bem aceite, por um lado, porque persiste a concepção de coisificação da mulher e da privacidade da relação conjugal: a mulher pertence ao homem e o que se passa na família não diz respeito a ninguém. Por outro lado, porque a condenação social é muito menor do que a que é feita pela justiça formal, mesmo nos casos em que esta demonstra uma extrema benevolência.

Se as situações de assassinato das mulheres pelos seus companheiros são múltiplas, há dois elementos que encontramos em todos os casos analisados. O primeiro elemento é que a morte é sempre precedida por um longo período de violência: as que morrem foram batidas, humilhadas, muitas vezes violadas sexualmente pelos maridos, durante anos; o segundo elemento é que vivemos actualmente em Moçambique num clima de violência social, dominado pela existência de novos conflitos. Estes são produzidos pelas incompatibilidades existentes entre o sistema cultural e os elementos de ruptura introduzidos violentamente no modelo tradicional.

Por exemplo, o discurso público emancipatório (embora sem muitos reflexos nas políticas públicas), a igualdade consignada na Constituição da República, o próprio fenómeno da liberalização da economia, que “liberta” um incontável número de mulheres domésticas para o mercado, provoca, ao nível da estrutura social, o surgimento de rupturas violentas no modelo familiar. Assim, a presença das mulheres na esfera pública, que lhes permite maior acesso a direitos e bens, dá origem, por outro lado, a violentas formas e níveis de conflitualidade de que o crime é a expressão mais brutal.

Por que razão matam as mulheres os seus homens?

O pano de fundo que cobre e revela a prática do homicídio das mulheres contra os seus companheiros é, tal como foi apontado para o femicídio, a desestruturação dos elementos normativos tradicionais (particularmente o que se refere ao rompimento das redes familiares) em conflito com novas realidades sociais e culturais.

Ao contrário do que acontece com o femicídio, as mulheres que matam os seus maridos fazem-no sempre numa situação de extrema violência, que se traduz em pancada, em humilhações, em amantismo (com o seu complemento de desresponsabilização face ao sustento da casa), em incumprimento das obrigações conjugais (relações sexuais) e em ausência de apoio familiar e social.

As mulheres apontam que o facto da família intervir cada vez menos na resolução dos conflitos que surgem ao nível conjugal é um factor importante para o cometimento do crime. Embora a gestão dos conflitos pelas famílias seja normalmente realizada num quadro de conformismo com a dominação do homem, é certo que a intervenção familiar impede/trava a violência mais extrema.

No crime de homicídio estamos perante uma realidade em que a morte do “outro” aparece como a única solução para a dor inexprimível. A continuação da mulher no lar, depois do início do processo de violência, é explicada quase sempre como resultado da impossibilidade da mulher e seus filhos sobreviverem sozinhos e/ou como vergonha social.

Há, pois, aspectos comuns entre os contextos em que se cometem os crimes de homicídio e de femicídio: nos dois casos o processo de violência contra a mulher antecede a morte. O homem que mata já batia e humilhava há muito tempo; o homem que é morto também bateu e humilhou durante um longo período. A diferença fundamental é a representação que as homicidas têm do crime: enquanto que os homens que matam tendem a desculpabilizar-se, como vimos anteriormente, as mulheres que matam condenam-se a si próprias sem nenhumas atenuantes.

Isto acontece porque o crime das mulheres representa uma ruptura violenta com o modelo de dominação, ou seja, para além do crime em si pelo qual as mulheres são penalizadas nos tribunais, elas são principalmente culpadas por terem violado as normas que regulam as relações sociais de género.

É neste sentido que as mulheres se culpabilizam mesmo depois de legalmente condenadas. Para elas o crime cometido contra os seus companheiros não tem razões nem causas, porque o modelo de socialização as habilitou ao conformismo e à aceitação da dominação masculina. Mesmo quando reportam as suas queixas “ele batia-me sempre… ele embriagava-se e torturou-me durante dez anos… ele deixava as crianças passar fome…”, as mulheres sentem que o crime cometido, mesmo depois de cumprida a pena, as impossibilita de voltar a ter uma vida normal. Elas sentem que nunca mais serão aceites no seio da sociedade e da família porque, mais do que matar um homem, elas mataram “o homem”, aquele a quem juraram obedecer e amar. Para estas mulheres o seu crime constitui uma vergonha que se espalha sobre si, sobre as suas famílias e sobre os seus filhos.

É este o modelo androcrático, é esta a sua eficácia.

No próximo número irei debruçar-me sobre o modo como o sistema de administração da justiça e em particular a Lei e os tribunais tratam o crime de homicídio.

 

Nota:

  1. No artigo anterior definimos “Femicídio” como o crime cometido por um homem contra uma mulher. É preciso acrescentar que esse crime de morte é dirigido contra alguém pelo facto de ser mulher e como corolário das formas masculinas de controle dos comportamentos femininos. Para aprofundar este conceito, ver J. Caputi e D. Russell, 1998, “Femicide”.- In: Feminista!, Vol. 2, nº 3/4.
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