O crime de violação na legislação em Moçambique. Análise legal do disposto no actual Código Penal
Irene Afonso
Consagração legal (Artigo 393 do Código Penal)
Como ponto de partida deve ter-se presente que só é crime o que se encontra tipificado na lei, isto é, todos os actos que constam do Código Penal ou legislação avulsa que consagre determinado acto como crime. Assim, a nossa lei penal prevê a violação como crime, enquadrado nos crimes contra a honestidade1.
Comete o crime de violação aquele que tiver cópula ilícita com uma mulher, contra a vontade dela, por meio de violência física, veemente intimidação, ou de qualquer fraude, que não constitui sedução, ou achando-se a mulher privada de uso da razão ou dos sentidos.
Desta noção importa compreender o sentido e alcance dos seguintes termos:
- Cópula ilícita – entende-se por cópula ilícita a prática de relações sexuais, fora do casamento.
- Contra a vontade – sem consentimento.
- Violência física – contra a vontade da mulher, havendo constrangimento ou violência física mesmo quando esta não oferece resistência desesperada até ao esgotamento.
- Veemente intimidação – um acto do agente que intimide a ofendida. Por exemplo, dar-lhe a conhecer a sua intenção de lhe fazer mal se ela não ceder.
- Fraude – comportamento do agente com vista a induzir a mulher em erro a fim de ela não opor resistência. Enganar a mulher.
- Privada do uso da razão ou dos sentidos – por exemplo, uma mulher embriagada ou demente está impossibilitada de avaliar o significado e as consequências do acto sexual.
Sob o ponto de vista legal, a qualidade da vítima é determinante para a sua qualificação. É que nos termos da lei a vítima do crime de violação só pode ser um indivíduo do sexo feminino, pois este tipo legal de crime implica a penetração do pénis na vagina. O coito anal integra o crime de atentado ao pudor e não o de violação.
Ainda em relação à mulher há que ter em conta que a lei dá um tratamento diferente à violação praticada contra mulher menor de 12 anos, com o objectivo de lhe conceder uma protecção especial. Por esta razão, considera-se violação, independentemente das situações atrás referidas, a prática de relações sexuais com qualquer menor de 12 anos.
É importante ter presente que, para a responsabilização criminal pela prática do crime de violação, tem-se especial atenção ao que tecnicamente se designa por elementos do crime de violação.
Elementos do crime de violação
Constituem elementos do crime de violação:
- A intenção;
- O acto material da prática do acto sexual;
- A falta de consentimento.
Violação de qualquer mulher, independentemente da idade
Para que se considere que há crime de violação é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos:
- Falta de consentimento;
- Violência moral ou física;
- Fraude ou privação do uso da razão ou dos sentidos.
Tratando-se de mulher, menor de 12 anos, a lei não exige que estejam reunidos aqueles requisitos: com ou sem consentimento ou violência, a cópula completa ou incompleta com menor de 12 anos constitui crime de violação (Artigo 394 do Código Penal).
Pena aplicável
No caso de crime praticado contra qualquer mulher, a pena aplicável é de 2 a 8 anos.
No caso de crime de violação praticado sobre mulher menor de 12 anos, a pena aplicável é de 8 a 12 anos.
Pena aplicável a determinada qualidade de criminoso
As penas são substituídas pelas imediatamente superiores quando o agente do crime é:
- ascendente da ofendida (ex.: pai ou avô);
- irmão da pessoa ofendida;
- tutor, curador ou mestre do ofendido;
- encarregado ou guarda da sua educação;
- professor;
- transmissor de afecção sifilítica ou venérea à pessoa ofendida.
Da análise às disposições legais do Código Penal vigente, referentes ao crime de violação, avulta que não se pode falar de violação entre pessoas casadas, subentendendo-se que a prática de relações sexuais entre pessoas casadas é, aliás, o fim do casamento.
Ora, mesmo no estado de casada, a mulher pode não ter vontade de ter relações sexuais. No entanto, a sua vontade é muitas vezes ignorada pelo marido e, na prática, quando ela diz não ao acto sexual, o marido entende que o que ela pretende dizer é exactamente o contrário. A mulher vê assim limitada a liberdade de manifestar a sua vontade para a prática do acto sexual, por vezes com consequências graves para a sua saúde, como é o caso de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis.
Sendo as pessoas casadas, entendeu o legislador não ser necessário o consentimento da mulher para a prática do acto sexual. Isto demonstra a forte influência da componente cultural na componente formal normativa.
Segundo Alda Facio, quem faz as leis são pessoas de carne e osso que estão impregnadas de atitudes, juízos e preconceitos em relação àquelas com quem se relacionam, principalmente quando são do sexo feminino2. Porém, no que respeita aos direitos humanos da mulher, o casamento assenta no princípio de livre consentimento previsto tanto na lei civil como nas Convenções Internacionais ratificadas por Moçambique, por isso quer-nos parecer contraditório que, pelo casamento, a mulher esteja sujeita a relações sexuais forçadas.
A questão do tratamento especial atribuído à rapariga de 12 anos levanta uma série de situações dignas de análise. Vejamos as seguintes:
- Nos termos da lei civil a maioridade atinge-se aos 21 anos. É com esta idade que a pessoa adquire capacidade de gozo e de exercício dos seus direitos.
- Por outro lado, nos termos da Constituição da República, a capacidade para votar e ser eleito atinge-se aos 18 anos.
- A idade núbil, isto é, a idade estabelecida por lei para contrair casamento, é de 14 anos para a mulher e 16 anos para o homem.
- Finalmente, constitui crime de violação a prática de relações sexuais com menor de 12 anos independentemente do seu consentimento.
Como se pode constatar, num mesmo ordenamento jurídico a idade é tratada de diversas formas prestando-se mesmo a alguma contradição. Concentremo-nos sobre a idade para contrair casamento e a idade para votar e ser eleito.
A ratio legis sobre a qual assenta a idade núbil estabelecida por lei é de que aos 14 anos a mulher tem suficiente maturidade física e psicológica para contrair casamento, constituir família e assumir as responsabilidades do lar.
A constituição de família é um acto de elevada responsabilidade. Nos termos da Constituição, a família é a célula base da sociedade. É nela que se forma o homem; ela é o lugar privilegiado de socialização do homem. É nela ainda que, muitas vezes, se tomam opções políticas e outras de grande impacto para a vida. Porém, uma menor de 14 anos pode legalmente constituir família não estando, no entanto, capacitada para participar na vida política do país através do voto, acto de equiparável responsabilidade à constituição de família.
Parece-nos que faz sentido que se estabeleça uma mesma idade para actos de aproximada dignidade e responsabilidade, dos quais depende o destino de uma sociedade, para além de se obedecer a maior coerência na lei, no que se refere à idade.
Sobre os procedimentos legais em caso de violação
Necessidade de denúncia prévia
À luz da lei penal vigente, a violação é qualificada como um crime semi-público em respeito da vontade do ofendido e representantes deste de escolher entre a prossecução ou não do crime, com o consequente escândalo que em regra lhe está ligado. Assim, só a vítima ou o seu representante legal goza do direito de iniciativa processual, excepto se se tratar de mulher menor de 12 anos (e outras circunstâncias especiais previstas na lei penal).
A posição do legislador justifica-se com base no respeito pela privacidade do cidadão. Assim, muitas das formas de violência são praticadas no âmbito familiar, como é o caso de agressão física (ofensas corporais), e dependem de acusação particular.
Quer-nos parecer que é pelo respeito pela privacidade que o assédio sexual não é tratado como crime na lei penal, fazendo-se-lhe breve alusão em sede da Lei de Trabalho (1998).
Na distinção entre privado e público, o privado é um campo de não intervenção do Estado e, por isso, passível de ser regulado por práticas e valores sociais e tradicionais que violem os direitos fundamentais de um ou mais membros da família. É, por isso, frequente que as mulheres não apresentem queixa ou desistam dela a conselho de um agente da esquadra. Normalmente, o marido ou a família, no caso de menores de 13 ou 14 anos, recebe uma importância em dinheiro a título de indemnização.
Como refere Conceição Osório, “no caso de Moçambique o âmbito do privado constitui-se em torno de uma rede de parentesco alargada que fixa cada um dos seus membros a normas e posições rígidas, assumindo-se a privacidade como valor quase que estruturante da organização social”3. A privacidade não é um valor referente ao indivíduo mas ao grupo e, sendo o grupo orientado por padrões masculinos, são estes que determinam e legitimam a impunidade social e legal do violador.
Outra questão ligada à qualificação do privado é a das provas. No caso de crime de violação, a vítima deve apresentar a queixa e juntar todos os elementos de prova de verificação da prática do crime. Esta prova consiste no exame directo pelo médico e na apresentação dos objectos que a vítima usava no momento da violação, bem como na caracterização do agente, na medida do possível. Saliente-se que os objectos para prova devem ser apresentados no estado em que se encontravam após a violação. Pela natureza do crime é muitas vezes constrangedor e outras vezes difícil à mulher apresentar as provas, o que contribui também para a impunidade do violador.
Legitimidade de propositura de acção
Têm legitimidade para propor acção criminal:
- A ofendida;
- Os representantes legais;
- O marido;
- O pai, a mãe, os avós, os irmãos, os tutores ou os curadores;
- Tratando-se de menores de 12 anos a acção penal compete ao Ministério Público.
Por outro lado a lei penal estabelece que o casamento põe termo à acusação. Da interpretação deste dispositivo legal avulta que a mulher tem um destino pré-determinado: o casamento, pelo que, ainda prosseguindo a acção criminal, o violador é retirado da situação de prisão preventiva. Parece-nos que o entendimento subjacente é o de que a violação é um crime de dignidade inferior considerando o bem jurídico a proteger. Porém, hoje, a violação pode levar à morte não só da vítima desse crime como de terceiros que, com ela, tenham relações sexuais desprotegidas.
Notas:
- O Tribunal Penal Internacional qualifica-o mesmo como um crime contra a humanidade, em virtude da potencialidade de transmissão do HIV/ SIDA, o que leva inevitavelmente à morte das vítimas.
- A. Facio, 1999, Quando El Género Suena Cambios Trae. San Jose, ILANUD, p. 76.
- X. Andrade, C. Osório, J. C. Trindade, 2000, Direitos Humanos das Mulheres em Quatro Tópicos. Maputo, WLSA Moçambique, p. 36.